Por Daniel Biasetto,do jornal O Globo
RIO – Lideranças do garimpo ilegal que exploram a Terra Indígena Munduruku, no sudoeste do Pará, articularam uma vaquinha entre empresários, comerciantes e moradores dos municípios de Jacareacanga e Itaituba para enviar, no momento mais crítico da pandemia de Covid-19, ônibus “lotados de índios” a Brasília, com o objetivo de pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso a favor de suas demandas.
Eles pretendem chegar na próxima segunda-feira, Dia do Índio, para protestar contra a retirada dos invasores determinada pelo ministro do STF, Luis Roberto Barroso, e pedir apoio de parlamentares pela aprovação do projeto de lei da Câmara dos Deputados (PL 191/20), que libera a mineração nessas terras. O GLOBO teve acesso a diversos áudios em que garimpeiros e uma liderança indígena discutem a estratégia de cooptar os índios e arrecadar recursos de quem se beneficia da prática de extração de ouro ilegal na região para fazer a viagem até Brasília. Ao menos dois micro-ônibus já deixaram Jacareacanga com destino à capital federal.
Abastecida pelo garimpo ilegal na área dos Munduruku, a região de Jacareacanga, distante cerca de 1.800 quilômetros da capital Belém, vive uma situação tensa após a decisão do STF. Nesta quarta-feira, um grupo de garimpeiros bloqueou a rodovia BR-230 em protesto contra as operações federais de combate à prática ilegal do garimpo. De acordo com uma fonte, um pequeno grupo de indígenas libera a entrada de garimpeiros ilegais em troca de porcentagem da venda de ouro.
Em um das gravações, O GLOBO identificou Vilelú Inácio de Oliveira, o Vilela, como um dos líderes dos garimpeiros que promove a caravana. No áudio destinado a um grupo de uma cooperativa, Vilela cita a decisão do Supremo e diz que “desta vez é ordem judicial que terá de ser cumprida pela Polícia Federal, Ibama e Exército”.
A TI Munduruku é uma das sete terras indígenas alvos da decisão do STF para que seja realizada a retirada dos invasores nos próximos dias. As demais são Yanomami, Karipuna, Uru-EuWau-Wau, Kayapó, Araribóia e Trincheira Bacajá.
O Ministério Público Federal (MPF) já reforçou pedido à Justiça Federal alertando para o iminente conflito entre invasores e indígenas contrários ao garimpo.
De acordo com o Deter, levantamento rápido de alertas de evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia, somente nas terras indígenas Munduruku e Sai Cinza, ambas do povo Munduruku, foram observados 219,82 hectares de desmatamento para realização da atividade garimpeira entre agosto 2020 e janeiro 2021.
“Matar esse passarinho no ninho”
“Mais uma vez se vê necessário ir para Brasília levar uns dois ônibus lotados de índios para nós tentarmos reverter esse quadro da Polícia Federal, que está preparada para vir aqui dentro da área indígena junto com Ibama e Exército, mas dessa vez é ordem judicial, não tem como eles saírem fora”, afirma Vilela, indicando que em outras operações comandadas por “Mourão” (vice-presidente general Hamilton Mourão) via “GLO” (Garantia da Lei e da Ordem) era mais fácil de resolver.
“Inclusive, estamos como réus porque estamos acobertando a área indígena e não estamos protegendo. Então, se faz necessário ir para Brasília para tentar matar esse passarinho no ninho e também ajudar no pedido do PL 191 para podermos legalizar nossa atividade dentro da terra indígena”.
Vilela indica na mensagem uma conta para depósito e quem será o indígenaresponsável por armar o esquema. O GLOBO teve acesso a dois comprovantes de depósito no valor de R$ 1 mil cada. “Vai ser um gasto grande dessa vez, mas vamos precisar de muita colaboração. A conta taí, o pedido do nosso amigo indigena, o Josias, tá aí também no grupo. E a hora é agora, gente. Se alguém quiser que não tenha operação em terra indígena e queira que essa lei seja aprovada, então é agora”.
Em outra gravação , o índio Josias Munduruku repassa o pedido de contribuição e convoca os demais para a manifestação em Brasília.
“Amigos garimpeiros. Venho pedir contribuição para nós fazemos uma viagem juntamente com lideranças que estão a favor do garimpo. Dia 15 queremos viajar para Brasília, fazer grande manifestação em prol do nosso garimpo, dentro do nosso território, e é por isso que venho pedir contribuição de cada um de vocês para que nós possamos ir para Brasília, lutar a favor da aprovação do PL 191. Dia 19 de abril , Dia do Índio, haverá grande manifestação em prol de mineração em nossas terras” .
O prefeito de Jacareacanga, Valdo do Posto (PSDB), disse ao GLOBO que não vai comentar o assunto por temer represálias dos garimpeiros. Vilela e Josias não foram localizados.
Prefeito incentiva “trabalho extra” de solteiras
Em outro áudio obtido pelo GLOBO, o prefeito de Itaituba, Valmir Climaco (MDB-PA), pede que desempregados da região procurem o garimpo como opção de trabalho e sugere que mulheres solteiras, “além de cozinhar e lavar as roupas para garimpeiros, têm grandes chances de ganhar um dinheirinho” extra.
“Quero dar um recado para quem está desempregado. O município de Itaituba nunca viu um ouro tão caro, tão bom de preço, como está nesse momento. Só para vocês terem uma noção, eu mandei fazer uma pesquisa, que desde que cheguei aqui em 1977 até 2000, a média do preço do quilo do ouro era de US$ 8 mil a US$ 10 mil. Hoje o preço do ouro é US$ 60 mil, o quilo! Nunca se viu tanto ouro extraído da nossa região que nem agora”.
E completa:
“Você mulher que tem um marido preguiçoso, só para você ter uma noção: 30 gramas de ouro que uma cozinheira ganha no garimpo. Ela cozinha e ainda lava as roupas dos garimpeiros para receber um dinheirinho. E se ela for solteira, ainda faz outra coisa e ainda ganha outro dinheirinho”.
Ao GLOBO, o prefeito Climaco , que é garimpeiro, reafirmou as declarações do áudio. E disse que quando se referiu às mulheres solteiras, estava falando sobre namoro.
– Se elas quiserem arrumar namorado lá são livres – afirma.
Climaco nega que tenha colaborado com a caravana e afirma que “até onde sabe” nenhum garimpeiro de Itaituba, que fica a 410 quilômetros de Jacareacanga, deve seguir na viagem, mas admite que muitos residentes da cidade trabalham no garimpo da terra indígena. Ele diz desconhecer a decisão do STF sobre a retirada de garimpeiros da região.
Matéria originalmente publicada pelo jornal O Globo. Acesse.