Texto de Lumararu Karajá e Sofia Scartezini
29 de junho de 2020 foi o dia em que o medo chegou na aldeia Ibutuna. A pandemia da COVID-19 já havia se instalado como uma realidade global, mas até que ponto o global incidiria no local e se as fronteiras entre culturas tão distantes iriam ser dissolvidas diante da contaminação do vírus era uma dúvida até então. Para Celina, a matriarca de 86 da aldeia, era um dia normal, até que o mesmo fosse perturbado por febre, tosse e dores no corpo. Foi um alerta para toda a aldeia, que tem cerca de 116 pessoas e é envolvida pelo Rio Araguaia, na Ilha do Bananal. A saúde de Celina já há um tempo é motivo de preocupação e espanto, pois mesmo sendo diabética e passando por momentos delicados de doença, a força e superação sempre surpreendeu aos demais. É uma senhora forte, que mesmo com as pernas que vez ou outra acusam dores, levanta-se todo dia as sete da manhã, vai ao rio tomar seu banho antes até do despertar dos mais jovens, coa o café para a família enquanto resmunga para cachorros e galinhas intrusos na casa.
Com o passar do tempo o corpo foi sentindo mais e cedendo, ficou ruim a ponto de sentir que a morte estava perto dela, como narrou ao seu neto, Lumararu Karajá. Chegou mesmo a pensar que morreria diante da nova doença, e o tratamento imposto a ela incluiu dipirona, amoxicilina e xarope guaco. Nada. Anoiteceu outro dia e Celina piorava, as pernas já fracas respondiam ainda menos, não conseguia levantar e nem cumprir suas tarefas diárias. Eis que ao adormecer, em sonho seu falecido pai Wahukuma veio até a filha doente e lhe disse: “Coitada filha, você está doente! Você tem que tomar remédio, tem que banhar! ”. Celina assustada, levantou a cabeça e ouviu a mesma voz de seu pai: “Filha, pega esse remédio Kotxueni, as folhas você usa para banhar e as raízes você toma chá, vai ficar boa com isso. Esse remédio é encontrado somente no brejo”. Após a visita do pai em sonho, Celina dormiu tranquila, como se a febre e os sintomas da doença tivessem atenuado.
Ao amanhecer, chamou suas filhas Myreiru e Imahiki, que são boas raizeiras, contou a elas, aos netos e demais em frente à casa, em sua esteira, sobre os conselhos de seu pai e pediu que as filhas fossem a procura do remédio, que até então era desconhecido. Myreiru e Imahiki, foram por volta das nove da manhã em busca da planta, e após cinco horas de andança e procura, avistaram uma planta parecida com a tiririca, que Wahukuma, pai
falecido de Lahire já havia alertado no sonho: “ É parecido com a tiririca, mas não corta”. Já cansadas, enfim acharam a planta chamada kotxueni, o remédio tradicional, no brejo. Voltaram até a aldeia, fizeram o preparo do chá separando as raízes das folhas e deram primeiro para Celina que estava mais fraca e depois para os demais. Todos tomaram banho com as folhas. Após a ingestão do remédio, o corpo foi ficando forte e a doença aos poucos indo embora. O uso desse remédio tradicional pode ser de no máximo três dias, mas as pessoas adoentadas ficaram boas logo, em dois dias, como explicou Celina. Essa narrativa chegou a mim junto ao pedido de estender a boa notícia, de mostrar como o mato, o conhecimento tradicional Karajá e seres que encantam e povoam esses outros mundos trabalham e tem muito a nos dizer em crises como a que estamos vivendo. A intenção é que o remédio esteja a serviço, na medida do possível, aos parentes adoentados, como os próprios karajá, mas também aos Tapirapé, Bakayry e Guajajara, por exemplo. É comum que os raizeiros recebam algo em troca de seu trabalho, tradicionalmente a rede de trocas inclui panelas, gás, celular, a depender do remédio e do trabalho de quem faz.
O relato de Lahire (palavra na língua inyrabé para “avó”) Celina a seu neto, e dele para mim, que tenho a alegria de trabalhar com os Karajá de Ibutuna, e de mim para você, vem em um momento oportuno. Momento de refletir sobre a vulnerabilidade dos povos indígenas no Brasil diante de uma pandemia global, diante de um forte período negacionista e uma assistência à saúde debilitada. Momento para abrirmos os olhos e ouvidos para a força que emerge das diversas ancestralidades diante de um cenário de grande fragilidade, nesse momento que escrevo, 12 de agosto, as mortes por Covid-19 entre indígenas no Brasil chega ao triste número de 664 pessoas. A resistência entre mundos de populações que vem lutando pelo direito à vida há muito nesse país envolve uma economia cosmológica poderosa. Que os Karajá, as populações indígenas que resistem no país alcancem e encantem nossas noções de mundo. E essa foi a mensagem que Celina quis nos passar, sua história de resistência.