Texto de Alana Manchineri, Livia Castro e Yaritza Batista* (comunicação da MATPHA)

Entre 2021 e 2022, as enchentes dos rios acreanos acabaram com as roças nos  territórios indígenas e com a saúde de populações indígenas das periferias. 

“Quando as árvores caem, derrubam toda uma sabedoria das florestas. Não existe justiça climática sem respeitar os modos de vida dos povos indígenas, e infelizmente nossos povos estão sofrendo por conta da ação dos que se dizem a favor do desenvolvimento. Mas, que desenvolvimento é esse que derruba a sabedoria dos povos, deixa as pessoas com fome e sem lar?”, questiona Toya Manchineri, presidente da Manxinerune Tsihi Pukte Hajene (MATPHA), organização indígena do povo Manchineri no estado do Acre. 

Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), os povos indígenas são os melhores guardiões das florestas e da biodiversidade nos territórios. Mesmo ocupando este cargo há milhares de anos, esses povos têm sentido de forma cruel os impactos da mudança do clima. 

Ao mesmo tempo, a vivência e permanência de povos indígenas em seus territórios tradicionais vêm sendo afetadas por um movimento histórico colonial-exploratório. O meio ambiente é historicamente tratado como fonte de recursos, numa lógica desordenada de extração exploratória. Segundo o Greepeace Brasil, esse cenário de ampla degradação é motivo de mudanças climáticas bruscas e cada vez mais frequentes. 

Hoje, vemos partes dos rios com nível de água muito baixo, como também o caso das cheias extremas, uma realidade presente nos últimos dois anos em territórios indígenas. 

Nos anos de 2021 e 2022, a vazante dos rios voltou a ser noticiada. A principal preocupação para os povos indígenas foi a inundação de aldeias. Segundo informações do portal Ecoamazônia, as inundações aconteceram nos territórios dos povos Jaminawa, do rio Purus, os Huni Kuin, dos rios Jordão e Tarauacá, e os Shanenawa de Feijó do rio Envira. 

Para os povos indígenas o período de chuva significa prosperidade,  a partir da chuva que molha as terras começam a contar os períodos que se iniciam os ciclos, sem água não há plantações. Porém, o impacto da mudança da temperatura global e do desmatamento transforma a chuva que é um fenômeno natural em tragédia para estas famílias. Durante o mês de fevereiro os relatos das lideranças indígenas eram de perdas de seus roçados e a falta de apoio para obter alimentação, água e acesso à políticas públicas logo após a inundação de suas casas. O cacique Assis Kaxinawá, do povo Huni Kuin releva a tristeza das famílias das Terras Indígenas: Praia do Carapanã, Caucho, Humaitá, Rio Tauari e Colônia 27, município de Tarauacá (região Tarauacá/Envira).

“Todas as aldeias de Tarauacá estão sendo atingidas pela cheia, passei na aldeia dos parentes Noke Koi, eles estão passando por uma dificuldade muito grande. Fazem duas alagações só esse mês, estão sem poder caçar e pescar porque está tudo alagado, os legumes estão debaixo d’água, macaxeira, milho, banana, estão sem condições mesmo. Até água estão precisando, embora seja na cabeceira do rio, as águas estão barrentas e mesmo assim estão bebendo essa água e depois todos vão ficar doentes”, lamenta o cacique Assis.

Tendo em vista dados da Defesa Civil do estado do Acre, as cheias dos rios atingiram, em média, 1011 indígenas. As lideranças Shanenawa do Acre relatam sobre como as enchentes em seus territórios são atuais e que no passado o mesmo não ocorria com tanta frequência. A última cheia do rio  Acre em grande escala ocorreu há 66 anos. Segundo relatos de Eldo Shanenawa, ao longo do anos é evidente que as mudanças climáticas afetam os rios, evidenciando que vão ficando cada vez mais altos, levando então às enchentes extremas que assolaram seus territórios nos dois últimos anos

De acordo com o coordenador da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), Eldo Shanenawa, o resultado da crueldade da ação do homem com a natureza é preocupante. Um desses resultados é o impacto direto nas produções indígenas, por exemplo. “As plantações estão completamente perdidas nesse período, que dura normalmente entre os meses de  março a maio”, comenta a liderança indígena ao denunciar o descaso das autoridades para com as aldeias afetadas que perderam suas casas, sementes e parte de seus plantios.

Eldo cita ainda a importância de organizações indígenas no processo de apoio às populações, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Articulação dos povos indígenas do Brasil (APIB), a Organização dos professores indígenas do Acre (OPIAC), Associação do movimento dos agentes agroflorestais indígenas do Acre (AMAIAC), a Federação do povo Huni Kui do estado do Acre (FEPHAC), também a Comissão pró índio (CPI),  enfatizando que sem a participação delas os povos desses territórios estariam em completo abandono. 

“A crueldade da ação do homem contra a natureza tem sido sentida na atualidade. Hoje acontece tudo diferente. Marcávamos as estações do ano pelas árvores. Quando a Butamba soltava flor sabíamos que o verão estava chegando, quando o rio começava a vazar no final de março e começo de abril vinha a última enchente do ano”, explica o Coordenador. 

As lideranças indígenas mais anciãs observam as mudanças no ciclo do rio Envira. Os fenômenos naturais dos raios são mais intensos e têm um grande aumento de temporais.

 “O rio tá mudado, as enchentes nunca passaram onde passou agora,  os anciões estão admirados, essa admiração deles demonstra que não é como era antes o leito do rio, antigamente andava navio no rio envira e hoje não anda mais. Tudo mudou, tudo ficou mais difícil, a escassez da pesca aumentou com as mudanças climáticas no  Acre e na nossa amazônia.  Os nossos anciãos apesar de não saber ler, escrever e nem acompanhar o jornal eles percebem que tá tudo diferente, o tempo tá mais quente, muita chuva tanto no inverno quanto no verão, os animais se afastando e a dificuldade da caça principalmente.” É o que percebe  e visualiza nas falas das  lideranças mais anciãs, relata  Eldo. 

Durante as cheias, muitas famílias tiveram que buscar abrigo em aldeias mais distantes. Mas não foi somente nas aldeias que as famílias indígenas foram afetadas. Muitos parentes que residem em bairros periféricos nas cidades de Rio Branco, Sena Madureira, Feijó, Tarauacá, Santa Rosa do Purus e Jordão, também sofreram com as cheias.

Além disso, as inundações também podem vir acompanhadas de doenças. Durante a inundação em 2021, as famílias enfrentaram o alto pico da pandemia do Covid-19 junto ao surto de dengue. Por isso, os apoios foram todos bem-vindos, como as campanhas de arrecadação com o objetivo de amenizar os impactos causados. 

Lideranças indígenas denunciam a falta de assistência do Estado

Eldo Shanenawa, representante dos professores indígenas do Acre, denuncia a inoperância do governo do estado. “As escolas não-indígenas no período de pandemia receberam cestas básicas e para as escolas indígenas nada foi repassado”, coloca. 

Povos indígenas que residem dentro dos territórios sofrem com o desequilíbrio climático das cheias do rio em conjunto com a falta de assistência do governo estadual  do Acre, desassistência alimentada pelo governo federal observada na atuação sucateada da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que não apresenta ações preocupadas com as populações indígenas do Acre. 

A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) foi fundada em 1989 por lideranças indígenas de toda a Amazônia e tem por missão defender o direitos dos povos indígenas, com papel estratégico na defesa dos povos da Amazônia.  A Coiab, assim como as organizações de sua rede, precisaram agir em meio ao descaso do governo brasileiro frente à pandemia do Covid-19. Por isso, quando as lideranças indígenas do Acre solicitaram apoio através da organização MATPHA, articuladora da Coiab no Acre, a organização buscou seus parceiros e pode possibilitar ajuda durante as alagações que atingiram os povos indígenas em seus territórios e nos bairros das cidades atingidas.

De acordo com dados da Coiab, em fevereiro de 2021 foram doados mais de uma tonelada de insumos para os povos atingidos pelas cheias dos rios, os apoios foram contínuos sobretudo na cobrança ao estado brasileiro para ações de proteção dos povos indígenas. Durante o pico da pandemia, sabendo da falta de equipamentos de proteção individual (EPI) para as equipes de saúde, a Coiab junto com a MATPHA realizam a entrega desses materiais ao Distrito Sanitário Especial Alto Rio Purus (Dsei Alto Purus), com sede na capital do Acre. A pandemia do novo coronavírus foi destrutiva para toda a humanidade, mas a falta de ação do estado também pode ser considerada um crime contra os guardiões das florestas e da biodiversidade, para quem interessa a morte em massa dos povos indígenas? Essa foi uma das perguntas feitas pelo assessor político da Coiab, Toya Manchineri.

Toya Manchineri relata a urgência em dar apoio aos povos indígenas, o presidente da república não só negou a existência da vacina como incitou toda a população a não se vacinar. Após ficar 16 dias internado com Covid-19, a liderança Manchineri soube da situação de alagação e mesmo em recuperação visitou a aldeia Santa Paulino, território que ajudou a demarcar. Ao subir o rio com as cestas básicas, água mineral e produtos de higiene pode se deparar com o resultado da alagação. 

“Está mais do que na hora da humanidade entender que a ação predatória só vai trazer mais doenças e mais dor. Enquanto o presidente brincava com a falta de ar das vítimas do covid a Coiab, FOIRN e parceiros inaugurou uma fábrica de oxigênio no município de São Gabriel da Cachoeira (AM). Somos os guardiões da floresta em pé, o mundo precisa aprender conosco como se vive na floresta e da floresta sem precisar matá-la”, conclui Toya. 

Fábrica de oxigênio em São Gabriel da Cachoeira – AM (Foto Alana Manchineri)

*Este conteúdo foi produzido com apoio do programa Jornalismo e Território, da Énois Laboratório de Jornalismo. Para saber mais, acesse www.enoisconteudo.com.br ou @enoisconteudo nas redes sociais.

Fontes (informações internas)

– Eldo Shanenawa, Coordenador da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC).

– Falar de mudanças climáticas é falar sobre a sua vida (Greenpeace Brasil, 2020). Link.

– Povos indígenas são os mais impactados pelas cheias extremas e mudanças climáticas no Acre (Ecoamazônia, 2022). Link

– Dados sobre as cheias dos rios (Defesa civil estadual, 2022).

– Toya Manchineri, presidente da MANXINERUNE TSIHI PUKTE HAJENE (MATPHA) e assessor político da Coiab.

– Cacique Assis Kaxinawá, do povo Huni Kui.