Assistimos ontem, dia 09/06/2020, uma coletiva de imprensa sobre a Covid-19 em comunidades e povos tradicionais na esperança de vermos o Governo Federal finalmente anunciar medidas concretas de enfrentamento ao coronavírus nas Terras Indígenas no Brasil. O que vimos, porém, foi do início ao fim foi uma campanha de propaganda da atual administração nas palavras dos representantes do Ministério da Mulher e Direitos Humanos, da Fundação Nacional do índio (Funai), da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e do Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Muitas palavras vazias e números decorados jogados à imprensa na expectativa de dizer a todos, no Brasil e no exterior, que a Funai e a Sesai estão engajadas pelas vidas indígenas e que estão destinando milhões de reais em recursos para os nossos territórios. Escrevemos aqui para dizer que isso é uma mentira!
Depois de três meses de pandemia da Covid-19, orgulhar-se agora de estar conseguindo distribuir cestas básicas é muito pouco. Desde o início, estamos denunciando o avanço do coronavírus em direção às Terras Indígenas e os riscos de contaminação em nossos territórios. Também estamos cobrando a necessidade da elaboração e implementação de planos de contingência consistentes, a retirada de invasores das Terras Indígenas e a proteção de nossos territórios. Não fomos ouvidos!
Decidimos empreender a tarefa de acompanhar, levantar, sistematizar e divulgar dados dos casos da Covid-19 subnotificados pela Sesai que, reiteradamente, se nega a reconhecer os indígenas nas cidades como indígenas, como bem deixou claro o Secretário da Sesai em sua fala preconceituosa e racista na coletiva, quando afirma ser “muito difícil a questão da autodeclaração” dos indígenas. Nossos dados, ao contrário dos apresentados pelo Secretário e comemorados como se já tivéssemos vencido a Covid-19, vêm diretamente das pessoas que estão sentindo na pele o despreparo dos órgãos indigenistas e de saúde do Estado brasileiro no enfrentamento da doença entre os indígenas, mostrando justamente o contrário: que a pandemia avança muito rapidamente e de forma assustadora dentro das Terras Indígenas. A fala do Secretário e os esforços recentes do governo Bolsonaro através do Ministério da Saúde em mascarar o avanço da Covid-19 no Brasil só reforçam a necessidade e importância dos dados levantados por nós, movimento indígena! Até o dia 09/06/2020, contabilizamos 2908 casos confirmados de contaminados e 228 mortes entre indígenas nos nove estados da Amazônia Brasileira. Enquanto que os dados Sesai, computam 1716 confirmados e 75 óbitos pela Covid19.
Como a Univaja e a Coiab denunciaram ontem, ao contrário do que o Secretário afirmou, as equipes de saúde estão despreparadas e, em muitos casos, entrando em área sem cumprir quarentena e desrespeitando as estratégias de isolamento das comunidades. Na TI Vale do Javari, a própria equipe da Sesai entrou contaminada transmitindo a doença nas aldeias. Ora, se nem as equipes estão sendo testadas, como confiar nos dados apresentados pelo Secretário, e na sua interpretação de que o contágio entre os indígenas já está caindo. Se nem os nossos parentes estão sendo testados em número suficiente?
Mas em um ponto concordamos com o Secretário, este Governo de fato age de forma integrada. Desde o início deste Governo, vimos o aumento drástico das invasões em nossas terras, incentivadas pelos discursos do Presidente. Vimos a Amazônia pegar fogo, enquanto o Governo se preocupava em proteger o agronegócio e negar os dados da destruição da floresta. Vimos o ministério do Meio Ambiente afrouxar a legislação ambiental e as ações de fiscalização. Vemos as tentativas do Governo Federal legalizar a invasão dos nossos territórios ao querer liberar a mineração e o arrendamento. Vimos o Ministério da Justiça e Segurança Pública devolver à Funai para revisão estudos de identificação e delimitação de Terras Indígenas já aprovados. Vimos a Funai editar medidas que restringem a atuação de servidores em áreas não homologadas e editar a IN09/2020 legalizando a grilagem ao reconhecer registro de terras privadas em cima das Terras Indígenas e áreas interditadas com presença de povos isolados. Vimos a tentativa de extinguir a Sesai e sua lenta desestruturação. Vimos, ontem, o Presidente da Funai dizer que é um “problema social” a retirada dos garimpeiros da TI Yanomami, dando a entender que a solução é regularizar o garimpo e o Secretário Especial de Saúde Indígena afirmar que a Sesai vai continuar discriminando indígenas que vivem nas cidades.
Diferente do que foi falado ontem na coletiva de imprensa, até agora a resposta da Funai e da Sesai à Covid-19 tem sido lenta, descoordenada e insuficiente. A Covid-19 entrou nas Terras Indígenas e está se espalhando rapidamente. Estamos à beira do caos, enquanto o Presidente da Funai e o Secretário da Sesai comemoram a vitória sobre o coronavírus e se gabam de um suposto trabalho bem feito. Mascarar a realidade não vai resolver o problema!
O governo está distante do que os povos indígenas têm demandando e alertado. Sabemos que existem bons profissionais nos órgãos públicos fazendo o possível, e até o impossível, nas pontas, mas é necessário que Funai, Sesai e Forças Armadas de fato elaborem e implementem um plano sério para salvar vidar e impedir efetivamente o avanço da Covid19 em nossos territórios. A vulnerabilidade que tanto atribuíram ontem aos povos indígenas não é inata, ela é resultado do descaso do Estado e se reflete na alta letalidade da Covid-19 entre os indígenas Segundo os dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a letalidade da Covid-19 entre povos indígenas chega a 8,8%, enquanto entre a população brasileira geral é de 5,1%.
Alertamos que estamos em uma batalha diária para sobreviver, não só ao Covid-19, mas ao desmonte das políticas indigenistas e da demarcação e proteção dos nossos territórios, ao avanço da cobiça às nossas terras e nossas vidas, aos assassinatos de lideranças, às medidas legislativas anti-indígenas do Governo Federal. Depois de resistirmos ao Covid-19, não é essa a “normalidade” do país que aceitaremos!
Manaus/AM, 10 de junho de 2020
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)