Imaginem se, na Alemanha, fosse editada uma lei determinando que os bens das vítimas de genocídio pelo nazismo devessem ficar com os algozes e os colaboradores. Segundo a “lógica” dessa lei, as vítimas seriam “culpadas” de terem sido mortas ou expulas de sua terra e, portanto, os assassinos e invasores mereceriam ser recompensados por suas ações criminosas “em prol” da nação… Uma lei dessas, além de ferir princípios básicos de justiça e de dignidade humana, colocaria a Alemanha na berlinda das nações.
Isso não se fez lá, mas, no Brasil, acaba de acontecer algo parecido. A tese do “marco temporal” foi oficializada por Michel Temer no Diário Oficial da União do dia 20 de julho de 2017, por meio de um Parecer vinculante da Advocacia Geral da União (Parecer n. 001/2017/GAB/CGU/AGU), com a finalidade de paralisar processos de demarcação de terras indígenas no Brasil, bem como de anular demarcações já realizadas.
Os povos indígenas foram vítimas de genocídio no Brasil também durante a ditadura militar. Há ainda quem repita a mentira de que a ditadura matou menos de quinhentas pessoas; no entanto, só para dez etnias indígenas, a Comissão Nacional da Verdade, em seu trabalho incompleto, verificou 8.350 mortos e desaparecidos. O parecer da AGU cala sobre esses crimes e, violando os critérios mínimos de justiça de transição, tem como efeito legitimar a finalidade do crime, que era o de expulsar os índios de seus territórios.
A tese do marco temporal, que se volta também contra os quilombolas, constitui uma forma pouco sutil de violar a Constituição de 1988, que não foi a primeira a proteger os direitos dos povos indígenas (isso ocorre desde 1934), mas foi a primeira a conceder aos povos indígenas um capítulo próprio, reconhecendo seus direitos originários. O absurdo lógico e jurídico da tese pode ser resumido dessa forma: como os direitos indígenas são originários, isto é, antecedem o próprio Estado brasileiro, e como a proteção constitucional deles, de qualquer forma, já vinha de décadas, os índios não poderiam voltar às terras de que foram expulsos e só teriam direito às que ocupavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição – o chamado “marco temporal”…
A falta de consistência lógica ou jurídica dessa tese é manifesta, bem como o seu efeito: legitimar o genocídio, “legalizando” as invasões e grilagens. Por esse motivo, que só não escandaliza mais a opinião pública em razão do escandaloso racismo contra os índios, publicamos em 2015 a declaração ”Contra o marco temporal: a legalização na democracia do genocídio dos povos indígenas durante a ditadura“. Essa declaração foi assinada por diversas organizações: Associação Juízes para a Democracia, Movimento de Apoio aos Povos Indígenas (MAPI), Uma Gota No Oceano, Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição (IDEJUST), Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), Tortura Nunca Mais/SP, União de Mulheres de São Paulo, Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Instituto Socioambiental (ISA), Associação Bem Te Vi Diversidade, Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé), Grupo Nacional dos Membros do Ministério Público (GNMP), Movimento do Ministério Público Democrático (MPD).
Ajudamos na organização de um seminário na USP, coordenado por Manuela Carneiro da Cunha e Samuel Barbosa, e realizado em novembro de 2015, “Os direitos dos povos indígenas em disputa no STF“. No evento, foi apresentado ao público, entre outros pareceres, o de José Afonso da Silva, que concluiu pela inconstitucionalidade do marco temporal (ele pode ser baixado nesta ligação).
A tese do marco temporal nasceu dos setores ruralistas. Este parecer vinculante, segundo a Folha de S. Paulo, foi encomendado pela bancada ruralista ao governo Temer neste momento em que, para se manter no poder e adiar seus problemas penais, o governo precisa de votos no Congresso: “A medida é anunciada pela AGU dias depois que o deputado federal Luis Carlos Heinze (PP-RS), membro da FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária), distribuiu a produtores rurais na página da FPA em rede social um vídeo, no qual explicou que tal “parecer vinculante” estava sendo discutido diretamente pelos deputados ruralistas com a Casa Civil da Presidência e a advogada-geral da União, Grace Mendonça.” (“Temer assina parecer que pode parar demarcação de terras indígenas“).
O governo de Dilma Rousseff tentou realizar algo análogo por meio da Portaria AGU n. 303, de 16 de julho de 2012, como lembra o atual documento aprovado por Temer. Vejam como, na sua primeira página, a AGU simplesmente ignora todos os protestos dos povos indígenas e das organizações indigenistas e de direitos humanos e conta a história como se se tratasse de mera controvérsia jurídica entre órgãos do Executivo federal: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=7&data=20/07/2017.
Em seguida, a AGU tenta convencer de que os Embargos de Declaração no caso Raposa Serra do Sol, na afirmação de que o Supremo Tribunal Federal não tinha criado normas gerais de demarcação das terras indígenas, e sim regras para o caso, significa exatamente o contrário: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=8&data=20/07/2017.
O órgão tenta convencer-nos de que a não participação dos povos indígenas na criação daquelas normas pelo Supremo Tribunal Federal teria sido, pelo contrário, uma participação, mas “Subordinada às limitações institucionais próprias dos procedimentos judiciais, a participação indígena se efetivou condicionada aos atos e formas do processo jurisdicional”. É bastante interessante ler isto, em um país em que o Judiciário seguidamente descumpre não só a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho como o artigo 232 da Constituição: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.” Na prática, as terras indígenas têm sido até anuladas sem que os índios sejam citados nos processos. Sim, é citada apenas a Funai, que, sucateada, está ligada ao Executivo que vem aprovando medidas anti-indígenas.
Em seguida, a AGU tenta apresentar a tese de legitimação do genocídio como “um entendimento jurisprudencial solidificado, que de fato pode fornecer as balizas gerais para a atuação dos órgãos da Administração Pública” (página 10), e reproduz as condicionantes do caso Terra do Sol (página 11). A última página é dedicada ao restante das notas do parecer.
A instituição, em nota sem título à imprensa, tenta minimizar o impacto deste parecer afirmando que “O parecer aprovado, portanto, não inova na ordem jurídica, mas apenas internaliza para a administração pública um entendimento há muito consolidado pelo Supremo Tribunal Federal”, e que haverá redução de litígios, o que não condiz em nada com a realidade brasileira. Notemos também que a AGU opina contra o interesse do patrimônio público, pois as terras indígenas são bens da União (e não dos povos indígenas, que têm apenas o usufruto) e sua solução de que “o Governo Federal poderá utilizar-se do instrumento da desapropriação por interesse social para atender às necessidades fundiárias, presentes ou futuras, das comunidades indígenas”, além de trocar o direito dos povos indígenas por um simples e improvável favor do governo, exigiria que o governo pagasse indenizações no procedimento desapropriatório.
A insegurança fundiária dos povos indígenas no Brasil tem gerado mais crimes e mais mortes. O genocídio corrente contra o povo Guarani no Mato Grosso do Sul, por exemplo, acirrou-se com as decisões judiciais que violaram direitos originários. O Brasil costuma ser anualmente o campeão de assassinatos de ativistas ambientais, de camponeses e de indígenas; além do assassinato, o campo brasileiro destaca-se mundialmente pelos crimes ambientais e pelo trabalho análogo ao escravo.
O episódio de Temer com a JBS, que acarretou denúncia criminal contra o atual presidente, é apenas mais um índice da genuflexão do Estado aos ruralistas e aos interesses anti-indígenas, que inclui o aumento das chacinas no campo. Este novo parecer, além de servir para legitimar o genocídio do passado, pode ter como efeito ser a fagulha para novos massacres: a recompensa aos crimes passados serve, em geral, de estímulo para novos delitos, ainda mais se contam com o beneplácito dos Poderes instituídos.
Nota: Diversas organizações acabaram de lançar a declaração ”Michel Temer violenta os direitos dos povos indígenas para tentar impedir seu próprio julgamento” e exigem a intervenção do Ministério Público Federal:
Solicitamos ao Ministério Público Federal (MPF) que requeira a suspensão dos efeitos do parecer da AGU, cujas proposições são consideradas inconstitucionais por juristas de renome. Solicitamos, ainda, que o STF ponha fim à manipulação das suas decisões pelo atual governo, a qual tem o objetivo de desobrigar o reconhecimento do direito constitucional dos povos indígenas sobre suas terras e impor restrições aos outros direitos desses povos.
Ela é assinada por: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPINSUDESTE), Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL), Grande Assembléia do Povo Guarani (ATY GUASU), Comissão Guarani Yvyrupa, Conselho do Povo Terena, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Articulação dos Povos Indígenas do Amapá e Norte do Pará (APOIANP), Associação Agroextrativista Puyanawa Barão e Ipiranga (AAPBI), Associação Apiwtxa Ashaninka, Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Associação do Movimento dos Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre (AMAAIAC), Associação do Povo Arara do Igarapé Humaitá (APAIH), Associação dos Povos Indígenas do Rio Envira (OPIRE), Associação dos Produtores Kaxinawa da Aldeia Paroá (APROKAP), Associação dos Produtores Kaxinawá da Praia do Carapanã (ASKPA), Associação Indígena Katxuyana, Kahiana e Tunayana (Aikatuk), Associação Indígena Nukini (AIN), Associação Nacional de Ação Indigenista-Bahia (Anai-Bahia), Associação Sociocultural Yawanawa (ASCY), Associação Terra Indígena Xingu (ATIX), Associação Wyty-Catë dos povos Timbira do MA e TO (Wyty-Catë), Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP), Comissão Pró-índio do Acre (CPI-Acre), Conselho das Aldeias Wajãpi (APINA), Conselho Indígena de Roraima (CIR), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp), Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), Federação dos Povos Indígenas do Pará, Hutukara Associação Yanomami (HAY), Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepe), Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), Instituto Socioambiental (ISA), Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Operação Amazônia Nativa (Opan), Organização dos Agricultores Kaxinawá da Colônia 27 (OAKTI), Organização dos Povos Indígenas Apurina e Jamamadi de Boca do Acre Amazonas (Opiajbam), Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi de Pauini (Opiaj), Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (OPIRJ), Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), Organização Geral Mayuruna (OGM).
Imagem: poema de André Vallias.