Negativa ou omissão deliberadas na demarcação das terras indígenas configura crime de genocídio
Por Luiz Eloy Terena e Deborah Duprat
A América, antes de sua invasão, era idealmente pensada como um espaço quase sobrenatural, à margem do conhecimento, uma vez que as fronteiras do mundo coincidiam com as fronteiras do conhecimento.
Uma vez ocupado esse território, ele passa a constituir a exterioridade da Europa, o local do “outro“. Esse “outro”, por sua vez, é percebido como anômalo, ou seja, de uma maneira contranormativa a partir da qual se revela uma forma patológica, irregular e desviada de existência e conduta.
A concepção dos povos originários da América como inferiores e a violência do projeto colonial, com morte, desterritorialização e captura de modos de vida, vão alimentar, em larga medida, as teorias raciais do século XIX e a própria formação dos Estados nacionais, com a noção de homogeneidade que lhe é correlata.
A combinação desses ingredientes culminou no nazismo e no holocausto judeu, chamando a atenção da Europa, pela primeira vez, para o fenômeno da eliminação dos “seus outros“.
Em 11 de dezembro de 1948, por ocasião da III Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, foi promulgada, em Paris, a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Esse tratado se vale do conceito de genocídio cunhado por Raphael Lemkin, em obra doutrinária de 1944, a qual, referindo-se às técnicas nazistas, inspira-se nas partículas genos (raça, tribo) e cídio (assassinato).
Já em seu art. 1° a Convenção diz que o genocídio é crime tanto em tempo de paz como em tempo de guerra e o define, em seu art. 2o, como a prática de atos cometidos com a intenção de “destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.
O art. 2o, “C”, contém um comando importante, segundo o qual constitui ato de genocídio “submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”. Toda essa disciplina sobre o genocídio foi reproduzida no art. 6o do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI).
O dispositivo por último referido, presente tanto na Convenção quanto no Estatuto de Roma, tem sua gênese na compreensão de que um mundo é sempre a projeção de padrões significativos no espaço que rodeia a experiência viva. Por isso, quando há invasão do espaço de intercâmbio simbólico, uma civilização deixa de ser vital e entra numa espiral de desesperança e desintegração.
A Constituição brasileira de 1988, porque resultado de lutas, incorpora muitas e diversas políticas identitárias e configura uma sociedade nacional plural, ao mesmo tempo que conforma o Estado como instância descolonizadora.
No plano internacional, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho disciplina uma nova relação do Estado nacional com o seu “povo”, circunstância facilmente identificada se confrontada com o texto normativo que lhe é anterior e que é por ela expressamente revogado: a Convenção 107 da mesma OIT.
Enquanto esse último documento tinha como propósito a assimilação das chamadas “minorias étnicas” à sociedade nacional, o presente, já em seu preâmbulo, evidencia a ruptura com o modelo anterior,
Está expresso em seu texto: “considerando que a evolução do direito internacional desde 1957 e as mudanças sobrevindas na situação dos povos indígenas e tribais em todas as regiões do mundo fazem com que seja aconselhável adotar novas normas internacionais nesse assunto, a fim de se eliminar a orientação para a assimilação das normas anteriores; reconhecendo as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas, religiões, dentro do âmbito dos Estados ondem moram” (…).
Todos esses textos normativos, por sua vez, têm a terra como elemento essencial ao exercício dos direitos que passam a ser então reconhecidos aos povos indígenas.
A centralidade da terra está exatamente no fato de ser o espaço de intercâmbio simbólico, que, uma vez suprimido, leva ao colapso do mundo da vida coletiva. Essa circunstância foi ressaltada no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, em vários votos.
Veja-se, por exemplo, aquele proferido pelo ministro Menezes Direito: “não há índio sem terra. A relação com o solo é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos ligados de uma maneira ou de outra à terra. É o que se extrai do corpo do art. 231 da Constituição” (…).
É nela e por meio dela que eles se organizam. É na relação com ela que forjam seus costumes e tradições. É pisando o chão e explorando seus limites que desenvolvem suas crenças e enriquecem sua linguagem, intimamente referenciada à terra. (…) Por isso, de nada adianta reconhecer-lhes os direitos sem assegurar-lhes as terras, identificando-as e demarcando-as“.
A negativa ou omissão deliberadas na demarcação das terras indígenas configura o crime de genocídio na modalidade inscrita no artigo 2o, “C“, da Convenção, e no artigo 6o, “c”, do Estatuto de Roma, ou seja, mata-se um povo quando lhe são impostas condições de vida capazes de levar à sua destruição física.
Seus membros morrem ou aqueles que sobrevivem se submetem a um processo de integração da cultura dominante, assimilando a linguagem e o sistema de valores do colonizador. O povo preexistente deixa de existir. Foi o que aconteceu com vários povos indígenas ao longo do projeto colonial.
Assentadas essas premissas, é preciso denunciar que está um curso um processo de genocídio dos indígenas no Brasil, capitaneado pelo presidente da República. Discursivamente, ele trata esse segmento da sociedade nacional como inferior e defende a sua “evolução”, mediante a integração à sua “cultura”, sim, à “cultura” de Jair Bolsonaro.
E não admite que suas terras sejam demarcadas. São dele afirmações tais como: “com toda a certeza, o índio mudou, tá evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”; “[o]s índios não falam nossa língua, não têm dinheiro, não têm cultura. São povos nativos. Como eles conseguem ter 13% do território nacional?“; “não tem terra indígena onde não tem minerais. Ouro, estanho e magnésio estão nessas terras, especialmente na Amazônia, a área mais rica do mundo. Não entro nessa balela de defender terra pra índio“; “pode ter certeza que se eu chegar lá (Presidência da República) não vai ter dinheiro pra ONG. Se depender de mim, todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro de casa. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola“; “em 2019 vamos desmarcar [a reserva indígena] Raposa Serra do Sol. Vamos dar fuzil e armas a todos os fazendeiros“.
Mas não se trata apenas de estratégia retórica. O seu governo, desde o início, vem acumulando atos que inviabilizam a demarcação de terras indígenas. No ato de posse, assinou a Medida Provisória 870, de 1o de janeiro de 2019, estabelecendo a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, transferiu a supervisão da Fundação Nacional do Índio (Funai), historicamente vinculada ao Ministério da Justiça (MJ), tem a sua supervisão transferida para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Também a atribuição que sempre esteve na Funai, de realizar a identificação e delimitação das terras indígenas passa para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), também ficando nesse ministério, e não mais no MJ, a competência para expedir portaria declaratória das terras indígenas.
Embora o Congresso Nacional não tenha aprovado a MP nesse ponto, restou evidente o propósito de Bolsonaro de colocar nas mãos do agronegócio os interesses indígenas.
Sergio Moro, então ministro da Justiça do governo Bolsonaro, devolveu para a Funai todos os processos que se encontravam em sua pasta para expedição de portaria declaratória ou decreto de homologação de áreas indígenas, dando um passo atrás, em contradição com a própria etimologia da palavra “processo”, que vem do latim “procedere”, “avançar”, “adiantar”.
Antes, convocou a Força Nacional por ocasião do “Acampamento Terra Livre”, em 201915), mobilização tradicional dos povos indígenas que acontece há muitos anos, de forma absolutamente pacífica.
O presidente da Funai é contra a demarcação de terras indígenas. Assessorou a bancada ruralista na CPI contra o Incra e a Funai 6). Em 16 de abril de 2020, baixou a Instrução Normativa 09, determinando que só ingressem no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF) as terras indígenas homologadas, deixando sem nenhuma proteção aquelas já identificadas, com relatório publicado, aquelas com portaria declaratória e outras com restrição de uso com presença de povos indígenas isolados e de recente contato. A ausência delas no SIGEF permite que passem para o domínio privado.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) ingressou recentemente com arguição de descumprimento de preceito fundamental no Supremo Tribunal Federal, que veio a ser protocolada sob o número 709.
O seu propósito é a adoção de determinadas providências para o enfrentamento da Covid–19 em territórios indígenas. Ali se afirma que os discursos do presidente da República contra esses povos levaram a ondas de invasões de suas terras, inclusive no que diz respeito aos indígenas isolados e de recente contato.
Um dado relevante a respeito é o desmatamento e a mineração em terras indígenas demarcadas, que apresentaram um aumento considerável a partir de 2018. Dados do PRODES, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), revelam que, em 2019, a taxa anual de desmatamento (avaliada entre agosto de 2018 e julho de 2019) em toda a Amazônia foi de 34,41%, mas que esse incremento foi de 80% quando consideradas apenas as terras indígenas!71.
Os povos indígenas permitiram à sociedade brasileira uma transformação capaz de fazer do mundo um lugar mais justo, mais atento à natureza, à diversidade, à dimensão do tempo e do cuidado, e ao prazer da arte e da festa. Bolsonaro os está matando.
LUIZ ELOY TERENA – Advogado indígena e coordenador da Assessoria Jurídica da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Doutor pelo Museu Nacional (UFRJ). Pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, França.
DEBORAH DUPRAT – Advogada e ex-Procuradora Federal.
Artigo publicado originalmente publicado no Jota.info