Sem luz, sem água potável e sem perspectiva de melhora, o povo pataxó que vive no território de Ponta Grande, na região de Porto Seguro (BA), enfrenta, além da pandemia de covid-19 e das consequências da forte chuva que atingiu a região, uma decisão judicial que veta a “implantação de serviços básicos de qualquer natureza”. Na prática, o território não pode fazer melhorias em pontos de energia —já precários— ou obras de saneamento básico. As chuvas atingiram as poucas instalações elétricas, dificultando o uso de eletrodomésticos.
“A queda de energia é frequente, porque a rede daqui é ‘gato’ e somos cem famílias usando a mesma rede”, explica Thyara Pataxó, liderança indígena da aldeia Novos Guerreiros, uma das cinco aldeias pataxós localizadas no território.
As cinco aldeias —Mirapé, Nova Coroa, Txihí Kamaiurá e Ytapororoca, além da Novos Guerreiros— concentram cerca de mil famílias que foram duramente atingidas pelas chuvas no início deste mês. Thyara relata que, em meio ao drama de perderem suas casas, muitos têm sofrido com alergias e coceiras na pele por causa da má qualidade da água disponível para beber. “Usamos a água de poços artesianos construídos por nós”, diz. “Mas, com as chuvas e sem saneamento, ficamos com áreas de esgoto aberto que acabam contaminando os poços. Por falta de opção as famílias continuam bebendo desta água.”
A água retirada dos poços é amarela e apresenta um forte cheiro. Thaya afirma que a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) não considera a água própria para consumo. Procurada pelo UOL, a secretaria não retornou sobre o assunto. Lethicia Reis, assessora jurídica do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), afirma que a proibição também afetou a campanha de vacinação contra o coronavírus nas aldeias. “Não pudemos reforçar a distribuição de água para ter congelador que armazenasse as doses de vacina. Tivemos de colocar [os imunizantes] em outras terras indígenas”, explica ela. Marcelo Bloizi, advogado dos pataxós, observa que, mesmo no grupo prioritário da vacinação, os indígenas tiveram “sufocado o direito à saúde” pelo Poder Judiciário. “A gente sabe o quanto a água foi importante neste período de pandemia, principalmente para a higiene. Como você mantém a água potável numa área sem poder reformar as instalações?”, questiona.
Decisão segue pedido de reintegração de posse
A determinação judicial que proíbe obras para implementar luz e água no território veio do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) e acata um pedido da Goés Cohabita, tradicional construtora baiana que move o processo contra os pataxós desde 2003. A empreiteira tem um longo histórico de processos de reintegração de posse na área, sendo o primeiro deles em 1997. A decisão pegou não só as comunidades de surpresa como também os advogados, que alegam não terem sido informados deste pedido da empresa. “Isso é relativamente comum”, lamenta Lethicia Reis. A assessora jurídica do Cimi disse que é prática corriqueira a Funai (Fundação Nacional do Índio) ser citada em processos em vez de informarem à comunidade. Isso vem de um período anterior à Constituição de 1988.
“Antes, a Funai tinha uma atitude de garantir a permanência dos indígenas ali. Mas a situação ficou mais grave no governo de Jair Bolsonaro, porque o entendimento interno mudou. Agora, usam a tese da mínima defesa, em que só defendem aldeias indígenas já demarcadas.” Lethicia Reis, assessora jurídica do Cimi.
Além da natureza da decisão, surpreendeu também a data em que foi publicada: 13 de novembro de 2020, seis meses após o ministro Edson Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal), suspender qualquer ação de reintegração de posse em terras indígenas durante a pandemia ou antes que seja definida a votação do marco temporal, ainda em julgamento no Supremo. A defesa dos pataxós recorreu ao STF, mas o ministro Nunes Marques manteve a decisão do TRF-1. Em nota enviada ao UOL, o advogado Manoel Almeida Neto, representante jurídico da Goés Cohabita, afirma que o pedido foi feito em 2019, “após reiterados descumprimentos de ordens judiciais”, quando foram instalados pontos de luz por meio de um programa social do governo da Bahia. Almeida Neto argumenta que as instalações são ilegais, já que a área original não pode mais sofrer alterações desde que o processo de reintegração foi determinado. A defesa dos indígenas, por outro lado, disse que a presença deles no local é anterior à chegada da construtora e que, nos autos do processo, o procurador da Bahia conclui que a matrícula em nome da Goés Cohabita é irregular.
O parecer, publicado em 2015, de fato indica irregularidade na matrícula mãe —que foi desmembrada em várias outras no decorrer dos anos. Nos autos, consta que o terreno adquirido pela construtora não foi devidamente demarcado e que não há provas de que a área tenha sido cedida, doada ou vendida pelo estado da Bahia. “Vale observar que, se assim foi perpetrado o dito registro, em verdade fora levado indevidamente a registro no Cartório de Imóveis, mascarando “posses” em terras devolutas do Estado como se propriedades particulares fossem, criando-se, assim, a grande confusão fundiária existente no Estado da Bahia”, diz trecho do texto assinado pelo procurador estadual Odilair Carvalho Júnior.
Disputa pela área inclui outros processos Marcelo Bloizi compara o processo a uma hidra, representada na mitologia grega por uma criatura com várias cabeças de serpente; a cada cabeça que fosse cortada, nasciam outras no mesmo lugar. O desmembramento da matrícula mãe em várias outras originou uma série de medidas judiciais contrárias ao povo pataxó. É como uma hidra. Parece que você enfrenta um e já vêm os outros [processos], que entram com medidas judiciais contra para resguardar um direito de propriedade.” Marcelo Bloizi, advogado dos pataxós Bloizi também menciona uma decisão judicial de 1997 que reconheceu a presença dos indígenas na região antes da chegada da construtora. O processo (1997.33.01.001294-4) diz que “conclui-se ser a posse dos índios anterior à dos autores”. Embora a decisão não tenha sido localizada em sistemas eletrônicos de Justiça, ela é citada no segundo volume do “Tratado de Direito Constitucional”, coleção publicada em 2012 sob coordenação dos juristas Ives Gandra Martins, Gilmar Ferreira Mendes e Carlos Valder do Nascimento.
A Goés Cohabita afirma que em 2004 já contava com o reconhecimento da Justiça de que havia um “risco iminente de invasão de propriedade”. “Mesmo assim, em 2006, os indígenas invadiram a área privada e a Justiça converteu a decisão descumprida em reintegração de posse. Desde então, os indígenas vêm progressivamente ocupando a extensão da área em descumprimento às ordens judiciais e tentando junto do TRF-1 a supressão dos efeitos das decisões, sem sucesso”, diz o texto enviado por Almeida Neto. Bloizi argumenta que a decisão judicial também prejudica os pataxós na Justiça, já que o território ficou com pouca ou nenhuma energia e, diante das inundações provocadas da chuva, soma-se a dificuldade de deslocamento na região. “Até pedi a compreensão do MPF (Ministério Público Federal) para aceitar um recurso sem procuração diante das circunstâncias, porque eles estão sem energia elétrica para poder imprimir os papéis que necessitam de assinaturas e mesmo dificuldade de chegar a algum local onde possam fazer isso”, conclui. O TRF-1 estipulou que, em caso de manutenção da rede elétrica ou “continuidade de obras de distribuição de água na localidade”, a multa diária será de R$ 20 mil.
Matéria originalmente publicada no UOL em 23/12/2021