Documento formulado pela equipe da ministra Damares Alves foi classificado de “deficitário e inconsistente” por especialistas do grupo
Matérias de Daniel Biasetto publicado originalmente em O Globo

O plano de instalação de barreiras sanitárias nas aldeias apresentado pelo governo federal deixou de fora 70% das terras indígenas. É o que mostra o documento produzido pela Grupo de Trabalho liderado pela ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) obtido pelo GLOBO. Nele, apenas 163 das 537 terras indígenas (excluindo as que possuem povos isolados) aparecem como beneficiadas pelas medidas determinadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para conter o avanço da Covid-19 entre esses povos.

Após a análise do documento, os especialistas convidados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) que compõem o Grupo de Trabalho classificaram o plano como “extremamente deficitário e inconsistente”, com terras indígenas duplicadas e outras sem a presença de nenhum agente do governo. A Apib enviou nesta segunda-feira uma petição ao ministro Luís Roberro Barroso pedindo ao STF que determine a revisão das medidas apresentadas pelo governo.

“O Plano da União carece de revisão técnica e faz uso superficial e inadequado de estudos, de informações e terminologia”, diz a petição enviada ao ministro Barroso.

No “Anexo C” do plano , o governo afirma que há 274 barreiras sanitárias instaladas, nas quais 132 (48%) têm ação exclusiva de índios, ou seja, nenhuma participação de servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) ou da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Apenas 25 delas (9%) possuem atuação exclusiva de agentes do governo. Outras 55 barreiras citadas no documento (20%) não têm sequer informação de composição.

No levantamento feito pela Apib junto às organizações regionais e às comunidades indígenas pode-se verificar que quase a totalidade das barreiras foi instalada e está sendo mantida pelas próprias comunidades indígenas, sem qualquer apoio da União.

A Apib afirma ainda que no plano não há qualquer medida voltada para a instalação de barreiras de contenção de invasores, considerada ação emergencial de prevenção e combate à Covid-19. A retirada de garimpeiros, madeireiros e grileiros das terras indígenas Arariboia, Karipuna, Kayapó, Mundurucu, Trincheira Bacajá, Uru-Eu-Wau-Wau e Yanomami foi tema de polêmica no julgamento no STF por conta da corte não estabelecer um prazo para a saída dos invasores. Apenas o ministro Edson Fachin votou para retirada imediata.

Por fim, a entidade pede transparência dos dados do subsistema de atenção à saúde dos povos indígenas para que a Sesai adote os procedimentos técnicos de rotina na produção de estatísticas públicas (sexo, idade, etnia, aldeia, polo-base e por qual Distrito Sanitário (Dsei) é atendido) e detalhamento maior da “Ficha de Notificação de Síndrome Gripal com data de notificação, sintomas, data de início dos sintomas, condições pré-existentes (comorbidades), estado do teste, data da coleta do teste, tipo do teste, resultado do teste, classificação final do caso, evolução do caso e data de encerramento do caso).

O relatório enviado ao ministro Barroso conclui que “há grave omissão do governo federal no combate à Covid-19 em meio aos povos indígenas, no atraso de suas respostas à pandemia e na escassez de recursos disponibilizados”

– Um plano extremamente deficitário, com objetivos e metas que não priorizam salvar vidas indígenas. Além de demostrar de forma clara que o governo não esta aberto ao diálogo intercultural, pois não acatou as contribuições oferecidas no âmbito do grupo de trabalho – afirma o advogado que representa a Apib no STF, Eloy Terena.

Procurada, a ministra Damares Alves ainda não se manifestou.

‘Placa de advertência contra vírus”

O documento analisado pela Apib possui, entre outras inconsistências apontadas pelos especialistas, casos curiosos como o da aldeia Buriti, do povo Terena, em Mato Grosso do Sul, no qual o governo afirma manter lá uma barreira com “cerca de 300 homens, 24 horas por dia”.

O GLOBO entrou em contato com a aldeia em MS e a informação não bate. Há de fato uma barreira, porém, mantida pela própria comunidade que se reveza no controle.

Já na Terra Roxa, no Paraná, o governo diz que nas aldeias Araguajy, Yvyrati Porã e Yvy Porã há “placas de advertência” instaladas.

“Desde quando placa de advertência é apta a impedir o ingresso do vírus na comunidade indígena?”, questionam os especialistas na petição.