Nesta‬‭ segunda-feira,‬‭ 12‬‭ de‬‭ maio‬‭ de‬‭ 2025,‬‭ retomam-se‬‭ os‬‭ trabalhos‬‭ da‬‭ Câmara‬‭ de‬ Conciliação‬‭ sobre‬‭ a‬‭ Lei‬‭ nº ‬‭ 14.701/2023,‬‭ conhecida‬‭ como‬‭ “Lei‬‭ do‬‭ Marco‬‭ Temporal.‬‭ Em‬‭ abril,‬ a‬‭ Câmara‬‭ dos‬‭ Deputados‬‭ e‬‭ o‬‭ Senado‬‭ Federal‬‭ solicitaram‬‭ a‬‭ prorrogação‬‭ do‬‭ prazo‬‭ para‬‭ a‬ conclusão‬‭ da‬‭ análise‬‭ do‬‭ anteprojeto‬‭ de‬‭ lei‬‭ complementar,‬‭ pedido‬‭ seguido‬‭ pela‬‭ Advocacia-Geral‬‭ da‬‭ União‬‭ (AGU).‬‭ A‬‭ sessão‬‭ de‬‭ hoje‬‭ dá‬‭ continuidade‬‭ à‬‭ leitura‬‭ a‬‭ partir‬‭ do‬ artigo‬‭ 19‬‭ do‬‭ texto‬‭ apresentado‬‭ pelo‬‭ gabinete‬‭ de‬‭ Gilmar‬‭ Mendes‬‭ e,‬‭ ao‬‭ mesmo‬‭ tempo,‬‭ lê‬ artigos‬‭ correspondentes‬‭ (se‬‭ existirem)‬‭ na‬‭ proposta‬‭ apresentada‬‭ pela‬‭ AGU.‬‭ As‬‭ audiências‬ estão previstas para se encerrar em 25 de junho de 2025.‬

A‬‭ Articulação‬‭ dos‬‭ Povos‬‭ Indígenas‬‭ do‬‭ Brasil‬‭ se‬‭ retirou‬‭ desse‬‭ processo‬‭ por‬ considerá-lo‬‭ ilegítimo‬‭ e‬‭ inconstitucional.‬‭ O‬‭ espaço‬‭ de‬‭ negociação‬‭ foi‬‭ instituído‬‭ sem‬‭ a‬‭ devida‬ consulta‬‭ aos‬‭ povos‬‭ indígenas,‬‭ em‬‭ clara‬‭ violação‬‭ ao‬‭ artigo‬‭ 6º da‬‭ Convenção‬‭ 169‬‭ da‬‭ OIT,‬ ignorando‬‭ recursos‬‭ e‬‭ denúncias‬‭ apresentados‬‭ ao‬‭ longo‬‭ do‬‭ tempo‬‭ pela‬‭ organização,‬ reconhecida por sua legítima representação indígena.‬

‭Mais‬‭ uma‬‭ vez,‬‭ reiteramos‬‭ a‬‭ preocupação‬‭ com‬‭ o‬‭ andamento‬‭ das‬‭ audiências‬ conduzidas‬‭ pelo‬‭ ministro‬‭ Gilmar‬‭ Mendes.‬‭ Sob‬‭ a‬‭ justificativa‬‭ de‬‭ reunir‬‭ sugestões‬‭ e‬‭ buscar‬ alternativas‬‭ de‬ “meio-termo” entre‬‭ os‬‭ interesses‬‭ dos‬‭ povos‬‭ indígenas‬‭ e‬‭ do‬‭ agronegócio,‬‭ seu‬ gabinete‬‭ extrapolou‬‭ os‬‭ limites‬‭ do‬‭ papel‬‭ de‬‭ relator,‬‭ ultrapassando‬‭ o‬‭ escopo‬‭ da‬‭ Lei‬‭ nº 14.701/2023‬‭ e‬‭ dos‬‭ debates‬‭ travados‬‭ na‬‭ Comissão‬‭ Especial.‬‭ A‬‭ iniciativa‬‭ de‬‭ apresentar‬‭ um‬ anteprojeto‬‭ de‬‭ lei‬‭ oriunda‬‭ de‬‭ um‬‭ ministro‬‭ do‬‭ Supremo‬‭ Tribunal‬‭ Federal‬‭ é,‬‭ por‬‭ si‬‭ só,‬ inadequada;‬‭ além‬‭ disso,‬‭ o‬‭ conteúdo‬‭ da‬‭ proposta‬‭ representa‬‭ graves‬‭ retrocessos,‬‭ o‬‭ chamado‬ relevante‬‭ interesse‬‭ público‬‭ da‬‭ União‬‭ nesses‬‭ territórios‬‭ (Art.‬‭ 231,‬‭ §6º),‬‭ além‬‭ de‬‭ modificar‬ substancialmente‬‭ o‬‭ procedimento‬‭ administrativo‬‭ de‬‭ demarcação‬‭ previsto‬‭ no‬‭ Decreto‬‭ nº 1.775/1996,‬‭ prevê‬‭ a‬‭ criminalização‬‭ de‬‭ retomadas‬‭ indígenas,‬‭ remoção‬‭ forçada‬‭ de‬‭ indígenas‬ sob‬‭ justificativa‬‭ de‬‭ “Paz‬‭ Social”, revisão‬‭ e‬‭ reanálise‬‭ de‬‭ procedimentos‬‭ administrativos‬ demarcatórios‬‭ em‬‭ andamento,‬‭ fragilizar‬‭ o‬‭ direito‬‭ à‬‭ consulta‬‭ livre,‬‭ prévia‬‭ e‬‭ informada,‬ assegurado pela Convenção 169 da OIT.‬

‭Diante‬‭ do‬‭ exposto,‬‭ a‬‭ APIB‬‭ reafirma‬‭ sua‬‭ posição‬‭ contrária‬‭ ao‬‭ prosseguimento‬‭ dos‬ trabalhos‬‭ desta‬‭ Câmara‬‭ de‬‭ Conciliação,‬‭ considerando‬‭ que‬‭ os‬‭ direitos‬‭ fundamentais‬‭ dos‬ povos indígenas são inegociáveis.‬‭

De modo sucinto, elencamos os principais problemas que seguem em debate na Câmara de Conciliação:

● Proposta de Lei Complementar em detrimento da natureza ordinária da Lei no 14.701/2023 (Art. 1o): A Lei no 14.701/2023 se propôs a regulamentar exclusivamente o Art. 231 da Constituição Federal. Por essa razão, sua inconstitucionalidade formal deveria ter sido declarada, em vez de ser convertida em lei complementar e expandida para temas não originalmente tratados. A transformação da norma e a ampliação de seu escopo avançaram sobre propostas não debatidas previamente e que não deveriam partir de um Ministro do Supremo Tribunal Federal, ferindo a separação dos poderes e o devido processo legislativo. O Art. 1o da proposta de PLC estabelece, que sua finalidade é regulamentar o Art. 231 da Constituição, abrangendo o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão das terras indígenas – em especial, regulamentando a mineração (Art. 231, §3o) e o relevante interesse público da União em Terras Indígenas (Art. 231, §6o), além dos dispositivos constitucionais que tratam da autorização do Congresso Nacional e da concessão da União para pesquisa e lavra mineral (Arts. 49, XVI, e 176, §1o), bem como da competência da Justiça Federal para julgar disputas sobre direitos indígenas (Art. 109, XI);

● Regulamentação do “Relevante Interesse Público da União” em Terras Indígenas (Art. 21): O anteprojeto de Lei Complementar define que obras de infraestrutura, exploração mineral e atividades de defesa nacional podem restringir o usufruto exclusivo indígena. A proposta de Lei Complementar advém do reconhecimento, pelo Gabinete do Ministro Gilmar, de que haveria uma omissão inconstitucional do Congresso em não editar a referida lei. No entanto, trata-se de discricionariedade do Congresso regulamentar a matéria e APIB e União alertam que a medida atende antes a interesses privados do que ao chamado “relevante interesse público”, facilitando a exploração econômica das terras indígenas;

● Fragilização da Consulta Prévia, Livre e Informada (Arts. 27 a 31): A proposta esvazia o direito à consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas, constante na Convenção 169 da OIT, ao transformar o processo em uma mera formalidade, sem garantir sua efetiva influência nas decisões. Apesar de listar diretrizes como respeito à diversidade cultural e transparência, o texto impõe limitações ao estabelecer que, mesmo diante da manifestação contrária das comunidades, atividades e empreendimentos poderão prosseguir com base em critérios vagos de “interesse público” e “proporcionalidade”. Além disso, ao concentrar no Presidente da República o poder de autorizar a continuidade das atividades contra a vontade dos povos indígenas, a proposta enfraquece a autodeterminação dessas comunidades e facilita a imposição de projetos potencialmente prejudiciais a seus territórios e modos de vida;

● Criminalização das Retomadas Indígenas (Arts. 82 a 88): Proíbe retomadas antes da desocupação voluntária por não-indígenas ou da conclusão da demarcação, o que pode levar à criminalização de comunidades indígenas e justificar ações policiais estaduais contra elas. A proposta do Ministro Gilmar Mendes prevê que, para as áreas ocupadas até 23 de abril de 2024 – data em que o mesmo suspendeu as ações judiciais contra a Lei no 14.701/2023 -, Polícia Federal, Força Nacional e Polícia Militar deverão empreender protocolos de negociação para a desocupação em 30 dias. Já para retomadas indígenas posteriores a esta data, será determinada a remoção imediata, sem possibilidade de mediação pelas Comissões de Soluções Fundiárias, criadas pela Resolução CNJ no 510/2023, por determinação do STF na ADPF no 828. Vale lembrar que, no Caso Raposa Serra do Sol, o STF reconheceu a legitimidade das retomadas indígenas diante da inércia do Estado, que deveria ter concluído a demarcação desses territórios em cinco anos após a promulgação da Constituição;

● Remoção Forçada de Indígenas sob justificativa de “Paz Social” (Art. 6o, §13, III): Estabelece que, em casos em que seja “demonstrada a absoluta impossibilidade da demarcação” e “buscando a paz social”, o Ministério da Justiça e Segurança Pública poderá realizar uma “compensação” às comunidades indígenas, concedendo “terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas”, o que remonta às remoções forçadas de indígenas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e é rechaçado pela Constituição Federal de 1988. Não são objeto de definição objetiva, por fim, o que caracterizaria a impossibilidade de demarcação e a quem atenderia a compensação aos indígenas visando a “paz social”.

● Substituição da Demarcação de Terras Indígenas por Desapropriação de Interesse Social (Art. 89, §4o): A partir de um ano após a aprovação da referida Lei Complementar, novos pedidos de demarcação serão considerados apenas para áreas onde houver comprovação da presença de povos indígenas isolados. A minuta estabelece que a FUNAI deverá publicar, em uma “lista pública”, no prazo de até 60 dias após a entrada em vigor da lei, os pedidos de demarcação apresentados pelos indígenas, devendo essa lista ser atualizada mensalmente em caso de novas solicitações. Contudo, o texto prevê que as reivindicações feitas após um ano da divulgação dessa lista serão processadas exclusivamente por meio de desapropriação por interesse social, exceto nos casos em que houver identificação posterior de indígenas isolados, situação em que se aplicará o procedimento regular de demarcação;
● Indenização por Terra Nua a Ocupantes Não Indígenas (Arts. 10 a 12): A proposta prevê que, após a homologação e antes do registro da terra indígena, ocupantes não indígenas com posse direta, contínua e anterior a 5 de outubro de 1988 sejam reassentados ou indenizados pela terra nua e benfeitorias; caso contrário, apenas benfeitorias úteis e necessárias serão compensadas. A terra nua será avaliada conforme a tabela do ITR, que é um valor próximo ao valor de mercado, com pagamento em dinheiro ou permuta de imóvel equivalente. Além de não estar prevista na Constituição, a indenização por terra nua pode inviabilizar demarcações e comprometer políticas indigenistas, como no caso Nhanderu Marangatu, cuja indenização total alcançou metade do orçamento anual da FUNAI em 2024;

● Direito de Retenção de Particulares até Recebimento da Indenização (Art. 11, §2o): A proposta garante o direito de retenção ao não-indígena, permitindo sua permanência na área até o pagamento do valor incontroverso da indenização da terra nua e das benfeitorias em dinheiro ou título da dívida agrária, se for do seu interesse. Ocorre que não se pode admitir que o direito de retenção seja utilizado pelo particular para impedir a realização do dever constitucional da União de demarcar as Terras Indígenas, impondo que a procrastinação na definição do valor da indenização impeça o acesso da comunidade indígena a seu território tradicional, o que é objeto de embargos de declaração da União e do Povo Xokleng no RE 1017365/SC (Tema 1031) pendentes de julgamento;

● Definição de Renitente Esbulho para fins indenizatórios restrita a Conflito Físico ou Controvérsia Judicial (Art. 4o, §1o): Outro ponto da proposta que também deve aguardar o julgamento dos embargos de declaração no RE 1017365/SC é a definição de renitente esbulho. Isso porque, nos termos do Item IV do Tema 1031, caso exista renitente esbulho contemporâneo à promulgação da Constituição, somente serão indenizadas as benfeitorias úteis e necessárias. Uma definição restritiva do renitente esbulho que requer da comunidade indígena a comprovação de conflito físico ou a judicialização de demanda possessória desconsidera a remoção forçada dos povos indígenas de suas terras pelo próprio Estado e o paradigma tutelar que os impedia de acessar a justiça diretamente. Razão pela qual se requer, em sede de embargos, definição mais ampla do renitente esbulho no que diz respeito à sua vinculação à presença indígena na área segundo seus usos, costumes e tradições;

● Ampliação da Participação de Entes Federados e Terceiros no Processo de Demarcação antes da Delimitação da Ocupação Indígena (Art. 6o, II, b e Art. 5o, §§2o e 3o): Estados e municípios poderão participar dos grupos técnicos desde o plano de trabalho, ao indicar técnicos para acompanhar estudos de demarcação, ampliando a influência de interesses econômicos locais. Também é prevista a intimação de proprietários rurais antes mesmo da definição do perímetro da área de ocupação indígena. Esse mecanismo enfraquece o direito indígena ao território ao permitir interferências no processo antes da conclusão dos estudos técnicos e
publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação. A proposta exige, ainda, a gravação de informações orais de indígenas, comprometendo a metodologia antropológica. Além disso, facilita contestações, tornando o processo mais lento;

● Revisão e Reanálise de Procedimentos Administrativos Demarcatórios (Art. 89): Determina que processos de demarcação não finalizados devem seguir novas regras, alterando critérios técnicos já consolidados. Apenas terras já declaradas e homologadas e os RCIDs já aprovados permaneceriam resguardados. Além disso, processos decisórios no Ministério da Justiça e na Presidência da República precisarão se adequar às novas normas, incluindo as regras de indenização. Trata-se de imposição de reanálise arbitrária e protelatória, dado que a retroatividade da lei aos procedimentos administrativos em curso afronta os Arts. 5o, incisos incisos XXXVI, LXXVIII e Art. 37, caput pois lei nova não pode atingir direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, tampouco a Administração Pública poderia inobservar a eficiência e a celeridade processual de seus atos administrativos;

● Redimensionamento de Terras Indígenas (Art. 14): A proposta restringe, ao período de cinco anos contados da demarcação, o direito da comunidade indígena solicitar a revisão da extensão do seu território por descumprimento do Art. 231. Ainda que esteja de acordo com o que o STF decidiu no Tema 1031, há questionamentos sobre o prazo decadencial desse direito constitucional pendentes de julgamento nos embargos ao RE 1017365/SC (Caso Xokleng). Tendo em vista que a imposição desse prazo impediria a correção de demarcações feitas em desacordo com o artigo 231 da Constituição, mesmo quando comprovado erro grave e insanável. Além disso, o STF
já consolidou o entendimento de que atos administrativos flagrantemente inconstitucionais não podem ser protegidos pela decadência legal, garantindo que a revisão de processos demarcatórios possa ocorrer sempre que houver violação dos direitos indígenas assegurados constitucionalmente.

Diante destas considerações, o espaço da câmara de conciliação se tornou um espaço
ilegítimo e inconstitucional