Sonia Guajajara, 47, liderança da Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, é formada em letras e em enfermagem, com especialização em educação especial. Foi vice-coordenadora da Cúpula dos Povos na Conferência Rio+20, além de primeira indígena a participar de uma candidatura à Presidência da República, em 2018, como vice de Guilherme Boulos, pelo PSOL, partido ao qual atualmente é filiada. Integra ainda a coordenação-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a Apib, e a Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, a Anmiga.
Em entrevista à Folha de São Paulo, Guajajara disse que os indígenas não vão abrir mão de suas terras e que retornarão a Brasília nesta terça-feira (5) para pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a decidir contra o marco temporal. A Apib ainda levará a questão das demarcações a Glasgow, na COP-26, a fim de angariar mais apoio para a causa.
A tese debatida no Supremo, não prevista no texto constitucional, cria um novo critério para demarcações: os indígenas que não estivessem em suas terras na data da promulgação da Constituição de 1988 não teriam direito de reivindicar a demarcação da área —o que ignoraria o histórico de expulsões e violência contra os diferentes povos. Ruralistas afirmam que a regra traria segurança jurídica, pois limitaria desapropriações.
Ela fala ainda sobre a possibilidade de se candidatar em 2022, a proximidade do movimento indígena com partidos de esquerda e sobre a violência doméstica indígena.
O acampamento Luta pela Vida foi a maior mobilização indígena desde a Constituinte, chamando a atenção de uma parte da população brasileira não só para a luta dos direitos territoriais indígenas, mas também para o enfrentamento ao bolsonarismo e para a defesa da diversidade. Como você avalia a evolução do movimento indígena desde a Rio+20?
Na Rio+20, nós conseguimos assinar a PNGATI [Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena] no governo Dilma Rousseff [PT]. Para nós, foi bem importante. Conseguimos ter cerca de 1.100 lideranças indígenas, transferindo o Acampamento Terra Livre (ATL) para o Rio de Janeiro. De lá para cá nós temos avançado com a presença indígena nos acampamentos em Brasília, e, neste ano, realizamos a maior mobilização desde a redemocratização.
Agora realizamos o ATL para pressionar sobre esse julgamento do marco temporal, para poder ganhar mais visibilidade, para a comunidade nacional e internacional entender o que está acontecendo. E nós seguimos no enfrentamento a Bolsonaro, por tudo que ele vem fazendo contra os direitos dos povos indígenas, os direitos sociais da população brasileira, os direitos ambientais. Nós entendemos que é uma luta coletiva, não só nossa, mas de todas as pessoas que pensam num futuro para as próximas gerações. E, claro, lutar também ainda por um presente em que a gente viva, e não só sobreviva.
Com a suspensão do julgamento da tese do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quais são as prioridades agora do movimento indígena para sustentar a mobilização?
Além do marco temporal, nós temos também o projeto de lei [PL] 490, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, que a qualquer momento pode ir para o plenário e depois para o Senado. Tem também o PL 191, que autoriza mineração nos territórios indígenas, tem o PL 2.633, o PL da Grilagem, que foi aprovado já na Câmara e seguiu para o Senado.
Nós vamos voltar a Brasília em 5 de outubro, no aniversário da Constituição de 1988. Vamos estar lá com estudantes indígenas e quilombolas pela manutenção desses estudantes no ensino superior. Estaremos lá mais uma vez para acompanhar todas as agendas do Congresso também. Em novembro, estamos preparando uma outra mobilização e nossa delegação para participar da COP-26 em Glasgow.
Alguns representantes do agronegócio dizem que há terras que foram colocadas no mercado imobiliário pelo Estado e adquiridas de boa-fé por proprietários e que uma decisão contrária a essa tese geraria muita insegurança jurídica no campo. Como vocês têm respondido a questões desse tipo?
Os ruralistas sempre agiram para acabar com os direitos territoriais dos povos indígenas. Quando eles falam que, se o marco temporal não passar, vai abrir uma insegurança jurídica, isso é uma falácia. Porque insegurança jurídica existe agora, com mais de 400 terras indígenas sem nenhuma providência do Estado e com mais outras 400 que têm já algum estudo, mas que o Estado tomou a decisão política de não concluir. Essa insegurança jurídica tem provocado muitos conflitos.
O marco temporal passando, vão aumentar ainda mais esses conflitos, porque os povos indígenas não vão abrir mão dos seus territórios. Esses territórios que eles falam tanto, que foram entregues pelo Estado no período da ditadura militar. O Estado brasileiro com todas as suas alianças, com o agronegócio, com a especulação imobiliária, com os fazendeiros.
Pela Constituição de 88, as terras indígenas deveriam ter sido demarcadas até 1993, cinco anos depois da promulgação, o que não aconteceu. O Supremo dando uma decisão contrária ao marco temporal, quais seriam as providências mais urgentes para o Estado brasileiro cumprir, enfim, essa obrigação constitucional?
Por mais que o Estado brasileiro insista, e a bancada ruralista sempre queira trazer esse argumento de que quase 14% do território brasileiro já é terra indígena, como um percentual alto, nós precisamos esclarecer que, desses 13%, 97% estão na Amazônia. E, mesmo esses 97% na Amazônia sofrem um processo muito grande de exploração ilegal, de invasão, de conflitos, e precisam de uma política efetiva de proteção.
As demais regiões do país têm um passivo muito grande de terras a serem demarcadas, são apenas 3% de território demarcado nessas áreas. Isso não quer dizer que, demarcando todas essas terras demandadas, esse número vá dobrar para 26% como eles insistem. São áreas menores as que estão sendo requeridas nas demais regiões.
O que significa dizer hoje que “o Brasil é terra indígena”?
O Brasil é terra indígena porque nós somos povos originários, cuidamos desse Brasil, brigamos por ele, pela manutenção dos nossos biomas. Se fala muito em defesa da Amazônia, que é importante, claro, a maior floresta tropical do mundo, mas nós temos aí o cerrado, a mata atlântica, que igualmente estão ameaçados. A caatinga, o Pantanal, os pampas, que, da mesma forma, precisam estar protegidos.
Hoje, dentro do Brasil, o que não é terra indígena está totalmente ameaçado. Basta você comparar as terras indígenas demarcadas ou habitadas por indígenas com as demais terras públicas. E, quando se compara com terras privadas, aí que o disparate é grande.
Nós estamos vivendo uma emergência climática e nós temos de entender o quanto é urgente proteger o meio ambiente. E, aqui no Brasil, proteger o meio ambiente é proteger os modos de vida dos povos indígenas.
A que você atribui que uma parcela da população urbana, inclusive muita gente que vive aí em condições bem precárias, enxergue a luta por direitos territoriais indígenas como um privilégio que não está assegurado para os outros brasileiros que não são índios?
Há um desconhecimento gigante da população. Muita gente não sabe nem que existe indígena no Brasil, acha que só tem indígenas na Amazônia. As escolas não estão preparadas para falar sobre sobre povos originários, sobre os quilombolas.
É preciso investimento mesmo no sistema educacional para mostrar a história a partir dos povos indígenas. Hoje nós temos escritores, muitos indígenas que estão trazendo essa história real, para além do que foi contado pelos próprios colonizadores.
Qual a pauta de reivindicações que a Apib pretende levar para a próxima conferência do clima, a COP26 em Glasgow?
A gente segue apresentando essa pauta da urgência da demarcação dos territórios indígenas. O outro tema é uma política efetiva de proteção ambiental no Brasil. Porque se apresentam metas, mas o que se faz aqui está na contramão do que tem de ser feito para reduzir as mudanças climáticas.
É preciso garantir leis que já existem. A legislação ambiental no Brasil está totalmente ameaçada, são mais de 200 projetos de lei no Congresso Nacional que têm foco na flexibilização. É preciso garantir uma legislação ambiental que venha reduzir, acabar com o desmatamento no Brasil.
Há pessoas que associam a luta indígena, de forma pejorativa, à esquerda, ao PT, a partidos de esquerda, progressistas. Como ampliar o apoio à causa indígena diante da polarização política no país?
É um absurdo essa atribuição aos indígenas, como simplesmente lideranças de esquerda, petistas. Mas o movimento indígena está realmente próximo dos partidos de esquerda, porque é o que se aproxima das nossas lutas. É o que defende as nossas pautas. Não tem como a gente estar lá no partido de direita, que está lutando contra nossos interesses, o tempo todo se colocando como inimigo.
É verdade que você pode deixar o PSOL para se filiar ao PT? E por que você faria esse movimento?
Olha, há um diálogo, mas ainda não tem uma decisão, até porque eu ainda nem decidi se vou ser candidata em 2022.
Você já teve oportunidade de discutir com lideranças do PSOL ou do PT o chamado neodesenvolvimentismo na Amazônia, que conduziu, por exemplo no governo Dilma Rousseff, à construção e a todos os impactos da usina hidrelétrica de Belo Monte na Amazônia?
É exatamente esse o ponto sensível de estar ou não no PT, ou num partido político que tenha essa visão desenvolvimentista. Nós vivemos muitas situações contraditórias no governo do PT. Belo Monte é um exemplo disso. Essas hidrelétricas no Tapajós, no Madeira, no Xingu, são exemplos desse embate com o governo Dilma.
Mas não podemos esquecer o quanto o PT fez de políticas afirmativas, de cotas, de bolsa permanência, de acesso à universidade, de habitação. Tivemos acesso a muitos programas, políticas afirmativas. Mas exatamente esse neodesenvolvimentismo na Amazônia nos faz pensar: o que seria diferente num governo do PT? Lula já disse diretamente que num outro possível governo ele jamais tomaria uma decisão sem consultar os povos indígenas. A gente quer acreditar que isso venha a ser verdade.
E sobre mercado de carbono, qual é a posição da Apib? Pode ser uma fonte de renda também?
Mercado de carbono é uma atividade ainda não regularizada no Brasil. Primeiro, acho que precisa ter mais informações, muito mais informações do quê que é isso, do que representa, do quanto vale. A segurança de que não é mais uma forma de tomar posse dos territórios indígenas. O mercado de carbono pode ser uma alternativa, mas desde que seja discutida, regularizada, e desde que seja um contrato bem elaborado sobre o que é permitido e o que é perigoso.
Você esteve com as mulheres guarani kaiowá durante o Levante pela Vida. Quais são as principais reivindicações delas nesse momento?
Terra, soberania alimentar e o combate à violência doméstica. Essa questão da violência doméstica é uma realidade em muitos povos, muitos territórios e nas guarani kaiowá isso está muito crescente.
Sonia Guajajara, 47
Formada em letras e enfermagem, é uma das lideranças da Terra Indígena Arariboia, no Maranhão. Atualmente filiada ao PSOL, foi a primeira indígena a participar de uma chapa à Presidência da República, como candidata a vice de Guilherme Boulos (PSOL), no pleito de 2018. É ainda coordenadora-executiva da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e membro da Anmiga (Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade)
Via Folha de São Paulo