Em 28.02.2018 foi publicada a Portaria ITERPA no. 119/2018 (DOE no. 33.567), homologando o Território Quilombola de Cachoeira Porteira, com uma área de 225 mil hectares.
Esse Território localiza-se às margens do rio Trombetas, no município de Oriximiná/PA, tendo em sua vizinhança a Terra Indígena Katxuyana-Tunayana, delimitada pela Funai em 16 de outubro de 2015,publicado no Diário Oficial da União em 20 de outubro de 2015 (DOU nº 200, Seção 1, p. 22-25). Diante desses avanços recentes por parte da União e do Estado do Pará quanto aos respectivos reconhecimentos dos direitos territoriais dessas populações tradicionais (indígenas e quilombolas) vizinhas de longa data, e com histórias bonitas de se ouvir sobre como se ajudaram mutuamente em tempos difíceis, seria de se esperar que índios e quilombolas estivessem juntos agora na comemoração de mais essa conquista, inclusive bastante divulgada na imprensa nacional e internacional, e também marcada pela visita do governador Jatene à comunidade quilombola, para entrega, em mãos, do referido Titulo. Mas os vizinhos indígenas não se sentiram à vontade para participar da festa, pois uma dúvida pairava no ar: a área titulada como Território Quilombola de Cachoeira Porteira, pelo ITERPA, estaria ou não sobreposta à área delimitada como Terra Indígena Katxuyana-Tunayana, pela FUNAI?
Existe um famoso Acordo de Limites entre os índios e quilombolas dessa região que ficou apelidado de “o acordo embaixo da árvore”, e que, de fato, começou a ser discutido apenas entre representantes indígenas e quilombolas, à sombra de uma árvore, em 30 de maio de 2015. E, a partir de então, passou por etapas subsequentes de formalização e discussão junto aos órgãos competentes. Porém, não existe, na linha do tempo desse Acordo, que vai de maio de 2015 até hoje, um momento de desenlace final, em que representantes indígenas e quilombolas tivessem tido a oportunidade de novamente se reunirem, desta feita com base em documentos oficiais e finais, para que pudessem conferir os limites territoriais devidamente cartografados e validados por ambas as partes. No entanto, em maio de 2016, após uma vistoria conjunta dos limites no chão, da qual participaram técnicos do ITERPA e da FUNAI, acompanhados de representantes indígenas e quilombolas, o governo do Estado do Pará encaminhou os resultados para a FUNAI, dando assim por concluídos os trabalhos do Acordo de Limites. E desde então, passou a cuidar da tramitação do Projeto de Lei de desafetação das Florestas Estaduais de Trombetas e Faro, necessário de ser aprovado junto à Assembléia Legislativa do Pará (ALEPA), para que o processo de titulação do Território Quilombola de Cachoeira Porteira pudesse prosseguir.
Enquanto isso, por sua parte, as lideranças indígenas continuaram a reivindicar do governo do Pará que, antes de avançar nesse Projeto de Lei, fosse realizada a devolutiva dos resultados da vistoria conjunta de limites, pelo ITERPA, na forma de mapas compreensíveis, com base no que as mesmas pudessem conferir e validar ou não esses resultados, para finalmente darem por concluídas as etapas daquele Acordo iniciado debaixo da árvore. Porém, segundo lideranças da Terra Indígena Katxuyana-Tunayana, o ano de 2017 foi um ano em que foram deixados falando sozinhos, pelo governo do Pará, enquanto tramitava o referido Projeto de Lei na ALEPA. Foram enviadas duas cartas solicitando audiência com o governador Jatene, sem retorno. Até que o ano de 2018 inicia-se com a Lei de desafetação das Flotas de Trombetas e Faro de no 8.595 aprovada e publicada no DOE, em 11 de janeiro de 2018. Dessa vez, o movimento indígena estadual representado pela FEPIPA (Federação dos Povos Indigenas do Pará), regional representado pela COIAB (Coordenação das Organizações Indigenas da Amazonia Brasileira), e nacional, pela APIB (Articulação dos Povos Indigenas do Brasil), através de sua assessoria técnica e jurídica enviaram um oficio mais incisivo ao governador, obtendo, dessa vez, retorno imediato e audiência marcada, ocorrida em 30 de janeiro último. Na ocasião o governador se mostrou surpreso com demanda de diálogo das lideranças indígenas, tendo em vista a existência de um acordo que ele disse ter conhecimento que estaria concluído com sucesso, e tendo sido uma experiência da qual orgulhava-se que seu governo tivesse apoiado. Presente na ocasião, Francinara Baré, coordenadora geral da COIAB, informou que os trabalhos por parte dos órgãos estaduais em favor da titulação quilombola avançaram sem consulta ou diálogo com os representantes indígenas envolvidos na questão, e que a Lei 8.595 de desafetação das Flotas os pegou de surpresa. Acrescentou que, com base no texto da Lei, não conseguiram quem pudesse lhes informar com segurança, exatamente qual área foi desafetada, pois o texto da mesma daria margem para a interpretação de que 3 aldeias juntamente com a área de ocupação do povo Kahyana poderiam ter sido desafetadas. Em reação às preocupações manifestadas, o Governador Jatene admitiu que pudesse ter havido algum erro no memorial descritivo da Lei, mas que se isso tivesse ocorrido providenciaria a devida correção. Então pediu aos presentes que não alarmassem as lideranças indígenas com esta dúvida, pois sua intenção não seria manter qualquer sobreposição com a área de ocupação indígena do povo Kahyana, conforme a questão lhe foi contextualizada na ocasião. Por fim, o governador definiu como encaminhamento final uma nova reunião para o dia 08 de fevereiro de 2018 no setor de geoprocessamento da SEMAS/PA, para confirmação dos pontos descritos na Lei de 11 de janeiro de 2018. Nessa nova ocasião, foi afirmado pelos técnicos dos órgãos do governo do Estado, presentes que os limites do Territorio quilombola a ser titulado não incidiriam na área delimitada pela FUNAI, como Terra Indígena Katxuyana -Tunayana. Também nessa reunião foi apresentado um mapa em que, claramente, os limites da área desafetada não se sobrepunham aos limites da TI. O shape do mesmo foi analisado pela assessoria técnica da COIAB e constatou-se que se tratava da área correta para que o TQ de Cachoeira Porteira não apresentasse sobreposição com Terra Indígena vizinha, contendo cerca de 212 mil hectares.
Com base nessa confirmação de não-sobreposição, as lideranças formalizam seus agradecimentos em carta ao governador datada de 15 de janeiro de 2018. Porém, duas semanas depois, a titulação do Território Quilombola de Cachoeira Porteira, sobreposta à Terra Indígena Katxuyana-Tunayana, já era fato consumado. Para as lideranças indígenas envolvidas foi como um golpe tomar conhecimento, pela imprensa, de que o Título Quilombola possui o tanto de hectares correspondente à sobreposição com um importante território de ocupação tradicional do povo Kahyana. Em reação ao sentimento de traição por parte do governador, as lideranças da FEPIPA, COIAB e APIB encaminharam a ele uma nova carta retificando a anterior e retirando os agradecimentos feitos. Agora se lamentam e questionam, nos termos colocados por Angela Kaxuyana, liderança indígena dessa região e uma das coordenadoras da COIAB: O que o governo tem a nos dizer sobre a titulação quilombola? Continuamos errados em achar que houve um pseudo compromisso do governador em não publicar nada em cima da área delimitada pela FUNAI? Como fica a frase: “Eu não tenho, esse governo não tem compromisso algum com erro”, que Simão Jatene nos repetiu por 5 vezes em reunião que tivemos com ele. Ele olhou para meus olhos e disse, “confia em mim, não vai ter sobreposição”. Mas o que temos agora? Direitos quilombolas sendo garantidos em cima dos direitos indígenas? Bom, se alguém não tem compromisso com erro somos nós povos indígenas, pois não vamos deixar isso passar em branco. E espero que esse governo não queira entrar para mais uma página de massacre dos povos indígenas da região.