Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (6CCR) afirma que orientação normativa vinculante é inconstitucional
reprodução: site do Ministério Público Federal
Durante audiência realizada nessa quarta-feira (21), o vice-procurador-geral da República e coordenador da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF), Luciano Mariz Maia, entregou à advogada-geral da União (AGU), Grace Maria Fernandes Mendonça, nota técnica que aponta a necessidade de anulação do Parecer Normativo 001/2017 da AGU, aprovado pelo presidente Michel Temer em julho do ano passado. O parecer estabelece que a Administração Federal siga, em todos os processos de demarcação de terras indígenas, as condicionantes definidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Caso Raposa Serra do Sol (PET 3388).
O parecer normativo da AGU foi editado sob o argumento de dar cumprimento ao entendimento do STF em matéria de terra indígena. Na nota técnica, no entanto, o MPF afirma que, por se distanciar do entendimento da Suprema Corte e violar direitos assegurados na Constituição e em diversos tratados internacionais de direitos humanos, o ato da AGU é inválido e inaplicável.
O MPF aponta que o ato interpretativo vinculante contraria entendimento do próprio STF, que já decidiu, por reiteradas vezes, que as condicionantes do Caso Raposa Serra do Sol não se aplicam a outras demarcações, e que os direitos dos índios às terras estão em todas as constituições, desde 1934. Além disso, de acordo com a nota técnica, o entendimento da AGU coloca em risco inúmeros povos que dependem de seus territórios para manutenção de sua vida e sua reprodução física e cultural.
Restrições ilegais – A orientação normativa da AGU viola os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, argumentam os procuradores. O parecer “impede ou, no mínimo, restringe a utilização de argumentos, recursos jurídicos e outros instrumentos processuais com aptidão para resguardar os direitos e interesses legítimos da União, da Fundação Nacional do Índio e dos próprios indígenas”, explica a nota técnica.
Segundo o documento, a transposição das condicionantes da Raposa Serra do Sol de modo acrítico, sem indicação dos moldes para seu cumprimento, implicou paralisia das demarcações de terras indígenas e tem gerado riscos e insegurança jurídica de revogações de atos já constituídos, potencializando conflitos entre índios e não-índios.
Os procuradores destacam ainda que a demarcação de terras indígenas é ato meramente declaratório, inexistindo discricionariedade do administrador. Assim, a identificação da terra indígena adota metodologia propriamente antropológica, pela qual são demonstrados concretamente os pressupostos constitucionais configuradores da tradicionalidade da ocupação da área. Não cabe à AGU, portanto, “impor sua visão restritivamente jurídica a outros órgãos da Administração Federal que possuem responsabilidade técnica científica de outras áreas, como é o caso da Funai”, aponta o documento.
Direito originário – O MPF lembra que o Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente reconhecido que a proteção às terras indígenas foi assegurada pela Constituição Federal de 1934 e confirmada nas constituições seguintes, sendo potencializada na Constituição da República de 1988. “Essas observações são suficientes para indicar o retrocesso da tese rígida adotado pelo Parecer da AGU, sobre o marco temporal de ocupação, afastando-se da realidade de luta pela construção dos direitos dos índios”, afirmam os procuradores. De acordo com a nota técnica, 1934 é o marco constitucional, que inaugura a proteção constitucional das terras indígenas.
A ausência de consulta aos povos indígenas também é apontada como razão para a anulação do parecer. A nota técnica do MPF cita a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 5.051/2004, que determina a consulta livre, prévia e informada às comunidades indígenas quando houver adoção de medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar diretamente as populações em questão.
Diante do descumprimento dos dispositivos, o MPF alerta que o Estado brasileiro poderá ser responsabilizado internacionalmente por desrespeito ao Direito Internacional dos Direitos humanos: “A ilegalidade (inconvencionalidade) também no que tange às normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos demonstra a imperativa necessidade de imediata anulação do Parecer Normativo 001/2017, sob pena de persistir situação de inconvencionalidade que expõe o Brasil a riscos de responsabilização internacional”.
Durante o encontro, a advogada-geral da União reiterou o propósito de expressar respeito pelas decisões do Supremo Tribunal Federal e transmitir segurança jurídica para a administração. Grace Mendonça assegurou ainda que irá analisar os argumentos apresentados na nota técnica e convidou o Ministério Público a identificar modos concretos de atuação conjunta, que possam fortalecer o respeito aos direitos dos índios.