A APD – Associação Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia, entidade civil sem fins lucrativos ou corporativistas, criada por advogados públicos federais, que busca a plena efetivação dos valores sociais e jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito através do fortalecimento da relação da Advocacia Pública com os movimentos sociais e populares, vem a público manifestar preocupação extrema com a edição do Parecer n. 001/2017/GAB/CGU/AGU, aprovado pelo Presidente da República em 19.07.2017, o qual, entre outras deliberações, acabou por consagrar o indigitado marco temporal de 1988, como limitador das demarcações de terras indígenas em território nacional, tese esta que não encontra sustentação na doutrina jurídica sobre o tema, sequer também aplicação irrestrita na jurisprudência, como pretendido pelo dito parecer vinculante da administração federal.
Ocorre que a partir do julgamento do rumoroso caso judicial intitulado Raposa Serra do Sol (pet. 3.388/RR) ganhou corpo entre os defensores da paralisação da demarcação de terras indígenas no País um suposto entendimento de que não poderiam mais ser demarcadas as áreas onde os indígenas não estivessem fisicamente presentes na data da promulgação da Constituição Federal, em 05.10.1988. Ganhou corpo, também, entre os opositores das demarcações o entendimento de que se estariam ampliando terras indígenas já demarcadas. Isso porque aquele julgamento estabeleceu uma apreciação genérica para as demarcações, criando a interpretação de que a Constituição estabeleceria um limitador no tempo para as demarcações, em que só o presente deveria ser reconhecido pela administração pública. Além disso, aquele julgamento incluiu nas razões de decidir e no dispositivo do acórdão uma suposta salvaguarda apontando uma proibição de ampliação de terras indígenas já demarcadas.
No entanto, tais balizas, ditadas no seio de uma ação popular, nunca foram aceitas pela comunidade indigenista, vez que, em princípio, esbarram na própria Constituição ao ignorar a locução “direitos originários” às terras tradicionais (CF, art. 231, caput) e imprescritibilidade desses direitos (CF, art. 231, § 4º).
O julgamento, agora acolhido como vinculante pelo mencionado Parecer, rompeu com uma tradição jurídica que se firmou no Brasil desde a edição do Alvará Régio de 1680, denominada indigenato, segundo a qual os povos indígenas devem ter suas terras protegidas de qualquer outro título que não ostente a mesma condição de direito originário e anterior mesmo à organização do Estado nacional.
Inobstante, este rompimento não foi e não é aceito por esses mesmos povos, dado o inafastável reconhecimento de que eles existiam anteriormente à chegada dos colonizadores, o que lhes confere uma condição distinta de qualquer outro grupo humano formador da identidade nacional.
Esse direito único e inderrogável não pode ser cerceado por entendimentos que visam obstaculizar o retorno dos indígenas às suas terras, sob pena de se consolidar um tipo de espoliação largamente repudiada pela comunidade jurídica e pela sociedade internacional.
É da compreensão da APD que a Constituição Federal de 1988 acolheu o instituto do indigenato e consolidou uma proposta fraternal de inclusão e de reparação aos povos indígenas, ao reconhecer o direito originário às terras que ocupam, cujo direito à posse permanente independe até mesmo da existência de processo de demarcação, conforme preceitua o artigo 25 do Estatuto do Índio, Lei 6.001/1973.
Diante de tais fatos, a APD exorta o Estado Brasileiro a rever a interpretação dada pelo Parecer em questão, o qual não pode prevalecer sobre a longa tradição jurídica nacional, os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, e em detrimento dos valores supremos de uma sociedade fraterna e pluralista, tal como está consagrado no Preâmbulo da Constituição Federal.
Brasília, 21 de JULHO de 2017
Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia – APD