No mais novo retrocesso, a vítima são os índios: 748 processos de reconhecimento de territórios podem ser anulados, por mero parecer da AGU, sem nenhum debate público

Por André Cabette Fábio, no Nexo

Promulgada em 1988, a Constituição brasileira estabelece que o direito indígena às terras que tradicionalmente ocuparam é anterior ao próprio surgimento do Estado nacional. O entendimento aplicado no geral é de que, contanto que se prove que povos indígenas ocuparam determinada região, estes podem pleitear a demarcação.

Um parecer da AGU (Advocacia-Geral da União) assinado na quarta-feira (19/7) pelo presidente Michel Temer estabelece, no entanto, que apenas territórios ocupados por indígenas já na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, deverão ser demarcados. Isso significa que povos que não ocupavam mais suas terras originárias naquela época não podem mais assegurar o direito de se restabelecer nelas.

Desde que assumiu a Presidência, em maio de 2016, Temer não finalizou a demarcação de nenhuma terra indígena, segundo acompanhamento do Conselho Indigenista Missionário. Com a decisão, o número de terras que podem ser demarcadas diminui. Segundo o governo 748 processos em andamento serão afetados.

Em vídeo divulgado nas redes sociais, o deputado federal Luis Carlos Heinze (PP-RS), afirmou que a medida foi articulada com participação da bancada ruralista, da qual é membro atuante. Ela se soma a outras vitórias recentes do grupo do Congresso em relação à questão indígena. Além de restringir as terras que podem ser demarcadas, o parecer também:

  • Veda a ampliação de terras indígenas já demarcadas
  • Estabelece que o usufruto das terras pelos indígenas não se sobrepõe à defesa nacional, à atuação das Forças Armadas ou da Polícia Federal
  • Permite a instalação de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte nas terras indígenas
  • Proíbe a cobrança de tarifas por parte dos índios pela utilização das estradas e outros equipamentos públicos localizados em suas terras

Em que o parecer se baseia

O parecer incorpora trechos da decisão de 2009 do Supremo Tribunal Federal sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que havia ocorrido quatro anos antes. A corte decidiu que a demarcação deveria ser mantida. A decisão citou a data da promulgação da Constituição de 1988 como o “marco temporal” sobre o qual a demarcação deveria se basear.

O entendimento do STF deixava explícito que a adoção do marco temporal estava sendo aplicada àquele caso específico, e não se repetiria necessariamente para outras demarcações.

Em 2012, a AGU publicou uma portaria na qual incorporava o entendimento do STF sobre o marco temporal como regra para para órgãos jurídicos da administração federal. Após protestos de entidades ligadas à causa indígena, a portaria foi, no entanto, suspensa.

A nova decisão retoma aquilo que a portaria de 2012 determinava, mas tem impacto mais amplo, porque deve ser obedecida por todos os órgãos federais. A justificativa da AGU para a decisão é que ela busca a “pacificação dos conflitos fundiários entre indígenas e produtores rurais, bem como diminuir a tensão social existente no campo”.

Em entrevista ao Nexo, o professor de direito socioambiental da PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Paraná, Carlos Marés, afirma que a aplicação generalizada do marco temporal vai contra aquilo que o STF vinha decidindo. “O marco temporal é uma tese equivocada, mas, independentemente disso, é uma tese em discussão que vem sendo aplicada caso a caso, não genericamente. O que o governo faz [ao estabelecê-lo como regra] é inviabilizar que isso ocorra”, afirmou.

Indícios de costura política até a decisão

A adoção do marco temporal é defendida pela FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária), ou “bancada ruralista”, que constitui a maior frente parlamentar no Congresso.

Em vídeo publicado na internet antes da divulgação oficial do documento, o deputado federal Luis Carlos Heinze (PP-RS) afirmou que o parecer da AGU foi acertado em uma reunião com o governo em abril de 2017.

Estariam presentes no encontro o ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha (PMDB-RS), o assessor da mesma pasta, Renato Vieira, o então ministro da Justiça, Osmar Serraglio (PMDB-PR) e a advogada-geral da União, Grace Maria Fernandes Mendonça.

“Seguramente, na minha avaliação, mais de 90% dos processos (…) são ilegais e, portanto, serão arquivados. O presidente já se comprometeu com isso, de assinar esse parecer vinculante junto com a advogada Geral da União, que é a doutora Grace”, afirmou.

No vídeo, Heinze afirma que conversas sobre “a posição do governo Temer em relação a essa questão indígena” e sobre o marco temporal ocorrem desde que o presidente assumiu, em 2016. A FPA teria tido conversas com autoridades como o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Alexandre de Moraes e seus sucessores, Serraglio, e Torquato Jardim, que assumiu no final de maio e continua no cargo.

Essa não é a primeira vez em que a tese do marco temporal vem à tona durante o governo Temer. Em dezembro de 2016, o jornal “O Estado de São Paulo” vazou a proposta de um decreto que também instituiria o marco temporal, como ocorre agora via parecer da AGU.

Marco é segunda mudança sobre demarcação em 2017

Estabelecido por um decreto assinado durante o governo Fernando Henrique, em 1996, o processo de demarcação de terras indígenas passava originalmente por estudos de técnicos apontados pela Funai, aprovação do órgão, assinatura do Ministro da Justiça e, como último passo, homologação presidencial.

Em janeiro de 2017, o então ministro da Justiça Alexandre de Moraes, criou, no entanto, uma nova etapa: um grupo técnico ligado à pasta. Este analisa o processo antes que ele chegue ao ministro da Justiça e o auxilia sobre se autoriza ou não a demarcação de determinada área sugerida pela Funai.

Entidades como o ISA (Instituto Socioambiental) e o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) avaliaram, na época, que a nova instância tende a deixar o processo de demarcação, que em muitos casos dura décadas, ainda mais lento, e sujeito a questionamentos políticos. A mudança foi, no entanto, vista com bons olhos pela bancada ruralista.

Outras vitórias dos ruralistas

ENFRAQUECIMENTO DA FUNAI
A Funai (Fundação Nacional do Índio) teve cortes de unidades e de funcionários no início de 2017

CPI DA FUNAI
Com apoio decisivo da bancada ruralista, a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) pediu o indiciamento de cerca de 90 pessoas, incluindo 35 indígenas, 16 procuradores da República e 15 antropólogos, e propôs mudanças na forma como são delimitadas terras indígenas e quilombos no país

PRESIDENTE DA FUNAI
Em maio de 2017, Temer exonerou o presidente da Funai. Em seu lugar, entrou o general do Exército Franklimberg Ribeiro Freitas, indicado pelo PSC (Partido Social Cristão)