Foto: Tukuma Pataxó / Apib
Nesta segunda-feira (24), enquanto mais de 5 mil indígenas estabeleciam suas tendas e barracas para a mobilização do 19º Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília (DF), o povo Pataxó recebeu a notícia de que um de seus apelos foi atendido: em meio à escalada de violência que atinge seus territórios e comunidades no extremo sul da Bahia, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu uma medida cautelar em favor do povo.
Emitida por meio da Resolução 25/2023, em resposta ao pedido feito por um conjunto de organizações, a cautelar solicita que o Estado brasileiro “adote as medidas necessárias para proteger a vida e a integridade pessoal dos membros do povo indígena Pataxó”.Tais medidas, conforme destaca a CIDH, devem levar em consideração a cultura Pataxó e proteger os indígenas “inclusive de atos perpetrados por terceiros”.
A resolução também solicita ao Brasil que coordene as providências adotadas com os membros do povo Pataxó e seus representantes, e que informe a Comissão sobre as ações empreendidas para investigar os fatos que motivaram a denúncia, de modo a “evitar sua repetição” – ou seja, para impedir que uma nova cautelar da CIDH seja necessária.
A solicitação de medidas cautelares à CIDH foi feita por um conjunto de organizações indígenas e da sociedade civil, que incluem a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), a Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR), o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, a Conectas Direitos Humanos, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos, o Instituto Hori Educação e Cultura, a Justiça Global e a Terra de Direitos.
A medida cautelar refere-se, especificamente, aos Pataxó das Terras Indígenas (TIs) Comexatibá e Barra Velha do Monte Pascoal. Na resolução, a CIDH constatou que os indígenas destas áreas estão em “grave e urgente risco de dano irreparável aos seus direitos”.
Há anos, o povo Pataxó aguarda pela conclusão da demarcação destas duas terras. Nos últimos meses, como forma de proteger seu território e resistir à pressão do agronegócio, do setor hoteleiro e da especulação imobiliária, os Pataxó deram início a um processo de autodemarcação. Desde então, têm sofrido com uma violência intensa, contínua e desproporcional.
Entre setembro e janeiro, no intervalo de apenas cinco meses, quatro jovens Pataxó foram assassinados na região – entre eles, dois adolescentes. Gustavo Silva da Conceição, de apenas 14 anos, foi assassinado com um tiro nas costas durante um ataque de pistoleiros em setembro, na TI Comexatibá.
Em outubro, o corpo do Pataxó Carlone Gonçalves da Silva, de 26 anos, foi encontrado, depois dele ter desaparecido na TI Barra Velha. Em janeiro, Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, e o adolescente Nauí Brito de Jesus, de 16 anos, foram perseguidos e executados por pistoleiros numa estrada próxima a uma retomada realizada pelos Pataxó na TI Barra Velha do Monte Pascoal.
Nos últimos meses, os Pataxó foram alvo de “ameaças, cercos armados, tiroteios, difamação e campanhas de desinformação”, informaram as organizações proponentes à CIDH.
A participação de policiais nos ataques armados contra o povo Pataxó, evidenciada em investigações e relatada à CIDH, também chamou atenção do órgão interamericano.“A Comissão imprime particular seriedade às alegações de que parte das pessoas responsáveis pelos eventos de violência seriam agentes estatais, como policiais militares, pois estes exercem um papel relacionado à garantia e proteção de direitos”, aponta a resolução.
Algumas das ações adotadas pelo Estado são avaliadas positivamente pela CIDH, como o “monitoramento próximo” da situação pelo Ministério dos Povos Indígenas, a criação de um Gabinete de Crise pelo governo federal e a identificação de suspeitos dos assassinatos de Samuel, Nauí e Gustavo Pataxó – todos eles policiais militares.
Ainda assim, a CIDH ressalta que “há continuidade de um cenário de desproteção”, e que várias medidas propostas pelo Estado permanecem “pendentes de implementação”, como a realização de uma visita in loco do Gabinete de Crise aos territórios deflagrados, o avanço efetivo no processo administrativo de demarcação das terras Pataxó e medidas concretas para proteger as lideranças do povo incluídas no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humano.
A CIDH também destaca, entre as medidas necessárias e não efetivadas, o envio da Força Nacional de Segurança Pública à região – solicitado de forma reiterada pelo povo Pataxó e recomendado pelo próprio Gabinete de Crise.
Após o assassinato de Gustavo Pataxó, o governo estadual da Bahia chegou a estabelecer uma Força-Tarefa, formada basicamente por policiais militares, para atuar na região.“Mesmo com a Força-Tarefa da Secretaria de Segurança Pública da Bahia criada em 2022, não se impediu a concretização de dois assassinatos em janeiro de 2023”, aponta a Comissão. A análise da CIDH referenda as denúncias que vêm sendo feitas pelo povo Pataxó ao longo dos últimos meses.
“Eles [a Força-Tarefa] chegaram dizendo que vieram para apaziguar o conflito. Mas antes de sentar com os indígenas para saber o que estava acontecendo, eles foram primeiro sentar com os fazendeiros”, relata Uruba Pataxó, vice-cacica da aldeia Barra Velha, ou “aldeia mãe”, na TI Barra Velha.
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Solução, só com demarcação
Com limitações para circular pelo próprio território devido aos ataques e ameaças, o povo Pataxó tem sido firme em afirmar que a situação só poderá ser resolvida de forma definitiva com a demarcação de suas terras.
“Nossos territórios Barra Velha e Comexatibá estão passando por um momento difícil. Nós perdemos quatro jovens”, relatou o cacique Renato Pataxó, da aldeia Boca da Mata, na TI Barra Velha, numa das plenárias do 19º ATL.
“Passamos por quatro anos do genocídio de nosso povo. Quatro anos do latifúndio se armando para nos matar. E isso ainda está acontecendo: os Pataxó do sul da Bahia sofrendo ataque, os Guarani e Kaiowá sofrendo ataque, e todos os parentes que estão na área de autodemarcação sofrendo ataque”, pontuou o cacique.
A reivindicação e o relato da jovem liderança Pataxó refletem-se, também, na pauta e nas reivindicações dos cerca de seis mil indígenas de diversos povos e de todas as regiões do país que participam da mobilização na capital federal. A demarcação de todas as terras reivindicadas pelos povos originários é uma das principais pautas do ATL 2023.
“O que a gente pede é que nosso território, e não só o nosso, mas todos os territórios indígenas no Brasil, sejam demarcados, para que nossos parentes não morram mais. É muito difícil ver nossos parentes caírem e a gente não poder falar”, afirmou o cacique Renato.
“A terra é sagrada para nós. Se para eles a terra é negócio, para nós é vida. É onde nós plantamos, colhemos, bebemos nossa água cristalina. Eles em cima estão devastando, envenenando nossas águas, e nós estamos embaixo, bebendo água envenenada”, apontou o Pataxó.
Recomendações da CIDH ao Estado brasileiro:
1. adote as medidas necessárias para proteger a vida e a integridade pessoal dos membros do Povo Indígena Pataxó conforme identificados, inclusive de atos perpetrados por terceiros, levando em consideração a pertinência cultural das medidas adotadas;
2. coordene as medidas a serem adotadas com as pessoas beneficiárias e seus representantes; e
3. informe sobre as ações adotadas para a investigação dos fatos que motivaram a adoção desta medida cautelar e, assim, evitar sua repetição.