A proposta de indenização sobre a terra nua pode bloquear as demarcações por falta de orçamento nos governos, além de ser um prêmio a grileiros invasores de terra indígena
A vitória da força do movimento indígena marcou esta quarta-feira, 21/09. No dia da árvore, o Supremo Tribunal Federal compreendeu as reivindicações dos povos originários do Brasil e derrubou o marco temporal, com nove votos contrários e dois favoráveis à tese. No entanto, durante o debate as teorias apresentadas pelos ministros deixaram diversas questões pendentes. Elas serão abordadas pela suprema corte nesta semana. Entre elas, a que mais preocupa a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil é a questão da indenização prévia sobre a “terra nua”, apresentada inicialmente pelo ministro Alexandre de Moraes e posteriormente pelo ministro Cristiano Zanin.
Segundo os juristas, pessoas que tenham tomado posse de terras indígenas de “boa fé” teriam o direito a indenizações sobre a terra que ocupam. A lei atual já prevê a indenização pelas benfeitorias e o reassentamento de pequenos agricultores, através do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
As teses de Moraes e Zanin, no entanto, abrangem desde a agricultura familiar, até fazendeiros. E a soma das quantias para garantir as demarcações pendentes na FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), com a indenização sobre a terra, pode ultrapassar R$1 bilhão de reais. Um orçamento 46% maior do que a cifra atual do órgão.
De acordo com a pesquisa realizada pela Agência Pública as dez áreas com mais hectares sob posse de fazendeiros e contestação judicial, registradas pelo Sigef (Sistema de Gestão Fundiária) do INCRA se localizam nos estados de Pará/Mato Grosso, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco e Paraná e somam 544 mil hectares. São 55% do total de terras reivindicadas por povos indígenas, que atingem a quantia de R$942 milhões de reais, caso a indenização seja paga.
O cálculo desse preço leva em conta a chamada terra nua, ou seja, a área da fazenda em hectares, de acordo com cada localização e a base de cálculo da Pauta de Valores de Terra Nua do Incra. Ainda não está claro na discussão do STF, quais proprietários teriam direito a essa indenização ou quantos deles seriam beneficiados, por isso, este cálculo leva em conta todas as sobreposições nas TIs. Este orçamento está R$200 milhões acima do previsto no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) do governo Lula para a Funai em 2024.
Teses de indenização sobre a terra nua
Há duas propostas de indenização sobre a terra no STF. A proposta feita por Alexandre de Moraes no dia 7 de junho, apareceu infiltrada em seu discurso contrário ao marco temporal. Uma forma de amenizar os ânimos do agronegócio com um “caminho do meio”. Para ele, os proprietários de imóveis em terras indígenas poderiam receber “indenização prévia” à demarcação dos territórios pelas benfeitorias e pelo valor do terreno.
O artigo 231 da Constituição Federal, em seu parágrafo 6º, torna “nulos e extintos” os “atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse” das terras tradicionais indígenas. Ou seja: qualquer título de propriedade que esteja sobre esses territórios não tem validade. E não há nada previsto em termos de direito a indenizações, diante da extinção destes atos. A constituição permite apenas a compensação pelas “benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé”. Além disso, não está clara qual será a forma de garantir a posse integral do território aos Povos Indígenas, uma vez demarcado o território e paga a indenização aos fazendeiros invasores. A proposta deixa lacunas para o alargamento de conflitos que oneram o Estado e ceifam vidas indígenas.
Já Cristiano Zanin, afastou a tese do Marco Temporal durante seu voto no dia 31 de agosto, no entanto propôs a indenização com base em danos causados a terceiros pelo Estado, prevista no artigo 37 da Constituição. O que significa responsabilizar o poder público por equívocos na gestão das terras, visto que foi o próprio Estado que permitiu titular propriedades privadas sobre territórios tradicionais indígenas. Zanin atribui as sobreposições de TIs ao fato dos fazendeiros terem acreditado na idoneidade dos títulos concedidos pelas instituições estatais.
Para ele, a indenização deve ocorrer por via judicial ou administrativa. Um processo que correria fora dos trâmites para a demarcação de terras indígenas, sendo analisado caso a caso. As verbas para o pagamento das indenizações seriam encaminhadas do governo federal e dos estados e municípios que tenham incentivado a titulação privada de terras indígenas.
A proposta de Moraes é mais aprazível aos olhos do agronegócio. Gustavo Passarelli, advogado da Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), afirmou que “se [a indenização] pudesse fazer parte do processo administrativo [de demarcação de terras indígenas], acho que ajudaria a todos. Se for necessário esperar que o produtor ajuíze a demanda para depois receber a indenização, isso certamente atrasa o procedimento administrativo”, pontua Passareli. “Se no próprio procedimento administrativo já tiver uma previsão nesse sentido, fica mais rápido. O procedimento judicial é moroso.”
O Ministério dos Povos Indígenas apontou o voto de Zanin como uma saída mais plausível. “Mesmo com a questão das indenizações à terra nua, a proposta do ministro Zanin não impede a continuidade e abertura de novos processos demarcatórios, já que cada caso poderá ser analisado com suas particularidades”, afirmou Sonia Guajajara em nota divulgada no dia 31 de agosto.
A Apib se opõe a qualquer tipo de indenização, partindo do entendimento de que a própria constituição aponta o direito originário à terra e prevê no processo demarcatório as devidas garantias de direitos aos pequenos agricultores e aos investidores, que possam ter manejado benfeitorias dentro dos territórios, não demarcados pela morosidade do próprio Estado. Já os grandes proprietários do agronegócio têm atuado sistematicamente com suas frentes, confederações e articulações, para manipular leis, a economia e a política, além do uso da violência e do extermínio, para impedir as demarcações e se locupletar com as invasões. De maneira nenhuma se poderia considerar ações de “boa fé” destes sujeitos.
Um exemplo disso, é a Proposta de Emenda à Constituição número 48/2023, protocolada na última quinta-feira, 21/09, mesmo dia em que o Supremo apontou a inconstitucionalidade do marco temporal. A PEC feita pelo senador Hiran Gonçalves (PP-RR) ressuscita a tese e quer alterar a constituição para beneficiar os invasores.
Mesmo com a decisão do STF, apontando para a tese do indigenato, o Congresso Nacional continua discutindo o PL 2903/23, que também busca instituir o Marco Temporal e apresenta outras inúmeras ameaças aos direitos indígenas. O PL está nas mãos do senador Marcos Rogério (PL-RO), relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e deve voltar à pauta nesta semana.
Territórios em disputa
A Terra Indígena onde o cacique Raoni Metuktire passou sua juventude, chamada de Kapôt Nhinore, de ocupação tradicional dos povos Yudja (Juruna) e Mebengokrê (conhecidos como Kayapó), possui a maior área reivindicada por fazendeiros. Os estudos de identificação e delimitação foram aprovados pela Funai em julho deste ano. O território possui 362 mil hectares e está localizado na bacia do rio Xingu, entre os municípios de Santa Cruz do Xingu (MT), São Félix do Xingu (PA) e Vila Rica (MT).
Destes, mais de 258 mil hectares são reivindicados por fazendeiros, 79% da terra indígena. Se todos eles fossem indenizados pelo valor da terra nua, o custo seria de R$477,5 milhões.
Entre as dez terras que fazem parte do levantamento da Agência Pública, três estão na mesma região do Maranhão, cerca de 580 km a sudoeste de São Luís. As Terras Indígenas Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, Bacurizinho e Kanela Memortumré têm juntas cerca de 374 mil hectares, sendo que ao menos 194 mil (52% do total) são disputados por fazendeiros. Se todos eles fossem indenizados pelo valor médio da terra nua aplicado hoje pelo Incra, seriam necessários R$108 milhões.
As Terras Indígenas Porquinhos dos Canela-Apãnjekra, Bacurizinho, reivindicam ampliação de áreas demarcadas, e já estão declaradas. Enquanto Bacurizinho é habitada pelo povo Guajajara, a terra Porquinhos é do povo Canela Apanyekrá. Já o território Kanela Memortumré é ocupado pelo povo Kanela e aguarda portaria declaratória.
O estado do Mato Grosso do Sul é campeão em casos de invasão de terras indígenas e assassinatos, de acordo com dados dos relatórios Os Invasores I e II, da página De Olho nos Ruralistas e levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) com base em números do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Três tekoha (“lugar onde se é”, em Guarani) na região de Dourados, onde vivem os povos Guarani e Kaiowá, somam cerca de 118 mil hectares, sendo que metade é disputada por fazendeiros. Juntas, as indenizações nas TIs Dourados-Amambaipeguá I, Iguatemipegua I e Ypoi/Triunfo custam R$269,8 milhões.
Os conflitos na região envolvem os Guarani e Kaiowá expulsos de suas terras a partir do século 19, que desde o fim da década de 1970 buscam retomar os territórios transformados em fazendas.
Estes territórios são apenas alguns exemplos das disputas envolvendo os abusos do agronegócio e os povos indígenas. O recente levantamento do De olho nos ruralistas apontou que existem 1.692 invasões de fazendas sobre terras indígenas, resultando em 1,18 milhão de hectares, envolvendo empresas transnacionais, políticos, donos de veículos de comunicação e personalidades da elite brasileira.