Artigo de Julio José Araujo Junior, publicado em jota.info
Cansados da falta de resposta das instituições e inconformados com um cenário avassalador de disseminação do coronavírus nas aldeias e comunidades, os povos indígenas resolveram dirigir o seu destino e transformar a história constitucional. Por meio da ADPF 709, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) associou-se à Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ e a seis partidos para combater a omissão do governo federal no combate à pandemia e cobrar providências quanto ao risco de genocídio de diversas etnias. A utilização direta do controle concentrado de constitucionalidade representa um marco na defesa de direitos indígenas e impõe ao sistema de justiça a necessidade de atenção e providências ante um cenário extremamente grave de omissão do Estado brasileiro na elaboração e concretização de políticas em favor desse grupo minoritário.
A ação pede ao STF que determine ao governo federal a instalação de barreiras sanitárias em mais de 30 territórios onde vivem povos indígenas em isolamento voluntário ou de recente contato, bem como a retirada de invasores das terras indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá.
A ADPF pede, ainda, que a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) atenda a todos os indígenas, inclusive aqueles em contexto urbano ou que vivam em terras indígenas não homologadas, e requer a elaboração de um plano de enfrentamento do COVID-19 para os povos indígenas, a ser elaborado pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) com o apoio da Fundação Osvaldo Cruz e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
A propositura da ação por uma organização indígena nacional tem um peso que transcende o caráter simbólico. Ela reforça a necessidade de superar uma interpretação restritiva do art. 103, IX, da Constituição, e afastar o entendimento de que entidades de classe de âmbito nacional seriam apenas aquelas ligadas a uma categoria econômica ou profissional – em consonância com decisões como a da ADPF 527 e da ADI 5.291.
Além disso, a ADPF torna efetivo o art. 232 da Constituição, que sublinha a legitimidade dos povos indígenas e de suas organizações para atuar em juízo na defesa de seus direitos e interesses. Com isso, a democratização do acesso à Suprema Corte viabiliza a escuta e o exercício da interpretação constitucional pelos próprios grupos minoritários e vulneráveis. Essa abertura se torna ainda mais relevante no atual cenário, em que o governo federal constantemente se vale de uma suposta vontade majoritária das urnas para atacar os direitos indígenas. Nesse contexto de omissão sistemática, a pandemia converte-se em fator detonador de riscos a genocídios e atrocidades em massa que já estavam latentes.
O passado mostra que as políticas de Estado violadoras dos modos de vida dos povos indígenas, associadas à negligência na proteção de suas terras, causaram extrema vulnerabilidade nos grupos. Assim, as epidemias não foram obra do acaso, pois as políticas coloniais ofereceram o cenário ideal para que as enfermidades se espalhassem. Afinal, os micro-organismos não incidiram em um vácuo social e político, mas em um mundo socialmente ordenado[1], onde a disseminação de doenças era viabilizada pela opressão e submissão dos povos indígenas aos interesses econômicos dominantes.
Compreender tais episódios nos ensina como um país não se define apenas por suas memórias, mas também por seus esquecimentos[2]. Quanto mais o Estado se omite no dever de proteger os territórios e garantir aos povos indígenas sua sobrevivência física e cultural, mais provável será a ocorrência de genocídios provocados por epidemias.
Desta vez, a Constituição é uma verdadeira aliada. A perspectiva intercultural do texto constitucional impõe uma leitura do texto que descolonize os saberes e as compreensões estigmatizantes do passado e impõe ações concretas pelo Estado na garantia do exercício dos modos de vida próprios dos grupos que formam a sociedade brasileira. Mais do que uma carta de enunciação de direitos, a Constituição de 1988 é um verdadeiro instrumento de luta dos povos indígenas para garantir a sua sobrevivência física e cultural.
Como afirma Ailton Krenak, apesar de tantas violências, os povos indígenas buscaram forças para resistir e desenharam estratégias que lhes permitiram cruzar o pesadelo de uma colonização que queria acabar com o seu mundo e chegar ao século XXI esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes[3].
Proteção territorial e direito à saúde
A proteção dos territórios é o eixo central em torno do qual gravitam os direitos indígenas (art. 231, §1º). O território é um espaço onde exercem vínculo especial, de natureza sociocultural e espiritual. Mesmo quando já não habitam esses espaços e se deslocam às cidades, muitos indígenas estabelecem vínculos com os territórios, com os quais perpetuam relações de família, trânsito e afeto. Quando os territórios não estão devidamente protegidos, tornam-se alvo de invasões, ações criminosas, destruição da natureza, contaminação dos rios e desestruturação étnica.
Ao lado da proteção territorial, o direito à saúde exige uma abordagem especial. Ele deve ser implementado em atenção às especificidades socioculturais desses povos, por meio do respeito às suas práticas tradicionais e aos modos de organização de cada etnia, dispondo ainda de uma estrutura logística que atenda aos grupos que vivem nas áreas mais remotas. A adoção da política nacional de saúde indígena em plena conformidade à Constituição pressupõe abandonar concepções ultrapassadas a respeito da identidade indígena e implementar um enfoque diferenciado de atenção às comunidades, sempre em respeito às suas práticas tradicionais e à obediência ao controle social.
Embora a constituição de um subsistema de saúde indígena pela Lei nº 9.638/1999 tenha sido um avanço, ele não tem sido capaz de enfrentar todos os desafios para a implementação da saúde indígena no país.
O primeiro problema reside no caráter incompleto do atendimento. A premissa colonialista de que os indígenas merecedores de atendimento diferenciado seriam apenas aqueles que vivem nas aldeias (“aldeados”) desconsidera a afirmação identitária daqueles que vivem nas cidades e ignora a extrema vulnerabilidade a que estão submetidos. Na prática, os indígenas não atendidos pela Sesai sofrem a discriminação institucional nas demais áreas do SUS e não recebem qualquer tipo de atenção diferenciada que leve em conta suas peculiaridades socioculturais. Na pandemia, os casos de indígenas em contexto urbano não são devidamente computados nas estatísticas oficiais.
Além disso, a precariedade de atendimento e a carência de profissionais, principalmente na Amazônia Legal, as dificuldades na concretização do diálogo intercultural e do respeito à medicina tradicional mostram que há ainda um longo caminho a percorrer para o efetivo respeito à Constituição.
A precariedade do subsistema leva a que os índices da saúde indígena sejam piores que os da população não-índigena – como no caso de mortalidade infantil, desnutrição e diversas morbidades.
Em vez de incrementar a atuação estatal, as tentativas de privatização do subsistema e a diminuição do investimento nos últimos anos têm fragilizado o atendimento, causando impactos ainda piores nas terras indígenas mais remotas.
Ameaça às terras indígenas
Enquanto a política pública de saúde indígena não alcança a efetividade necessária, as ameaças às terras indígenas não param de crescer. Tentativas de invasão das terras para viabilizar atividades ilegais como desmatamento, mineração, garimpo, extração de madeira fragilizam a proteção das comunidades e geram riscos à sobrevivência física e cultural dos grupos. Tais ameaças já eram graves no passado, porém cresceram muito nos últimos tempos, em razão do projeto inconstitucional do atual governo federal para os povos indígenas e do aumento da vulnerabilidade em decorrência da pandemia do novo coronavírus.
A Presidência da República dedica-se, desde a posse, a cumprir a promessa inconstitucional e discriminatória de não demarcar um centímetro de terra indígena. O governo federal tem se voltado à desestruturação das políticas indigenistas e à condução de um projeto integracionista para esses povos. A começar por discursos, tuítes e falas, o Presidente da República tem defendido um projeto integracionista para os povos indígenas, que busque tirá-los da “pré-história” e torná-los seres humanos “iguais a nós”. As menções são públicas e expressas, sempre com uma visão parcial a respeito do papel do Estado e uma indicação de favorecimento a certos grupos em detrimento dos povos indígenas e do meio ambiente[4], vistos como empecilhos ao progresso.
Além da paralisação de processos demarcatórios e da reprodução das concepções do Presidente, a FUNAI, que deveria agir em defesa dos povos indígenas, tem favorecido a invasão de terras indígenas ainda não homologadas, como mostra a Instrução Normativa nº 9/2020[5], editada em plena pandemia. A autarquia tem se limitado a atuar de forma pontual na matéria indígena, de forma meramente assistencial, omitindo-se no dever de coordenar e interagir com os demais entes e atores acerca do dever de proteção estatal dos povos indígenas. Além disso, a Funai vem abrindo as portas para políticas evangelizadoras, mesmo em áreas de indígenas em isolamento voluntário, desrespeitando as diretrizes de não estabelecimento de contato com esses grupos.
Para enfrentar a pandemia e a omissão estatal, os indígenas têm agido muitas vezes por conta própria. A adoção de suas práticas tradicionais e o estabelecimento de regras nos territórios tentam impedir o aumento do número de casos.
No Alto Rio Negro, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN -, que congrega 23 etnias, aponta que a minimização dos riscos tem sido feita quase exclusivamente pelos conhecimentos tradicionais e a medicina indígena, caso contrário já haveria mais mortes na região[6]. No Vale do Javari, a entidade UNIVAJA, que abrange sete povos da região, vem questionando a entrada de funcionários de saúde contaminados nas terras, o que gerou a disseminação do vírus na região[7]. Os indígenas demandam a criação de um gabinete de crise local, a elaboração de testes rápidos, a criação de barreiras sanitárias e o fortalecimento de bases de proteção, entre outras medidas[8].
O aumento de mortes por COVID-19 mostra que é necessária uma atuação estatal urgente. Até 5/7/2020, houve 11.385 casos confirmados, com 122 povos afetados e 426 óbitos[9]. A pandemia aprofundou um cenário de vulnerabilidades dos povos indígenas cujas consequências podem ser trágicas. Os depoimentos das entidades indígenas e das instituições indicam que os órgãos responsáveis não estão, até agora, à altura da tarefa histórica que lhes cabe.
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[1] Cf. Manuela Carneiro da Cunha. Introdução a uma história indígena. In: __(org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP, 1992, p. 13.
[2] Cf. João Pacheco de Oliveira. As mortes do indígena no império do Brasil: o ndianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos. In: _. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016, p. 75.
[3] Cf. Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 28.
[4] Em 12 de abril de 2019, durante a cerimônia de inauguração do Novo Terminal de Passageiros do Aeroporto Internacional de Macapá – Alberto Alcolumbre, Jair Bolsonaro afirmou:Conversando com alguns parlamentares, vamos conversar sobre a Renca, a Renca é nossa! Vamos usar as riquezas que Deus nos deu para o bem-estar da nossa população. Vocês não terão problemas com o ministro do Meio Ambiente nem com o de Minas e Energia, nem com outro qualquer, que o nosso ministério, pela primeira vez na República, todos se entendem e todos falam a mesma língua: um Brasil melhor para todos nós”. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2019/discurso-do-presidente-da-republica-jair-bolsonaro-durante-a-cerimonia-de-inauguracao-do-novo-terminal-de-passageiros-do-aeroporto-internacional-de-macapa-2013-alberto-alcolumbre Acesso em 23 set. 2019
[5] A Instrução Normativa nº 9, de 16 de abril de 2020, editada em plena pandemia, assegura a certificação de imóveis para posseiros, grileiros e loteadores em terras indígenas ainda não formalmente homologadas. A APIB escreveu uma nota técnica a esse respeito. Disponível em: <apib.info/2020/04/28/nota-tecnica-a-instrucao-normativa-da-funai-no-092020-e-a-gestao-de-interesses-em-torno-da-posse-de-terras-publicas/> Acesso em 13 jun. 2020.
[6] Sem orientação da Sesai, indígenas combatem por conta própria novo coronavírus nos territórios. Disponível em: <https://amazonia.org.br/2020/03/sem-orientacao-da-sesai-indigenas-combatem-por-conta-propria-novo-coronavirus-nos-territorios/> Acesso em 11 jun. 2020.
[7] Nota à sociedade brasileira e à comunidade internacional sobre o avanço do COVID-19 na Terra Indígena Vale do Javari. 07 de junho de 2020. Disponível em: <https://trabalhoindigenista.org.br/wp-content/uploads/2020/06/Nota-da-UNIVAJA_07.06.20_covid-19-dentro-do-Vale-do-Javari.pdf > Acesso em 10 jun. 2020.
[8] Veja-se: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,agentes-de-saude-levaram-covid-19-a-povos-isolados-dizem-indigenas-governo-nega,70003331693 . Acesso em 14 jun. 2020.
[9] Cf. dados do Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena. Disponível em: <https://covid19.socioambiental.org/ > Acesso em 5 jul. 2020.
JULIO JOSÉ ARAUJO JUNIOR – Procurador da República no Rio de Janeiro. É mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e graduado em Direito pela Universidade de São Paulo, em 2005.