O julgamento do RE 1.017.365, que busca definir, com repercussão geral, a constitucionalidade da fixação da tese do “marco temporal” para a demarcação de Terras Indígenas no Brasil, voltou à pauta do Supremo Tribunal Federal na última quarta-feira, 20 de setembro. O voto do Ministro Dias Toffoli consolidou a atual maioria de 5 votos contrários à tese do marco temporal, contra dois favoráveis – proferidos pelos Ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça. No entanto, ao contrário dos outros ministros e com temática alheia à discutida no processo, Toffoli optou por expandir os temas analisados e incluiu a possibilidade de aproveitamento de recursos hídricos, orgânicos e minerais de Terras Indígenas, sob o argumento de que o tema sofre com uma suposta omissão legal e prejudica o desenvolvimento econômico do país.
A APIB vem por meio deste documento manifestar sua profunda preocupação com a proposta do Ministro, considerando a possibilidade de que o Tribunal determine ao atual Congresso Nacional, amplamente ruralista e contra os Direitos Indígenas, a edição de Lei ordinária sobre este tema, sem que tenha havido a devida participação dos Povos Indígenas neste processo. Dessa forma, tal “outorga” ao Poder Legislativo, no que se refere à definição jurídico-normativa sobre a mineração em Terras Indígenas, além de se tratar de tema alheio ao discutido no julgamento do STF, representa, na prática, a alta possibilidade de instituição de diploma contrário aos interesses indígenas no país, em vista à atual configuração do Congresso Nacional brasileiro.
A mineração em Terras Indígenas, atividade por meio da qual se pretende autorizar toda sorte de exploração econômica de territórios tradicionais, possui alto grau de prejudicialidade à garantia e manutenção dos Direitos dos Povos Originários, além de ameaçar diretamente sua sobrevivência física, religiosa e cultural. A história recente nos mostra que a existência de empreendimentos para extração de recursos hídricos, orgânicos (hidrocarbonetos) e minerais, na prática, gera a destruição de territórios indígenas, a contaminação das populações por agentes biológicos e químicos, como o mercúrio, e o esgarçamento do tecido social destas comunidades, além de enfraquecer ou inviabilizar sua Soberania Alimentar e submeter mulheres e crianças à violência física e sexual.
Alheia ao julgamento, esta discussão sobre o aproveitamento econômico de Terras Indígenas foi justificada por Dias Toffoli pelo mesmo argumento que levou à aprovação do regime de urgência na tramitação do PL 191/2020, no início de 2022. Naquele momento, o governo bolsonarista e seus aliados na Câmara dos Deputados exploraram a dependência brasileira de fertilizantes russos para pressionar pela aprovação deste projeto de lei que, se não revoga os Direitos Territoriais Originários de Posse e Usufruto Exclusivo, os relativiza ao limite.
Segundo estes atores políticos, somente a exploração mineral – especialmente de potássio – em Terras Indígenas evitaria um colapso econômico do país. O que se seguiu, foi uma série de estudos comprovando que as maiores reservas de potássio e demais minerais utilizados na produção de fertilizantes agrícolas não residem em Terras Indígenas. O relatório “Crise dos fertilizantes no Brasil: da tragédia anunciada às falsas soluções”, de autoria de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais, indicou que 90% das reservas deste mineral em solo amazônico encontram-se fora de Terras Indígenas e, nacionalmente, se dividem entre os estados do Amazonas (21%), Sergipe (4%), Minas Gerais e São Paulo (que, somados, abrigam 75% das reservas). Dados da própria Agência Nacional de Mineração e do Serviço Geológico do Brasil indicam que apenas 11% das jazidas de sais de potássio se sobrepõem a Terras Indígenas. É muito preocupante, portanto, que o Ministro Dias Toffoli faça uso de uma retórica sem fundamentação concreta para justificar a inserção de uma tese prejudicial – e sem nenhuma conexão com o caso em discussão – no julgamento mais importante do século para os Povos Indígenas e para a sociedade brasileira.
Dessa forma, a proposta de tese a ser fixada não encontra respaldo no arcabouço jurídico nacional, que restringe e, em alguns casos, até mesmo veda a exploração econômica de Terras Indígenas. Além disso, é certo que o atual diploma processualista brasileiro, por inteligência do art. 10 do Código de Processo Civil, veda a prolação das chamadas “decisões surpresa”, em vista ao cerceamento do contraditório e ampla defesa das partes. No caso em questão, o Ministro adentrou no mérito da regulamentação da mineração em terras indígenas sem ter dado às partes oportunidade de se manifestar, de forma a anular, implicitamente, a consulta aos representantes das comunidades indígenas atingidas pelo julgamento, bem como dos órgãos indigenistas que possuem norte à proteção e garantia dos direitos originários.
Ainda, o Ministro motiva a necessidade de regulamentação § 1º do art. 176 e o § 3º do art. 231 da Constituição Federal por decorrência do avanço recente do garimpo ilegal e de outras explorações íliticas nas áreas protegidas, as quais, segundo o magistrado, encontram-se entregues à ilegalidade, gerando alto custo ao país, em vista do impacto no Meio Ambiente e do cenário de emergência humanitária observado, por exemplo, na Terra Indígena Yanomami, altamente atingida pela invasão de garimpeiros, grileiros e demais empresários com interesses na exploração dos territórios indígenas do país.
A escala e intensidade do garimpo ilegal em tal Terra Indígena cresceu exacerbadamente nos últimos cinco anos. Dados do Mapbiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, entre os anos de 2016 a 2020 o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3350%.
Este cenário, porém, não é fruto de mera omissão legislativa. Os últimos anos foram marcados por uma política anti-indígena que desmontou e desfinanciou os órgãos responsáveis pela implementação da Política Indigenista Nacional e pelo controle ambiental. Um dos eixos desta política se estruturou justamente sobre facilitação da abertura de Terras Indígena à exploração econômica, combinando o estrangulamento de instituições de proteção socioambiental com discursos e sinalizações públicas em favor de agentes econômicos interessados nesta exploração ilegal, que se viram incentivados a cometerem ilícitos ambientais com a garantira de que não seriam punidos.
Sabe-se que nos últimos quatro anos houve o desmantelamento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), principal órgão de proteção indígena, a partir da nomeação, por Jair Bolsonaro, do delegado Marcelo Xavier para presidir o órgão, o qual, dolosamente, buscou gerenciar a autarquia a partir de interesses opostos às Garantias Constitucionais dos Povos Indígenas. Cenário semelhante ocorreu com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), a qual, encarregada da proteção à saúde originária e presidida anteriormente pelo militar Robson Santos da Silva, também nomeado pelo antigo gestor do executivo federal, contribuiu com o genocídio étnico dos povos tradicionais, principalmente na negligência observada no combate à COVID-19. Nesse sentido, é certo que o cenário de aumento do garimpo ilegal e o alto impacto às comunidades indígenas e ao Meio Ambiente do país é resultado do enfraquecimento de Políticas Públicas voltadas à proteção e preservação dos povos e cultura originários e não à omissão legislativa, em nada se assemelhando à conjuntura apresentada por Dias Toffoli.
Ainda, a Constituição Federal prevê regimes legais diferenciados para a mineração e para o garimpo. A mineração corresponde a uma atividade econômica e industrial que consiste na pesquisa, exploração, lavra (extração) e beneficiamento de minérios presentes no subsolo. O processo de minerar passa pela extração de minerais e envolve várias etapas a serem seguidas até se chegar ao seu produto final, são elas: pesquisa e exploração, lavra e beneficiamento. O garimpo, por sua vez, é uma atividade extrativista que tem como objetivo a obtenção de minérios, em teoria, de cunho artesanal e empregando pouca ou nenhuma tecnologia avançada. Também possui especial proteção pela Constituição Federal, tendo em vista a expressa proibição da prática em Terras Indígenas (art. 231, § 7º).
No que se refere aos marcos legais sobre a mineração em Terras Indígenas, o parágrafo 6º do art. 231 da Constituição Federal determina que são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação e a posse das Terras a que se refere o artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nela existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção, direito a indenização ou à ações contra a União, salvo na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
A extração de minérios em Terras Indígenas e as respectivas discussões jurídicas sobre o tema impactam diretamente na vida em comunidade de tais povos, de modo que deve haver, conforme art. 6 da Convenção 169 da OIT, consulta aos povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de instituições representativas como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI).
Dessa forma, observa-se que a Constituição Federal condiciona o aproveitamento mineral de Terras Indígenas a duas exigências: prévia autorização do Congresso Nacional e a oitiva das comunidades afetadas, após a efetiva tramitação da Lei Complementar que visa regulamentar os artigos da Constituição Federal que tratam sobre a questão.
Frente a tais condicionantes, o Ministro Dias Toffoli propõe que o STF estabeleça o prazo de 12 meses ao Congresso Nacional para que se legisle sobre o tema. Esta proposta é extremamente preocupante. O julgamento do RE 1.017.365 tem repercussão geral e definirá o estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional. Nem o caso concreto nem a tese de repercussão geral versam sobre o aproveitamento econômico das terras indígenas, mas exclusivamente das relações de posse delas derivadas.
A inserção de um posicionamento definitivo do STF sobre a exploração econômica desses territórios, nestes termos, viola o devido processo legal, garantido pelo art. 5, LIV, da Constituição Federal, ao não permitir que os reais interessados e impactados pela decisão se manifestem de maneira informada e em tempo hábil sobre o tema.
Além disso, o Ministro parece ignorar a realidade enfrentada pelos Povos Indígenas. Se o Tribunal tem autonomia para não se pautar pela situação política do país, os Povos Originários não podem ignorar que o Ministro propõe que seja o atual Congresso Nacional a decidir sobre o futuro de suas Terras, no exíguo prazo de 12 meses. Este Congresso Nacional, composto por ruralistas e ex-ministros do Governo Bolsonaro diretamente envolvidos na implementação da supramencionada política anti-indígena, essa sim, responsável pelo crescimento da invasão e da exploração ilegal de Terras Indígenas. A mesma Câmara dos Deputados que aprovou o PL 490/07 por 283 votos e o mesmo Senado Federal que aprovou o PL 2903/2023 na Comissão de Reforma Agrária e Agricultura, e agora se recusa a realizar Audiência Pública na Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça.
Os Povos Indígenas brasileiros estão enfrentando uma grave ofensiva contra seus Direitos Originários de Posse e Usufruto Exclusivo sobre seus territórios. O Supremo Tribunal Federal tem em mãos o maior julgamento social e climático do século, do qual dependem o futuro dos Povos Indígenas e o projeto de nação que deriva da Constituição Federal de 1988. Não podemos permitir que essa decisão seja tomada sem a devida participação dos Povos Indígenas e que seja este o Congresso Nacional responsável por decidir sobre a existência dos territórios originários que garantem a vida e o equilíbrio climático do Planeta.
Mauricio Terena
Coordenador Jurídico da APIB
OAB/MS 24.060
Giovanna Dutra Silva Valentim
Assessora Jurídica da APIB
OAB/SP 485.585
Iorrannis Luiz Moreira da Silva
Secretário Jurídico da APIB
Advogado OAB/MS 27.100