Confira a análise jurídica da APIB sobre o voto do ministro Gilmar Mendes, relator do julgamento sobre a (in)constitucionalidade da Lei do Genocídio Indígena (Lei 14.701/23). O ministro reafirmou que o marco temporal é inconstitucional e apontou à omissão inconstitucional da União em demarcar os territórios indígenas no prazo fixado pelo Art. 67 do ADCT. Abaixo, confira os pontos controversos do seu voto:

1. Possibilidade de oferta de terras alternativas às tradicionalmente ocupadas:
Estabelece que, em casos em que seja “demonstrada a absoluta impossibilidade da demarcação” o Ministério da Justiça e Segurança Pública poderá realizar uma “compensação” às comunidades indígenas, concedendo “terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas”, o que remonta às remoções forçadas de indígenas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e é rechaçado pela Constituição Federal de 1988. Não são objeto de definição objetiva, por fim, o que caracterizaria a impossibilidade de demarcação;

2. Substituição da demarcação de terras indígenas por desapropriação de interesse social: 

A partir de um ano após o trânsito em julgado do processo, novos pedidos de demarcação serão considerados apenas para áreas onde
houver comprovação da presença de povos indígenas isolados. O voto estabelece que a Funai deverá publicar, em uma “lista pública”, no prazo de até 60 dias após a entrada em vigor da lei, os pedidos de demarcação apresentados pelos indígenas, devendo essa lista ser atualizada mensalmente em caso de novas solicitações. Contudo, o texto prevê que as reivindicações feitas após um ano do trânsito em julgado do processo serão processadas exclusivamente por meio de desapropriação por interesse social, exceto nos casos em que houver identificação posterior de indígenas isolados, situação em que se aplicará o procedimento regular de demarcação;

3. Oferta de exploração econômica a territórios indígenas:

O voto do Ministro Gilmar Mendes aumenta a possibilidade de exploração econômica de territórios indígenas, mediante turismo e cooperação/contratação de terceiros não-indígenas, sem vetar atividades consideradas extremamente danosas (como pecuária e agricultura extensiva), atualmente proibidas em terras indígenas. O voto garante a permanência de contratos fraudulentos que
visam, na maior parte das vezes, arrendar partes dos territórios. Igualmente, permite a realização de exploração pelo Estado, como a mineração e aproveitamento dos recursos hidridicos, sem a anuência da comunidade indígena, de maneira a incluir a consulta livre, prévia e informada apenas como uma etapa formal, sem vinculação ou garantia do posicionamento coletivo da comunidade como um veto efetivo à realização da atividade com alto potencial de destruição;

4. Ampliação da participação de entes federados e terceiros no processo de
demarcação antes da delimitação da ocupação indígena:

Estados e municípios poderão participar dos grupos técnicos desde o início do procedimento demarcatório, ao indicar técnicos para acompanhar estudos de demarcação, bem como determina que poderá ser solicitada a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos multidisciplinares e fundiários, ampliando a influência de interesses econômicos locais. Esse mecanismo enfraquece o direito indígena ao território ao permitir interferências no processo antes da conclusão dos estudos técnicos e publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação. A proposta exige, ainda, a gravação de informações orais de indígenas, comprometendo a metodologia antropológica. Além disso, facilita contestações, tornando o processo mais lento;

5. Fragilização da consulta prévia, livre e informada: O voto esvazia o direito à consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas, constante na Convenção 169 da OIT, ao transformar o processo em uma mera formalidade, sem garantir sua efetiva influência nas decisões. Apesar de listar diretrizes como respeito à diversidade cultural e transparência, o texto impõe limitações
ao estabelecer que, mesmo diante da manifestação contrária das comunidades, atividades e empreendimentos poderão prosseguir com base em critérios como “compartilhamento de benefícios” e “realização de Estudo de Impacto Ambiental”, sem salvaguardas que de fato possam interromper explorações tidas como predatórias. Além disso, afasta a necessidade de oitiva prévia das comunidades quando há autorização do Estado, como em atividades minerais e hídricas;

6. Criminalização das retomadas indígenas:

Proíbe retomadas antes da desocupação voluntária por não-indígenas ou da conclusão da demarcação, o que pode levar à criminalização de comunidades indígenas e justificar ações policiais estaduais contra elas. Além disso, coloca o procedimento
demarcatório no “final da fila” da ordem de terras a serem demarcadas pela Funai nos próximos 10 anos, de maneira a manter a violação ao ao direito originário e ao usufruto exclusivo. O voto do Ministro Gilmar Mendes prevê que, para retomadas anteriores ao início do julgamento a Polícia Federal, Força Nacional e Polícia Militar deverão empreender protocolos de negociação para a desocupação em 30 dias. Já para retomadas indígenas posteriores a esta data, será determinada a remoção imediata, sem possibilidade de mediação pelas Comissões de Soluções Fundiárias, criadas pela Resolução CNJ no 510/2023, por determinação do STF na ADPF no 828. Vale lembrar que, no Caso Raposa Serra do Sol, o STF reconheceu a legitimidade das retomadas indígenas diante da inércia do Estado, que deveria ter concluído a demarcação desses territórios em cinco anos após a promulgação da Constituição;

7. Indenização por terra nua a ocupantes não indígenas:

O voto prevê que, após a homologação e antes do registro da terra indígena (ou seja, vinculado ao procedimento demarcatório), ocupantes não indígenas com posse direta, contínua e anterior a 5 de outubro de 1988 sejam reassentados ou indenizados
pela terra nua e benfeitorias; caso contrário, apenas benfeitorias úteis e necessárias serão compensadas. Estipula amplas possibilidades para o posseiro recusar o reassentamento e partir diretamente para o pagamento da terra nua. Igualmente, deixa de lado a obrigatoriedade do critério de boa-fé para todos os pagamento da terra nua, como ocorre para o pagamento de benfeitorias úteis e necessárias. Além disso, inclui um processo genérico para identificação dessas terras a serem indenizadas, com a pessoa possuindo
apenas justo título ou posse de boa-fé, sem condicionar a um título oficial concedido pelo Estado. A terra nua será avaliada conforme a tabela do ITR, que é um valor próximo ao valor de mercado, com pagamento em dinheiro, precatório, título da dívida agrária ou permuta por imóvel equivalente. A indenização por terra nua pode, ao fim e ao cabo, inviabilizar demarcações e comprometer políticas indigenistas, como no caso Nhanderu Marangatu, cuja indenização total alcançou metade do orçamento anual da Funai em 2024;

8. Redimensionamento de terras indígenas:

A proposta restringe, ao período de cinco anos contados da demarcação, o direito da comunidade indígena
solicitar a revisão da extensão do seu território por descumprimento do Art. 231. Ainda que esteja de acordo com o que o STF decidiu no Tema 1031, há questionamentos sobre o prazo decadencial desse direito constitucional pendente de julgamento nos embargos ao RE 1017365/SC (Caso Xokleng). Tendo em vista que a imposição desse prazo impediria a correção de demarcações feitas em desacordo com o Artigo 231 da Constituição, mesmo quando comprovado erro grave e insanável. Além disso, também inclui a
obrigatoriedade de observância à proporcionalidade entre o território e a população existente na reanálise administrativa, de maneira a tratar o erro estatal como um problema puramente de espaço para pessoas e não como terra devida por se tratar de um território tradicional, além de abrir margem para a redução de terras indígenas levando em consideração o critério de proporção entre pessoas-território. O STF já consolidou o entendimento de que atos administrativos flagrantemente inconstitucionais não podem ser protegidos pela decadência legal, de tal forma que a revisão de processos demarcatórios deve ocorrer sempre que houver violação dos direitos
indígenas assegurados constitucionalmente;

9. Fragilização do laudo antropológico:

A proposta aplica as mesmas regras de impedimento e suspeição utilizadas para processos judiciais, ainda que se
trate de um procedimento administrativo do Poder Executivo, ou seja, sem as exigências de imparcialidade aplicadas ao Poder Judiciário, de maneira a colocar uma sombra de dúvida/suspeita sob o trabalho realizado por antropólogos (as) da Funai, ainda que contenham fé pública do Estado. Essa previsão prejudica o trabalho de antropólogos (as) que há anos trabalham com um mesmo povo, tendo acúmulo/experiência técnica para redigir o laudo antropológico, de maneira a propiciar a inclusão de profissionais sem a
aptidão técnica para realizar o estudo. Igualmente, determina que as informações orais prestadas aos antropólogos(as), por indígenas, devem ser registradas em audiência pública ou gravada em áudio, de maneira a violar a direito constitucional à intimidade dos povos indígenas e colocar mais obstáculos para a realização do trabalho antropológico, propiciando a alegação de nulidade futura ou abrir margem para a descaracterização do registro oral produzido.
10. Fragilização do direito originário e usufruto exclusivo:

O voto do Ministro Gilmar Mendes reservou salvaguardas para permanência na terra (direito de retenção) apenas para posseiros, sem respeitar o usufruto exclusivo e o direito originário dos povos indígenas previstos no Tema 1031, de maneira a excluir os povos indígenas de regras e procedimentos para permanência no território ainda que não finalizado o procedimento demarcatório. Em realidade, o Ministro trouxe hipóteses para criminalização de pessoas que busquem retomar os territórios tradicionais, além de colocar o procedimento demarcatório de terra retomada no “final da fila” como já mencionado, sem, em momento nenhum, reservar preocupação à garantia do usufruto exclusivo, garantido pelo direito originário, ambos tidos como cláusulas pétreas da Constituição federal, nem colocar regra semelhante de responsabilização/sanção para posseiros que invadem terras indígenas.