A sessão representa mais um passo para a criação de um marco regulatório para estas populações, presentes em sete países da América do Sul. Sessão será transmitida ao vivo nas redes sociais da CIDH-OEA

Acontecerá nesta terça-feira, dia 23 de agosto, a audiência da primeira ação da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre povos indígenas isolados. A sessão ocorrerá no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília (DF), e representa mais um passo para a criação de um marco regulatório para estas populações, presentes em sete países da América do Sul. Será realizada uma coletiva de imprensa sobre o caso, no próprio STJ, às 17h (Horário de BSB), com a participação de indígenas e membros das organizações apoiadoras da ação judicial.

A ação trata da controvérsia entre as populações indígenas em situação de isolamento (PIA, na sigla em espanhol) e o Estado do Equador, acusado de omissão frente ao massacre de indígenas Tagaeri e Taromenane, no Yasuni, região da Amazônia equatoriana, ameaçada por madeireiros e petroleiras. No Brasil, ao menos cinco grupos diferentes de povos isolados estão sob risco iminente de extermínio, nos estados do Pará, Rondônia, Mato Grosso e Roraima.

Participarão da sessão organizações equatorianas que acompanham o processo, sendo elas a Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador (Conaie), Fundación Pachamama, Grupo de Trabajo Internacional para la Protección a Pueblos Indígenas en Aislamiento y Contato Inicial (GTI-PIACI) e a Land is Life (LIL). A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de recente Contato (Opi) e Instituto Socioambiental (ISA), entre outras organizações brasileiras, acompanharão a audiência.

Histórico do caso

A ação judicial pede que o Estado do Equador seja condenado por violar os direitos estabelecidos pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos à vida, integridade pessoal, liberdade, garantias judiciais, infância, propriedade, livre circulação e residência, proteção judicial, saúde e direitos culturais.

Em 2006, conforme a informação publicada pela CIDH-OEA, os povos Tagaeri e Taromenane sofreram um dos três massacres mais recentes, 30 indígenas foram assassinados, e uma denúncia de violações aos seus direitos humanos e territoriais foi levada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. São, portanto, 16 anos de litígio entre a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Durante o procedimento na Comissão, foram garantidas medidas cautelares de proteção aos Tagaeri e Taromenane, porém o governo do Equador declarou, em 2013, não as reconhecer, e no decorrer dos anos seguintes se recusou a fornecer informações à CIDH sobre os casos.

O território é afetado por grandes empreendimentos de extração de recursos não-renováveis e invasões territoriais, como por exemplo de madeireiros, que nos anos de 2003, 2006 e 2013 foram responsáveis por massacres de integrantes dos povos, incluindo crianças. Um flagrante caso de genocídio em curso.

Massacres contra isolados também são registrados no Brasil, caso recente dos Yanomami. O contexto de tais massacres, seja no Equador ou aqui no Brasil, enredam situações igualmente semelhantes.

O território Tagaeri e Taromenane (Zona de Intangibilidad Tagaeri y Taromenane, ou ZITT, tal como a demarcação é chamada no Equador) foi definido pelo governo, na região de Yasuni, Amazônia equatoriana, deixando de fora uma área de circulação sazonal dos grupos isolados.

Mesmo com todos os protestos e casos de violência registrados, o Estado do Equador não reviu o tamanho da ZITT, e os problemas se seguiram. A Constituição do Equador, em contrapartida, protege a intangibilidade dos territórios dos PIAV.

Então a manobra do governo se evidenciou: a Constituição também possibilita a criação de áreas de interesse nacional no Equador para este fim, o de mineração, mas o dispositivo só é possível de ser aplicado caso a área permaneça fora da ZITT. A esteira da mineração leva ainda aos Tagaeri e Taromenane o garimpo e madeireiros colocando em risco a existência coletiva e individual destes indígenas.

Primeira ação na Corte Interamericana sobre isolados

Esta é também a primeira ação judicial em tramitação envolvendo um caso de povo em situação de isolamento. O indigenista brasileiro Antenor Vaz, membro do Grupo de Trabajo Internacional para la Protección a Pueblos Indígenas en Aislamiento y Contato Inicial (GTI-PIACI)  explica que o processo na Corte Interamericana é emblemático por ser o primeiro  e pode direcionar as ações envolvendo povos isolados na América do Sul.

“É dramática a situação desses indígenas tanto no Brasil como na região, com riscos iminentes de genocídio. O posicionamento da CIDH frente à proteção desses povos pressiona os estados nacionais a tomarem providências, coisa que hoje não tem ocorrido diante das ameaças das queimadas, agronegócio, garimpo, ação de missionários”, explica Vaz.

O indigenista destaca no Brasil cinco grupos em situação emergencial, que podem desaparecer em curto prazo caso nenhuma medida seja tomada: os isolados das terras indígenas Yanomami (RR), Pirititi (RR), Munduruku (PA), Ituna Itatá (PA), Piripkura (MT) e Uru Eu Wau Wau (RO). Os Tagaeri e Taromenane, do Equador se juntam a este grupo e geram expectativas para organizações indígenas e indigenistas de que a Corte Interamericana seja mais um obstáculo ao genocídio em curso destes povos.

São 185 registros de povos isolados na América do Sul, sendo que o Brasil responde por 114 registros. No total, além do Brasil, seis outros países possuem povos nesta condição: Bolívia, Peru, Colômbia, Equador, Paraguai e Venezuela. Destes, apenas Brasil, Colômbia e Peru possuem legislações nacionais garantindo a proteção aos isolados.

Não há nenhuma política regional estabelecida pelos governos desses países para uma ação conjunta de proteção às populações autóctones isoladas, na medida em que parte dos grupos isolados não possui conhecimento das fronteiras e ocupam territórios entre fronteiras. O que há são três acordos bilaterais – Brasil/Peru, Colômbia/Equador, Peru/Equador -, mas todos paralisados.

Gestão da Funai abandonou os grupos

Grande parte dos registros de isolados no Brasil, um total de 16, estão na Terra Indígena Vale do Javari (AM), que faz fronteira com o Peru, local de atuação do indigenista Bruno Pereira, assassinado junto com o jornalista inglês Dom Phillips, no dia 5 de junho. O indigenista atuava há mais de uma década contra as invasões ao território e Dom escreveu reportagens denunciando a situação e trabalhava em um livro sobre a Amazônia.

Sônia Guanabara, da direção colegiada da Apib, organização indígena que acompanha a sessão da CIDH com a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), tem salientado à imprensa estrangeira que Pereira era servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai), mas se afastou, sem vencimentos, para poder continuar realizando o trabalho de fiscalização na TI Vale do Javari.

Antenor Vaz ressalta: “se (a CIDH) não tomar providências, vai terminar em genocídio porque a Funai não toma as providências. Toda a caracterização desses problemas envolvendo povos em isolamento a Funai já tem, mas no atual governo, de maneira especial, o órgão não cumpre com as suas obrigações”.

O indigenista lembra que dos 114 registros no Brasil, apenas 30 são confirmados pela Funai e o restante não se tem informação. “Os confirmados já estão sob ameaças, mas mal ou pior existe ação. Os demais não têm ação nenhuma, o que torna ainda mais grave a situação. Estamos falando de extermínio. É extremamente preocupante”, diz.

Brasil

Na Comissão Interamericana tramitam duas denúncias surgidas no Brasil onde há seções sobre isolados no país que enfrentam problemáticas semelhantes às dos Tagaeri e Taromenane. Os casos serão analisados no dia 24 de agosto.

Caso o governo brasileiro também não tome providências, a exemplo do governo equatoriano, de modo a garantir a proteção dos grupos, as ações podem subir para a Corte Interamericana como ação judicial. O Estado brasileiro já foi condenado uma vez pela CIDH, no caso Xukuru do Ororubá.

No Supremo Tribunal Federal (STF) está em vigor a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 991, impetrada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que trata de invasões a territórios com presença de isolados em meio à pandemia do novo coronavírus sem os órgãos públicos competentes terem tomado as medidas cabíveis de fiscalização e proteção.

A agenda é uma mobilização da Conaie, Apib, Coiab, GTI-PIACI, Land is Life, OPI, Cimi e ISA.