O futuro é indígena!

O futuro é indígena!

E se o fascismo continuar crescendo no Brasil, qual será nosso futuro? “Não existe espaço vazio na política”. Se você, de alguma maneira, se interessa pelo tema, já deve ter ouvido essa sentença algumas vezes. A compreensão sobre o que é política não pode se limitar ao papel daqueles que estão em cargos de decisão e disputas eleitorais. Política é a arte de governar, administrar, cuidar da vida e da reprodução da vida. Essa arte pode ser exercida em espaços institucionais, no próprio governo ou no cotidiano. As decisões que tomamos individualmente também são ‘Política’, porém são insuficientes. Para transformar a sociedade amplamente é preciso articular as ações locais em uma organização, frente ou partido para que tomem a dimensão do todo e das contradições que permeiam nossas relações sociais.

Os povos originários sempre tiveram seus costumes políticos que determinaram durante séculos a gestão da vida em abundância. Porém, a espoliação que deu fundamentos para a constituição do Estado brasileiro tentou apagar a cultura de vida dos povos. Indígenas foram e seguem sendo excluídos da política protagonizada pela burguesia colonial, através do racismo e do extermínio dos nossos povos.

Chegamos a 2022 com apenas uma representação no Congresso, a deputada federal Joenia Wapichana (REDE-RR), a primeira mulher indígena a conquistar este espaço na história do Brasil. Uma câmara de deputados composta por 436 homens e somente 77 mulheres, enquanto a população de mulheres no país soma 51,5% (IBGE).

A sub-representação é tanta na Câmara que 25% do total dos deputados se declara negros, mas a população nacional expressa 56% de pretos, pardos e indígenas. Não bastasse, temos um representante no executivo que dá ordens para que continue o extermínio dos povos que resistiram à invasão do território Pindorama e à escravidão.

As instituições “democráticas” brasileiras são a expressão da política colonial e não do povo que constituiu este território como Nação. Aqueles que estão lá, são representações de interesses econômicos próprios e fundamentalista religiosos, uma conjugação perigosíssima, que resulta em 68% da Câmara votar contra o meio ambiente, indígenas, quilombolas e trabalhadores rurais, além de tentarem apagar direitos das mulheres, das pessoas LGBTs, ou seja, todos os direitos fundamentais dos trabalhadores e trabalhadoras.

Assertivamente, Marx já nos alertava que o Estado é o comitê de negócios da burguesia, assim como é também seu cão de guarda. “O poder executivo do Estado moderno não passa de um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia” (MARX; ENGELS, 1998, p. 12). E quando o Estado não opera em sua total capacidade de maximizar as taxas de lucro deles, não há democracia que resista à sanha capitalista. Rapidamente se organizam os Golpes.

No caso do Brasil, a derrubada da presidenta Dilma Rousseff correspondeu às necessidades de superação da crise constante do capitalismo e provocou a ascensão de Bolsonaro ao poder. As rupturas institucionais atuais proporcionam um avanço nas invasões de Terras Indígenas e a paralisação das demarcações. Vivemos um período da superexploração do trabalho com a destruição dos direitos e serviços fundamentais para preparar a sociedade ao capitalismo digital, a hiper vigilância e o trabalho “full time”.

Para que de fato a política seja a arte de cuidar da vida, a questão eleitoral toma a centralidade dessa discussão. Especialmente neste ano em que a disputa das eleições está polarizada entre a política de morte do governo Bolsonaro e a política de estado de bem-estar social.

Aldear a política significa arrancar do Estado as famílias sanguessugas para que a família brasileira de verdade possa retomar seus direitos e se representar com todo protagonismo que nos cabe. Queremos Silvas, Marias, Marielles, Wapichanas, Pataxós, Tupinambás, Xacriabás, Guajajaras (somos mais de 300 povos neste país!) nos representando neste espaço, porque nós sempre cuidamos da vida, das matas, dos saberes e da riqueza brasileira. Nosso país não está em liquidação. Este é o verdadeiro nacionalismo, feito dos povos que cultivam a vida.

É preciso eleger Lula para arrancar Bolsonaro e sua família miliciana do governo, mas também eleger um Congresso, deputados e senadores, que permitam reverter todas as perdas que tivemos nos últimos 6 anos.

A bancada indígena terá o dever de tanger a boiada, a mineração e os madeireiros para fora dos territórios. Retomar as políticas de proteção ao ambiente, retomar a FUNAI, que se tornou um órgão anti indígena nas mãos de militares fascistas, retomar as demarcações de terra e derrubar a mentira do marco temporal.

Para isso, vamos eleger indígenas e defensores da causa, mas também continuaremos a luta por direitos nas ruas, nas retomadas, nos territórios e nas redes. 2023 será um ano de muitas lutas. Mais do que nunca é preciso cobrar a conta, esse dia já vem vindo, 2 de outubro. A volta do cipó de aroeira virá ao som dos maracás. Porque nós também sabemos governar.

O FUTURO É INDÍGENA!

Acesse as informações sobre a Bancada Indígena aqui

Val Eloy lança candidatura a deputada estadual nesta sexta durante 15ª Assembleia Terena

Val Eloy lança candidatura a deputada estadual nesta sexta durante 15ª Assembleia Terena

A candidata a deputada estadual por Mato Grosso do Sul pelo PSOL, Val Eloy Terena, lança sua candidatura na noite desta sexta-feira (26), em ato durante a 15ª Assembleia Terena, que acontece na aldeia Brejão, na cidade de Nioaque (MS). No evento, estarão presentes o cacique da aldeia Brejão, Aderval Barbosa, lideranças indígenas de todo o Estado, representação dos povos Pataxó Hãhãhãe, Xukuru, Tuxá, Munduruku, Kaingang, Guarani e Kaiowá, Kadiwéu e Kinikinau.  

Como forma de construir propostas plurais para seu mandato, a candidata dialoga com os participantes do evento, para que possam contribuir coletivamente. Os principais pontos de seu projeto são baseados nos direitos dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, como saúde, educação, territorialidade, defesa da democracia, cuidados com o meio ambiente, combate ao racismo e discriminações de qualquer tipo.

Val Eloy faz parte do projeto “Aldear a Política”, que tem intenção de eleger indígenas para a formação da Bancada Indígena, e da iniciativa “Campanha Indígena”, promovida pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil). Em Mato Grosso do Sul, ela é a única mulher indígena que disputa algum cargo nas eleições de 2022.

Para ela, é de uma importância muito grande fazer o lançamento de sua candidatura em um evento como a Assembleia Terena, o qual participa todo ano, desde 2010. “Uma candidatura indígena, para nós, é motivo de muita resistência, principalmente no período em que estamos vivendo, ano de desgoverno, de tantos retrocessos de direitos. Fazer este movimento da campanha aqui no território é um sinal de fortalecimento”, afirma.

Durante o encontro ainda haverá debates sobre os direitos dos povos indígenas, mulheres terena, saúde indígena nas aldeias de MS, educação e juventude. “Discutimos muitas pautas relevantes para nosso povo durante a assembleia, é um momento em que nos fortalecemos enquanto lideranças, mulheres, juventude, e podemos passar toda essa luta para os mais jovens e assim ir além”, pondera Val.

Val é uma mulher terena, que nasceu na aldeia Ipegue, localizada no território indígena Taunay-Ipegue, no município de Aquidauana. Em 2014 liderou uma retomada indígena na periferia de Campo Grande e tornou-se cacique da comunidade Tumuné Kalivono – atual aldeia Ynamati Kaxé. No ano de 2020 concorreu nas eleições municipais da Capital como vice-prefeita e agora concorre a uma das 24 vagas da ALMS (Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul).

Indígenas de todo o Brasil lutam para que STF acabe com a ameaça do Marco Temporal

Indígenas de todo o Brasil lutam para que STF acabe com a ameaça do Marco Temporal

Ao todo, foram 40 ações, em todas as regiões do Brasil, envolvendo dezenas de territórios, entre atos políticos e fechamentos de BR, além de atos em 40 sedes da Funai realizados pelos servidores em greve
foto Alass Derivas

As vozes dos povos originários brasileiros ecoaram pelos grotões mais profundos do país e nas redes sociais, nesta quinta-feira (23). As mobilizações convocadas pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) marcaram o dia em que o Supremo Tribunal Federal (STF) deveria votar a tese do marco temporal ou Caso Xokleng, uma decisão que afetará todos os territórios indígenas do Brasil, no entanto, a matéria foi adiada pela terceira vez. “Quando estamos diante de um governo autoritário, esperamos coragem da Suprema Corte para resguardar o direito fundamental dos povos indígenas”, cobrou Eloy Terena, representante jurídico da Apib.

Também estiveram entre as reivindicações a justiça pelos assassinatos do jornalista Dom Philips e do indigenista Bruno Pereira e a exoneração do presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Delegado Marcelo Xavier, pela condução de uma política anti-indígena à frente do órgão. Ao todo, foram 40 ações, em todas as regiões do Brasil, envolvendo dezenas de territórios, entre atos políticos e fechamentos de BR, além de atos em 40 sedes da Funai realizados pelos servidores em greve. No extremo sul da Bahia, território Comexatibá, em Prado, o povo Pataxó realizou a retomada da fazenda Santa Bárbara. A área era utilizada para produção de eucalipto, com amplo uso de agrotóxicos, o que poluiu e reduziu o fluxo das águas do Rio Cahy. Para Eloy, os atos de hoje “demonstram de forma categórica o quanto os povos indígenas estão sendo vítimas dessa política de genocídio implementada através de uma Funai anti-indígena. E o quanto a demora do julgamento do Marco Temporal faz com que as violências contra os povos indígenas aumentem”.

Em São Paulo, centenas de pessoas mostraram solidariedade à causa, se reunindo aos indígenas em frente ao Masp, no final da tarde. Em Brasília, a mobilização foi na Praça dos Três Poderes, em frente ao STF, onde foram feitos rituais sagrados. Na sequência foi lançado o Documentário feito por jovens indígenas, “Luta pela Terra”. A obra reúne imagens e sentimentos em um dos momentos mais importantes da luta dos povos originários contra o marco temporal e o julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, que trata da demarcação de terras indígenas do país.

Em Brasília, participaram indígenas dos povos Terena, Kaingang, Tuxá, Xokleng, Tupinambá, Karapó, Guarani Nhandeva, Guarani Kaiowá, Takaywrá, Cinta Larga, Karipuna, Tukano, Macuxi, Wapichana, Taurepang, Mura e Marubo, que, ao longo desta semana, realizaram uma série de reuniões e audiências: com parlamentares no Congresso Nacional; na Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH); no Conselho Nacional de Justiça (CNJ); no Supremo Tribunal Federal; na Fundação Nacional do Índio (Funai); além do “Seminário Sobre o Regime Constitucional das Terras Indígenas no Brasil”, na Universidade de Brasília (UnB), que reuniu indígenas, parceiros, acadêmicos e juristas.

Funai militarizada

Sob o comando de um delegado bolsonarista, o Marcelo Xavier, a Funai parou totalmente os processos de demarcação de terras. Recentemente, durante as buscas por Bruno e Dom, o papel da fundação se restringiu a difamar as organizações indígenas e acusar os indigenistas de entrarem no território do Vale do Javari sem autorização, o que não era verdade.

Em resposta a isso, os servidores da fundação entraram em greve e aderiram às manifestações de hoje. Junto aos trabalhadores da Funai, Dinamam Tuxá, da coordenação da Apib, condenou as práticas da instituição. “Hoje a Funai se encontra sob o poder das grandes corporações, pessoas ligadas às forças armadas que não tem conhecimento técnico e científico para conduzir qualquer tipo de processo ligado à política indigenista. E o reflexo disso é a criminalização do movimento indígena, a perseguição dos servidores da Funai, dos quadros que têm notórios saberes sobre o tema e a violência”.

Entenda o Marco Temporal

A tese do marco temporal pretende restringir as demarcações de terras indígenas apenas àquelas áreas que estivessem sob a posse comprovada dos povos originários em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A tese do indigenato, por outro lado, reconhece a posse indígena da terra como originária, ou seja, anterior à criação do próprio Estado brasileiro. Para o movimento indígena é fundamental que o marco temporal seja negado pelo STF o quanto antes, pois a proposta é um incentivo para traficantes, garimpeiros, madeireiros e invasores dos territórios.

Na pauta do Supremo, as Terras Indígenas: precisamos nos mobilizar para a defesa da vida dos povos indígenas

Na pauta do Supremo, as Terras Indígenas: precisamos nos mobilizar para a defesa da vida dos povos indígenas

Foto: Matheus Alves @imatheusalves
Artigo de Luiz Eloy Terena, coordenador jurídico da Apib

No dia 23 de junho, estará na pauta novamente do STF, o julgamento do futuro das terras indígenas do Brasil. O presidente da Corte incluiu na pauta de julgamento o recurso extraordinário n. 1.017.365, conhecido como caso Xokleng, e que tem repercussão geral reconhecida. Significa que o entendimento que o Supremo adotar neste caso servirá de parâmetro para todas as terras indígenas do país.

No centro do debate, duas teses estão em disputa. De um lado, a tese do indigenato ou do direito originário dos povos indígenas. E, de outro lado, a tese do marco temporal, defendida pelos ruralistas e pelo presidente Bolsonaro. Este julgamento teve início no mês de agosto de 2021, na oportunidade em que os advogados indígenas (Eloy Terena, Samara Pataxó, Cristiane Baré e Ivo Macuxi) e indigenistas apresentaram sustentação oral. Na mesma ocasião, outras organizações que atuam na defesa dos direitos indígenas reforçaram os argumentos em defesa da comunidade indígenas. O procurador geral da república apresentou parecer defendendo o direito indígena e pugnando pela manutenção e respeito da posse indígena.

No dia 09 de setembro de 2021, o ministro relator Luiz Edson Fachin proferiu voto e apresentou proposta de fixação de tese para reconhecer os direitos territoriais dos povos indígenas como direitos fundamentais e originários. Logo em seguida, o ministro Kassio Nunes Marques apresentou voto divergente do ministro Fachin, reconhecendo o marco temporal. E, no dia 15 de setembro de 2021, quando chegou a vez do ministro Alexandre de Moraes votar, este fez pedido de vista. O pedido de vista é uma faculdade que todo ministro tem e consiste num pedido de mais tempo para analisar o caso. E, no dia 11 de outubro, o ministro Alexandre de Moraes devolveu o processo para prosseguimento do julgamento, razão pela qual, o ministro presidente Luiz Fux, incluiu o processo na pauta de julgamento do dia 23 de junho de 2022.

O Caso Xokleng e seus contornos políticos e jurídicos

O futuro das terras indígenas está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF). O julgamento do recurso extraordinário n. 1.017.365, com repercussão geral reconhecida, também conhecido como “caso Xokleng”, servirá de parâmetro para a demarcação de todas as terras indígenas do Brasil.

Os povos indígenas vivenciam um contexto político muito adverso na gestão do governo Bolsonaro, primeiro presidente eleito declaradamente contrário aos povos indígenas. Desde que tomou posse, assinou diversos atos que contrariam a Constituição e Tratados Internacionais que protegem os povos indígenas e seus territórios. Aliás, não é novidade que os direitos dos povos indígenas estejam em constantes disputas no campo político e judicial. Desde o período colonial, vários expedientes normativos foram emitidos tendo por objeto a posse desses territórios. Na atualidade são muitos os argumentos utilizados para impedir o reconhecimento formal de uma terra indígena. Entretanto, sem dúvida, o mais utilizado é a tese do “marco temporal”.

No início do mês maio de 2020, atendendo a um pedido incidental feito pela Comunidade Indígena Xokleng e outras organizações indígenas e indigenistas, o ministro relator do caso Luiz Edson Fachin, por meio de decisão fundamentada, suspendeu todas as ações judiciais de reintegração de posse ou anulação de processos de demarcação de terras indígenas enquanto durar a pandemia de Covid-19 ou até o julgamento final do Recurso Extraordinário n. 1.017.365, com repercussão geral reconhecida (Tema n. 1.031). Neste mesmo processo, o ministro relator também suspendeu os efeitos do Parecer n. 001 da Advocacia-Geral da União (AGU) e determinou que a Fundação Nacional do Índio (Funai) “se abstenha de rever todo e qualquer procedimento administrativo de demarcação de terra indígena, com base no Parecer n. 001/2017/GAB/CGU/AGU”.

O citado Parecer n. 001 da AGU vinha causando imensos prejuízos aos povos indígenas. Além de vincular todas as demarcações de terras ao que foi decidido no caso Raposa Serra do Sol, também pretendia fixar a data de 5 de outubro de 1988 como marco temporal para a demarcação das terras indígenas. Ou seja, as comunidades indígenas que não estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988, segundo essa tese, perderiam seus direitos territoriais.

E ainda, este parecer da AGU também estava sendo usado para rever processos de demarcação, fazendo com que a Procuradoria Especializada da Funai desistisse de vários processos judiciais, abrindo mão da defesa de comunidades indígenas e do próprio interesse da União– tendo em vista que Terra Indígena é bem público federal (Art. 20, inciso XI). Como consequência, comunidades indígenas estavam perdendo os processos e ficando sem defesa, o que fere o direito fundamental ao devido processo legal.

A suspensão do Parecer n. 001 da AGU e o mérito desse processo serão analisados pelo Pleno do STF no julgamento do dia 23 de junho. Esse julgamento é muito importante para todos os povos indígenas do Brasil. Após séculos de violências, remoções forçadas e extermínio de povos inteiros, a Suprema Corte terá a oportunidade de fazer valer o artigo 231 da Constituição, que determina que as terras indígenas, utilizadas para as atividades produtivas e para a preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar dos povos indígenas, bem como aquelas que são necessárias para a reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, devem ser demarcadas e protegidas. Esse é um direito fundamental, inalienável, indisponível e imprescritível. Foi essa a escritura pública que o Estado brasileiro assinou para os povos indígenas do Brasil.

O caso em questão, do povo Xokleng, é o mais emblemático no momento, tendo em vista que teve repercussão geral reconhecida. Trata-se do Recurso Extraordinário n. 1.017.365, interposto pela Funai, onde se busca manter reconhecido o território tradicional do povo Xokleng, em Santa Catarina. O processo se originou em uma ação de reintegração de posse requerida pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (FATMA), no ano de 2009. Na petição, a FATMA pretendia reaver área administrativamente declarada pelo Ministro de Estado da Justiça como de tradicional ocupação dos indígenas Xokleng, Kaingang e Guarani. Tanto em primeira instância, quanto na segunda, as decisões foram contrárias aos interesses dos indígenas, razão pela qual, o processo chegou ao Supremo por via do extraordinário. O recurso foi distribuído ao ministro Edson Fachin e teve reconhecida a repercussão geral. O processo é tido pelo movimento indígena como emblemático, tanto que muitas organizações requereram ingresso no feito na qualidade de amicus curiae. São elas: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Conselho do Povo Terena, Aty Guasu Guarani Kaiowá, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Conselho Indigenista Missionário, dentre outros.

O voto do ministro Luiz Edson Fachin

É preciso que as lideranças indígenas estejam cientes dos termos gerais do voto do ministro relator Luiz Edson Fachin, que reafirma que “os direitos territoriais indígenas consistem em direito fundamental dos povos indígenas e se concretizam no direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Com base nesse pressuposto, vaticinou que a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. E consignou que a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988, porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal.

Outro aspecto, é a reafirmação da compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente. Neste sentido, vale ressaltar a incompatibilidade das atividades de garimpo e mineração nas terras indígenas. Isto porque, a terra indígena é categoria jurídica-antropológica projetada para proteger o modo de vida dos povos indígenas e garantir a sobrevivência física e cultural dos povos.

Em defesa do indigenato

A teoria do indigenato foi desenvolvida por João Mendes Júnior, e apresentada de forma inaugural em conferência proferida na antiga Sociedade de Ethnografia e Civilização dos Índios, em 1902, quando o professor João Mendes Júnior afirmou: “[…] já os philosophos gregos afirmavam que o indigenato é um título congenito, ao passo que a occupação é um título adquirido. Com quanto o indigenato não seja a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial, todos reconhecem que é, na phrase do Alv. de 1o de abril de 1680, ‘a primária, naturalmente e virtualmente reservada’, ou, na phrase de Aristóteles (Polit., I, n. 8), – ‘um estado em que se acha cada ser a partir do momento do seu nascimento’. Por conseguinte, não é um facto dependente de legitimação, ao passo que a occupação, como facto posterior, depende de requisitos que a legitimem”.

O Alvará de 1º de abril de 1680, referido no texto, ao cuidar das sesmarias, ressalvou as terras dos indígenas, considerados “primários e naturais senhores delas”[2]. Portanto, tem-se nesta norma o reconhecimento expresso do instituto do indigenato, como sendo um direito originário, anterior ao próprio estado, anterior a qualquer outro direito. Nas palavras do professor José Afonso da Silva (2006, p. 858), “o indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem”.

Neste sentido, a Constituição de 1988 adotou a teoria do indigenato ao reconhecer o direito originário dos povos indígenas as terras tradicionalmente ocupadas. Em julgamento ocorrido em 16 de agosto de 2017, o pleno do Supremo analisou as ACO’s 362 e 366, ambas de relatoria do ministro Marco Aurélio Mello. Nos votos é possível extrair pontos importantes lançados pelos ministros, que deixam claro que o instituto do indigenato possui assento Constitucional. O Tribunal foi unânime ao reafirmar o direito territorial dos povos indígenas. O voto do ministro Luís Roberto Barroso deixa claro que a ocupação indígena não se perde ao tempo que foram esbulhados, violentados e expulsos, independente do lapso temporal:

[…] ainda que algumas comunidades indígenas nelas não estejam circunstancialmente por terem sido retiradas à força, não deixaram as suas áreas, portanto, voluntariamente e não retornaram a elas porque estavam impedidas de fazê-lo. Por isso entendo que somente será descaracterizada a ocupação tradicional indígena caso demonstrado que os índios deixaram voluntariamente o território que postulam ou desde que se verifique que os laços culturais que os uniam a tal área se desfizeram.

[…] penso que a maneira como a Constituição de 1988 enfrentou este problema resolveu retroativamente. Portanto, ainda que houvesse uma pretensão fundada, ela não subsistiria ao caráter declaratório e retroativo com que a Constituição tratou esta matéria.

O ministro Alexandre de Morais, na mesma linha, reforçou o indigenato e vaticinou que a posse indígena não se perde quando retirados à força ou sem sua vontade de suas ricas terras, in verbis:

“No mesmo sentido foi bem lembrado aqui, da tribuna, pela Ministra Grace, que essas áreas de ocupação já originária dos índios, chamadas à época, pelo mestre João Mendes Júnior, de terras do indigenato, desde o alvará de 1º de abril de 1680 e, depois, a Lei de 1850 e o Decreto de 1854, já eram áreas destinadas aos indígenas.

“(…) as terras do indigenato, sendo terras congenitamente possuídas, não são devolutas, isto é, são originariamente reservadas, na forma do Alvará de 1º de abril de 1680 e por dedução da própria Lei de 1850 e do art. 24, §1º, do Decreto nº1854 (…)” (Os indígenas do Brasil, seus direitos individuais e políticos, 1012, p. 62)

Também pesou a agressão que os índios sofreram, em determinado momento, daqueles que invadiram as suas terras. Isso forçou o deslocamento, só que não foram deslocamentos voluntários, foram deslocamentos compulsórios, em virtude da violência sofrida à época. Isso não retira a característica de permanência na ocupação”.

Por sua vez, a ministra Carmen Lúcia enfatizou que indigenato é a segurança constitucional dos direitos dos povos indígenas, sendo que sua aplicabilidade consubstancia garantias étnicas, culturais e sociais aos povos indígenas do Brasil, vejamos:

“No voto que proferi no ‘caso Raposa-Serra do Sol’ (Pet n. 3.388, Relator o Ministro Carlos Britto, DJe 24.9.2009), observei que, embora as Constituições brasileiras somente tenham cuidado, especificamente, do tema referente aos direitos dos indígenas desde 1934, a matéria foi objeto de legislação antes mesmo da formação do Estado brasileiro, como demonstra a lição de João Mendes Júnior em seu trabalho “Os indígenas do Brazil, seus direitos individuais e políticos” (São Paulo: Typ. Hennies, Irmãos, 1912), que faz remissão ao Alvará de 1º de Abril de 1680, a origem do indigenato, a distinguir a posse dos indígenas sobre suas terras da posse de ocupação.

Como demonstrado pelo Ministro Ilmar Galvão naquela Ação Cível Originária n. 469, as terras de ocupação permanente dos indígenas não eram terras devolutas e não passaram a integrar o patrimônio dos Estados com a Constituição de 1891, passando a posse dos silvícolas a ser protegida constitucionalmente desde 1934.

Na Constituição da República de 1988 se fortaleceu, expressamente, a tutela do indigenato, definidas entre os bens da União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (art6. 20, inc. XI), aos quais se reconheceu como imprescritíveis os direitos delas decorrentes, garantindo-lhes a posse e exclusivo usufruto, nos termos do seu art. 231”.

O ministro Edson Fachin também reforçou sobre a nulidade de títulos e a existência dos direitos dos índios antes mesmo da existência de qualquer outro direito asseverando que a “Constituição Federal de 1934 foi a primeira a consagrar o direito dos índios à posse de suas terras, disposição repetida em todos os textos constitucionais posteriores, sendo entendimento pacífico na doutrina que esse reconhecimento constitucional operou a nulidade de pleno direito de qualquer ato de transmissão da posse ou da propriedade dessas áreas a terceiros”. A partir daí o ministro chama atenção para as remoções forçadas de várias comunidades indígenas. “Ocorre que, no período anterior à Constituição de 1988, os índios – chamados silvícolas – ainda eram tratados como tutelados pelos órgãos de proteção federal e era bastante comum a prática de deslocamento de povos inteiros”.

A ministra Rosa Weber consubstanciou sua posição na premissa constitucional da posse e ocupação indígena. Afirmando que a forma de ocupação dos indígenas é de acordo com suas próprias instituições, usos e costumes, o que pode fazer com que, de acordo com sua lógica relacional, não necessariamente estarem na posse física em determinado tempo, mas sim, de qualquer forma, manterem a posse tradicional. O ministro Ricardo Lewandowski, além de erigir validade hierárquica ao laudo antropológico, reafirmou que o direito dos povos indígenas é assegurado, inclusive, pela legislação internacional, como é o caso da Convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho.

“Não raro, diria, até muito comum, serem os laudos antropológicos desqualificados, imputando-lhes a característica de que são mera literatura. […] e afirmar que a Antropologia é, sim, uma ciência. É uma Ciência porque tem método próprio, um objeto específico e baseia suas conclusões em dados empíricos.

Ao nos debruçarmos sobre estes laudos antropológicos, que integram esses dois feitos, verificamos que são dados antropológicos elaborados segundo os cânones científicos, porque estão fundados em documentos, mapas e provas testemunhais. Portanto, são laudos, do ponto de vista técnico, absolutamente impecáveis (…) e que a meu ver, resolvem a controvérsia fática”.

Fica evidente que a posição majoritária do Supremo que a Constituição de 88 adotou o instituto do indigenato como premissa fundamental para salvaguardar a posse indígena as suas terras tradicionalmente ocupadas. Ou seja, a posse indígena é constitucional, não se perde nos casos de esbulho, expulsões e violência cometidas contra o patrimônio dos povos indígenas, vedado o reducionismo hermenêutico em detrimento do direito dos povos originários.

Marco temporal, uma farsa jurídica

A tese jurídica do marco temporal não nasceu exatamente no âmbito do poder judiciário. Antes do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, esta interpretação jurídica era rotineiramente suscitada nos discursos de parlamentares e de juristas que advogam para os interesses do patronato rural. Cito por exemplo, o discurso do deputado federal Gervásio Silva (PFL-SC), proferido no dia 20 de outubro de 2005, intitulado “Acirramento de conflitos fundiários pela política de demarcação de terras indígenas da FUNAI no Estado”, discorreu[3]:

“[…] e é bom que se repita: a Constituição Federal de 1988 não fala em posse imemorial, mas em terras tradicionalmente ocupadas no presente e de habitação permanente.

[…]

à identificação de uma terra indígena, está completamente divorciado do entendimento atual do STF, externado pela Súmula 650-STF, que consolidou a jurisprudência sobre o reconhecimento de terras indígenas, com base nos seguintes julgados: Recurso Extraordinário n° 219.983-3 – Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJ 17 de setembro de 1999, e Recurso Extraordinário n° 174.488.0 SP – Relator Ministro Ilmar Galvão, 2ª Turma, DJ 13 de agosto de 1999), como todos sabem, esta súmula não reconhece a doutrina de posse imemorial e consagra o princípio jurídico da ocupação atual e permanente das terras tradicionais de ocupação indígena. Explicando que os supostos direitos da suposta comunidade indígena de Araçá só mereciam o abrigo constitucional se os índios lá estivessem em 05 de outubro de 1988”.

Ao que se percebe, essa interpretação restritiva aos direitos dos povos indígenas consistente no “marco temporal”, nasceu justamente de uma leitura equivocada feita a partir da súmula 650 do STF, que preceitua “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”. Entretanto, é preciso fazer uma leitura dessa súmula em conexão com a matéria posto a julgamento que resultou na edição do citado verbete. O precedente da súmula 650 do STF, é o RE 219.983, tendo em vista o interesse da União Federal na solução de ações de usucapião em terras situadas nos Municípios de Guarulhos e de Santo André, no estado de São Paulo, em vista do disposto no artigo 1º, alínea h, do Decreto-Lei 9.760/1946. Como bem salienta o jurista Roberto Lemos dos Santos Filho “é necessário que os operadores do direito atentem ao fato de que aplicação da Súmula 650-STF deve ser realizada aos casos específicos a que ela tem relação, vale dizer, usucapião de terras indígenas a que se refere o Decreto-Lei 9.760/1946” (SANTOS FILHO, 2005).

Ainda no âmbito do legislativo, cabe citar o Projeto de Lei (PL) 490/2007, de autoria do Dep. Homero Pereira que tem por objetivo alterar a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, também conhecido como Estatuto do Índio, propondo que as terras indígenas sejam demarcadas por lei, ou seja, que a demarcação passe pelo crivo do legislativo. O autor justifica a importância da proposição evidenciando que a “demarcação das terras indígenas extrapola os limites de competência da FUNAI, pois interfere em direitos individuais, em questões relacionadas com a política de segurança nacional na faixa de fronteiras, política ambiental e assuntos de interesse dos Estados da Federação e outros relacionados com a exploração de recursos hídricos e minerais”. Em 15 de maio de 2018, o Dep. Jerônimo Goergen apresentou parecer nesta proposição legislativa no âmbito da Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania, propondo a instituição do marco temporal por meio de lei. Fica evidente que é uma clara iniciativa da bancada ruralista implementar o marco temporal pela via legislativa, como uma espécie de retorno ao nicho de onde nasceu, mas agora com precedentes judiciais. No âmbito da discussão da tramitação da PEC 215/2000, verifica-se de forma reincidente os parlamentares que valem-se do argumento do marco temporal para capitanear apoio à aprovação dessa proposta.

Entretanto, foi no âmbito do judiciário que o marco temporal encontrou terreno fértil, enraizando-se e alastrando-se por toda a estrutura. Seus frutos são decisões liminares, sentenças e acórdãos anulando demarcação de terras indígenas e determinando o despejo de comunidades inteiras. No ano de 2009, por ocasião do julgamento da Petição 3.388, no STF, aparece pela primeira vez, no âmbito no poder judiciário, a tese jurídica denominada “marco temporal”. Segundo esta interpretação jurídica, os povos indígenas só teriam direito às terras que estivessem ocupando no dia 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Dessa decisão proferida, tanto as comunidades indígenas quanto o ministério público federal interpuseram recurso de embargos de declaração, buscando com isso, uma nova manifestação da Corte, para se manifestar se as condicionantes se estendiam automaticamente às outras terras ou não. No ano de 2013, o Supremo analisou os recursos de embargos opostos, decidindo que as condicionantes do caso “não vincula(m) juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas (…). A decisão vale apenas para a terra em questão”.

Mesmo após o Supremo ter afirmado que as condicionantes e, de igual modo, o marco temporal, não eram aplicáveis a outras terras indígenas, vários juízes e tribunais começaram imediatamente a usar essa tese jurídica para suspender processos demarcatórios ou determinar despejos de comunidades indígenas. No caso da terra indígena Limão Verde, do povo Terena, no Mato Grosso do Sul, que foi homologada em 2003, teve sua demarcação anulada pela Segunda Turma do Supremo, com base na tese do marco temporal. O relator, ministro Teori Zavascki, entendeu ausentes os pressupostos antes referidos: ocupação indígena, em outubro de 1988, na área disputada e demonstração daquilo que se chama em Direito de esbulho renitente.

Ao analisar o caso da TI Limão Verde, a jurista Deborah Duprat (2018, p. 93), consignou que as “circunstâncias de fato”, não foram levadas em consideração para caracterizar a resistência Terena ao esbulho perpetrado pelos fazendeiros, citando por exemplo: (a) a missiva enviada em 1966 ao Serviço de Proteção ao Índio; (b) o requerimento apresentado em 1970 por um vereador Terena à Câmara Municipal, cuja aprovação foi comunicada ao Presidente da Funai, através de ofício, naquele mesmo ano; e (c) cartas enviadas em 1982 e 1984, pelo Cacique Armando Gabriel, à Presidência da Funai.

Parecer 01/2017 da AGU, um duro golpe aos direitos indígenas

Como visto, em 2009, o STF fixou as denominadas “salvaguardas institucionais às terras indígenas” no acórdão proferido no julgamento da Pet. n. 3.388/RR (caso Raposa Serra do Sol). Instaurou-se o debate sobre se essas “salvaguardas” ou “19 condicionantes” deveriam ser seguidas em todos os processos de demarcação de terras indígenas. No ano de 2012, foi editada a Portaria de n. 303 pela Advocacia Geral da União (AGU) com o propósito de “normatizar” a interpretação e aplicação das 19 condicionantes. Em 25 de julho de 2012, a Portaria AGU n. 308 suspendeu o início da vigência da Portaria n. 303/2012 em razão da oposição de diversos embargos de declaração ao acórdão do STF na Pet. n. 3.388/RR e de um intenso processo de mobilização dos povos indígenas e de organizações sociais. Em 17 de setembro do mesmo ano, uma nova portaria, a Portaria n. 415 da AGU, estabeleceu como termo inicial da vigência da Portaria n. 303 o dia seguinte ao da publicação do acórdão a ser proferido pelo STF nos referidos embargos.

Em 2013 o STF analisou os embargos opostos no caso da Pet. n. 3.388/RR e decidiu que as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol “não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas (…). A decisão vale apenas para a terra em questão”. Após a publicação do acórdão do STF nos embargos de declaração, a AGU publicou a Portaria n. 27 de 07 de fevereiro de 2014, determinando à Consultoria-Geral da União e à Secretaria Geral de Contencioso a análise de adequação do conteúdo da Portaria n. 303/2012 aos termos da decisão final do STF. Diversos órgãos da Administração Pública (FUNAI, AGU, PFE/FUNAI, CONJUR/MJ/CGU/AGU) se envolveram em uma controvérsia sobre a vigência e eficácia da Portaria em questão. Em 11 de maio de 2016, o Advogado-Geral da União, por meio do Despacho n. 358/2016/GABAGU/AGU, determinou que a Portaria n. 303/2012 deveria permanecer suspensa até conclusão dos estudos requeridos por meio da Portaria n. 27/2014.

A partir de 2016, com a ascensão de Michel Temer à presidência da república, iniciou-se um acelerado retrocesso dos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil. Em maio de 2017, quando o ex-presidente da Funai, Sr. Antônio Fernandes Toninho Costa entregou o cargo, acusando o ex-Ministro da Justiça de agir em favor de um lobby conservador de latifundiários e outros interesses da bancada ruralista, inclusive impondo indicações políticas dentro da Funai, o órgão vem sendo dirigido por um general do Exército. A despeito de protestos do movimento indígena nacional, assumiu a presidência da Funai o general Franklimberg Ribeiro de Freitas. Empossado no cargo, Sr. Freitas assinou uma série de medidas controversas, particularmente no que diz respeito à perspectiva de assimilação de povos indígenas, escondida atrás do argumento do desenvolvimento econômico. Enquanto isso, o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) ficou inoperante, corroborado pela falta de interesse do Ministério da Justiça em estabelecer um diálogo com os povos indígenas.

Foi neste contexto, que em julho de 2017, o Ministério da Justiça estabeleceu um grupo de trabalho (Portaria n. 541/2017 do Ministério da Justiça), com vários representantes das forças de segurança e sem a participação de representantes indígenas, para elaborar medidas visando a integração desses povos. Depois de críticas severas por parte do movimento indígena e de organizações da sociedade civil, o ato foi substituído por um similar (Portaria n. 546/2017 do Ministério da Justiça), sob a justificativa de que o objetivo não era assimilação, mas a organização de povos indígenas.

E, no dia 20 de julho de 2017 foi publicado no Diário Oficial da União o Parecer n. 01/2017/GAB/CGU/AGU que obriga a Administração Pública Federal a aplicar as 19 condicionantes que o STF estabeleceu na decisão da Pet. n. 3.388/RR quando reconheceu a constitucionalidade da demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol a todas as terras indígenas. O Parecer tem como objetivo, além de determinar a observância direta e indireta do conteúdo das 19 condicionantes, institucionalizar a tese do “marco temporal” segundo a qual os povos indígenas só teriam o direito às terras que estivessem ocupando na data de 05 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal.

A pretexto de normatizar a atuação da Administração Pública Federal e uniformizar a interpretação constitucional a respeito do processo demarcatório de terras indígenas, o que o Parecer nº 01/2017 da AGU, fez na verdade, foi conceder efeito vinculante e automático à decisão do STF, quando este próprio proibiu essa possibilidade. Na prática este parecer vinculava todos os órgãos da administração pública federal (direta e indireta), atingindo notadamente a Funai e a Procuradoria Especializada da Funai. Os efeitos foram extremamente negativos, porque imediatamente a Funai começou a reanalisar vários procedimentos de demarcação de terras indígenas de todo o país. Outros processos que já estavam na Casa Civil e Ministério da Justiça em estágio avançado, foram devolvidos para a Funai para serem reanalisados. No âmbito da própria AGU, muitos advogados da União que atuavam na defesa dos interesses da União e da Funai, pois as terras indígenas são bens da União, tiveram suas prerrogativas de atuações tolhidas. Em muitos casos, os procuradores da Funai foram obrigados a desistir de fazer a defesa judicial de muitas comunidades indígenas, sob pena de sofrerem procedimento disciplinar. Sem dúvida, este parecer gestado pelo setor ruralista no âmbito do governo de Michel Temer, trouxe sérias consequências aos direitos e interesses dos povos indígenas. Tal parecer foi editado justamente no momento em que Michel Temer precisa do apoio da bancada ruralista para impedir a admissibilidade de denúncia contra si no parlamento brasileiro. A Apib chegou a protocolar representação na Procuradoria Geral da República, mas o caso foi arquivado[4]. Somente em maio de 2020, este parecer foi suspenso pelo STF, após pedido protocolado pela comunidade indígena e demais organizações indígenas e indigenistas, nos autos do processo de repercussão geral que será julgado no próximo dia 23 de junho.

Marco temporal, um genocídio anunciado

O marco temporal é a maior ameaça aos povos indígenas na atualidade. Se aprovado, seus efeitos jurídicos serão capazes de inviabilizar a demarcação de centenas de terras indígenas. O último relatório do Cimi (2021, p. 27), aponta que das 1299 terras indígenas, apenas 422 encontram-se registradas ou homologadas; 282 em alguma fase do processo demarcatório; mas 536 encontram-se sem providência nenhuma. Desde 2016 não há demarcação alguma e os processos iniciados estão totalmente paralisados. Além disso, o marco temporal pode ter efeito retroativo, abrindo a possibilidade para se questionar terras indígenas já demarcadas e homologadas. No STF já tramita um caso assim, trata-se da ACO 2224, que questiona a homologação e demarcação da TI Kayabi, localizada na Amazônia, habitada pelos povos Kayabi, Munduruku e Apiaká. É uma terra consolidada, demarcada há décadas, mas que teve a homologação suspensa com base no marco temporal.

O território é a base física vital para os povos indígenas. Não é possível pensar na sobrevivência de povos sem território. Sem terra demarcada, a reprodução física e cultural dos povos está seriamente comprometida. Há um aspecto muito grave que deve ser levado em consideração que diz respeito ao registro de 114 grupos isolados e de recente contato presente no país. Estes estão seriamente ameaçados pois são povos que vivem de forma autônoma na floresta amazônica e estão localizados em terras ainda pendentes de regularização.

Portanto, não é exagero afirmar que o marco temporal, se aprovado, condenará povos inteiros ao extermínio físico e cultural, caracterizando nesta medida, a prática de genocídio.

Referências

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ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL. Michel Temer violenta os direitos dos povos indígenas para tentar impedir seu próprio julgamento. Disponível em http://apib.info/2017/07/20/michel-temer-violenta-os-direitos-dos-povos-indigenas-para-tentar-impedir-seu-proprio-julgamento/, acesso em 20 de março de 2020.

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Sobre o autor: Luiz Eloy Terena é advogado indígena. Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris. Coordenador do departamento jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). E-mail: [email protected]

[1] Este texto é uma adaptação do original: ELOY TERENA, L. O judiciário e as terras indígenas no Brasil: notas sobre teoria do indigenato versus marco temporal. II Seminário Internacional sobre Democracia, Ciudadanía y Estado de Derecho. Ourense: Universidade de Vigo, 2020. Disponível em http://sidecied.com/wp-content/uploads/2021/03/Libro-II-SIDECIED-2020.pdf

[2] “E para que os ditos Gentios que assim decerem e os mais que ha de prezente milhor se conservem nas Aldeas, Hei por bem que sejão senhores de suas fasendas como o são no Certão sem lhe poderem ser tomadas nem sobre elles se lhes fazer molestia, e o Governador com parecer dos ditos Religiosos assignará aos que descerem do Certão logares convenientes para nelles lavrarem e cultivarem e não poderão ser mudados dos ditos logares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro ou tributo algum das ditas terras, ainda que estejão dadas em sesmaria a pessoas particulares por que na concessão destas se reservaria sempre o prejuiso de terceiro, e muito mais se entende e quero se entenda ser reservado o prejuiso e direito dos Indios primarios e naturaes Senhores delas” (PORTUGAL, 1680).

[3] Câmara dos Deputados. Discurso do Dep. Fed. Gervásio Silva. Acirramento de conflitos fundiários pela política de demarcação de terras indígenas da FUNAI no Estado. 20.10.2005. Disponível em:https://www.camara.leg.br/internet/SitaqWeb/TextoHTML.asp?etapa=5&nuSessao=286.3.52.O&nuQuarto=89&nuOrador=2&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=16:56&sgFaseSessao=GE&Data=20/10/2005, acesso em 20 de março de 2020.

[4] APIB. Michel Temer violenta os direitos dos povos indígenas para tentar impedir seu próprio julgamento. Disponível em http://apib.info/2017/07/20/michel-temer-violenta-os-direitos-dos-povos-indigenas-para-tentar-impedir-seu-proprio-julgamento/, acesso em 20 de março de 2020.

CNJ institui fórum para garantia de acesso ao Judiciário de pessoas e povos indígenas

CNJ institui fórum para garantia de acesso ao Judiciário de pessoas e povos indígenas

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou dois atos normativos referentes à populações indígenas no Brasil, um que que cria o Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas aos Povos Indígenas e Tribais (Fonit), para acompanhar o andamento das demandas judiciais que envolvem essa população, sejam individuais ou de comunidades, em cada tribunal. E um segundo ato que traz diretrizes e procedimentos para garantir o direito de acesso ao Judiciário para pessoas e povos indígenas. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) participou da elaboração através da participação dos advogados indígenas Samara Pataxó e Eloy Terena, da assessoria jurídica da instituição, nos grupos de trabalho que propuseram os atos.

As resoluções levadas a julgamento por meio dos Atos Normativos 0000197-13.2022 e 0009076-43.2021 nasceram de grupo de trabalho do Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário criado para viabilizar o acesso à Justiça dessa população e propor iniciativas baseadas em boas práticas na condução de processos judiciais envolvendo direitos indígenas.

O acesso pleno à Justiça por indígenas, suas comunidades e organizações, está prevista nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal. No entanto, ainda hoje, muitos indígenas sequer contam com documentos civis, que garantam acesso a direitos básicos, como atendimento de saúde.

O FONIT será Presidido por um Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, indicado pelo Plenário e os demais integrantes serão nomeados pelo Presidente do Conselho Nacional de Justiça, por indicação do Presidente do FONIT. O Fórum terá pelo menos uma reunião nacional anual, ocasião em que poderão ser convidados a participar os integrantes dos vários órgãos do Poder Público e da sociedade civil envolvidos com o tema.

O outro normativo traz orientações para o tratamento adequado dos indígenas na Justiça. Assegurar a autoidentificação indígena em qualquer fase do processo está entre as medidas determinadas pelo CNJ, assim como as suas consequências jurídicas, em linguagem simples e acessível, e o registro das informações de autoidentificação nos sistemas informatizados da Justiça. Também está previsto assegurar ao indígena pleno conhecimento dos atos processuais ainda que por meio de um intérprete, de preferência entre os membros de sua comunidade, para que o indígena compreenda o que está ocorrendo e possa, inclusive, recorrer. Também está garantida a intimação da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Ministério Público Federal, a depender da demanda, para que se manifestem na causa.

 

Leia a resolução na íntegra: Resolução CNJ 454

“Não estamos sós”: lideranças indígenas no ATL 2022 se unem pelos povos isolados de recente contato

“Não estamos sós”: lideranças indígenas no ATL 2022 se unem pelos povos isolados de recente contato

Foto: Pure Juma| Comunicador da Coiab

Mesa de debate no Acampamento Terra Livre, em Brasília, alertou para os ataques e retrocessos sofridos no governo Bolsonaro

A mesa “Pelas vidas dos povos indígenas isolados e de contato recente” foi realizada na tarde desta quinta-feira, 7, durante o 18° Acampamento Terra Livre, e contou com a mediação da Coordenadora executiva da Coiab, Angela Kaxuyana, e a participação de Tambura Amondawa, Adriano Karipuna, Junio Yanomami, de Roraima, Ronilson Guajajara, do Maranhão, Beto Marubo (Univaja), Lindomar Terena, Paulo Tupiniquim, Alfredo Marubo, Gilson Mayoruna e Luis Ventura, representante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Muita gente não sabe, mas no Brasil existem diversos povos indígenas que escolheram viver longe da “civilização” imposta. São povos que, durante séculos, resistem à colonização e ao processo de violência desde a chegada do invasor branco nas terras brasileiras.

Ao escolher se manter em isolamento, buscam ter maior controle sobre as relações que estabelecem com grupos ou pessoas que os rodeiam e continuar vivendo com seus usos e costumes. Porém, nos últimos anos, sob o Governo Bolsonaro, o Estado Brasileiro tem se negado a reconhecer sua existência e a garantir seus direitos.

Beto Marubo, membro da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), atribuiu os retrocessos da política de proteção aos indígenas isolados à uma política bolsonarista de genocidio aos povos indígenas, que fez com que a Fundação Nacional do Índio (Funai) se tornasse uma ameaça.

“A Funai que foi criada para proteger e deveria ter uma responsabilidade com esses parentes. Apesar de serem livres, eles estão muito vulneráveis. Sabe o que a Funai está fazendo agora? Está negando [a existência dos] nossos parentes”, enfatizou Beto Marubo durante a mesa.

Para agravar a situação, ainda hoje há missões religiosas que têm o intuito de colonizar a cultura originária, o que representa uma grande ameaça epidemiológica, que se soma ao desmatamento e à invasão de grupos que praticam a extração ilegal de ouro, minério, madeira e caça para comércio nessas regiões.

O povo Yanomami é um dos que tiveram contato mais recente. Um vídeo foi exibido com imagens dos garimpos dentro dos territórios, os mesmos que Bolsonaro propõe regularizar com o PL 191. O cenário acentua ainda mais os problemas de saúde que os povos isolados têm enfrentado.

O líder indígena Júnior Hekurari, do povo Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kwana (Condisi-YY), destacou que já foram feitas várias denúncias a nível nacional e internacional acerca da violência sofrida pelos povos isolados e de recente contato em seus territórios.

“A terra indígena está sendo invadida pelos garimpeiros. Nossos parentes estão com pneumonia. Todos os dias uma criança yanomami morre, as mães choram junto com a floresta. Mais de 25 mil garimpeiros estão dentro de nossas terras, os garimpeiros tomaram os postos de saúde, e o povo indígena está pedindo socorro” destacou, emocionado, o líder Indígena.

Júnior estimou que cerca de 7 mil estão doentes de malária. Só em 2021, morreram 300 crianças com a doença, quase uma por dia. Para ele, a política do governo Bolsonaro promove o risco e o extermínio. “Agora a Sesai virou quartel. Tem muitos coronéis, muitos soldados trabalhando lá. O governo federal não faz planejamento para garantir a assistência dentro da comunidade”, lamentou.

Alfredo Marubo, apontou os desvios na atuação da Funai nesse processo. “Todos os dias passam toneladas de carne da caça em frente à sede da Funai e ninguém faz nada. Eles não estão fazendo nada, dizem que a gente está mentindo, não fazem nada e ainda ameaçam os povos. O Bolsonaro está colocando anti-indígenas para cuidar das aldeias, mas eles só vão lá para passear e vêm embora”.

Com a inoperância dos órgãos federais na proteção dos direitos indígenas, a exploração tem avançado sobre as matas e se aproximado cada dia mais dos povos isolados.

Na plenária, os povos que tiveram os primeiros contatos séculos atrás se solidarizaram com esses povos que estão vivendo de forma autônoma na floresta. “Nós exigimos respeito. Estamos usando essa língua maldita porque fomos forçados, fomos humilhados. Vimos nossas crianças crescendo e morrendo. Hoje o que está acontecendo na Amazônia, nós já sofremos. Por isso estamos aqui para dizer que vocês não estão sozinhos. Nós estamos juntos. Esta casa é dos povos originários do Brasil”, solidarizou-se o cacique Júnior Pataxó, do Sul da Bahia.

A Coordenadora Executiva da Coiab, Angela Kaxuyana, destacou a importância dessa união para a proteção desses povos, uma vez que o Estado Brasileiro não tem cumprido seu papel de proteger os territórios, colocando em risco a vida desses povos que decidiram viver em isolamento, após fugirem de massacres.

“Em nome da Coiab, da Amazônia, a gente quer externar a gratidão e mandar um recado pro Bolsonaro que a Amazônia não está sozinha, que a essência desse movimento indígena é que vai vencer, é essa essência do movimento indígena que aqui no acampamento deve permanecer de respeito, de solidariedade e de manifestação de que estamos juntos. E sempre soubemos, meus parentes, que nós nunca estamos sozinhos, porque o Nordeste e a Apoinme estão junto com a Amazônia”, finalizou Angela Kaxuyana.

Alertas de desmatamento
Em 2021, o desmatamento disparou em terras indígenas com presença de povos indígenas isolados, segundo o boletim Sirad-I, do Instituto Socioambiental (ISA). No ano, foram desmatados 3.220 hectares, com 904 alertas dentro dos territórios.

Os alertas concentraram-se, principalmente, nas Terras Indígenas Piripkura (MT), Uru-Eu-Wau-Wau (RO), Araribóia (MA) e Munduruku (PA). Além disso, durante todo o ano de 2021, também foi possível detectar grandes desmatamentos nas bordas desses territórios, o que indica uma tendência de aumento das invasões contra os territórios desses povos isolados.

A Terra Indígena Araribóia, localizada no Maranhão, foi uma das mais devastadas por invasões de madeireiros e grileiros, com mais de 380 hectares desmatados em seu interior. Além disso, em 2021, incêndios criminosos castigaram o território.

Isolados ou Dizimados

A campanha isolados ou dizimados é encabeçada pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e pelo Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi), e inclui a participação de outras organizações do campo socioambiental, como o ISA, a Survival International e a Operação Amazônia Ativa (OPAN). Lançada em 20 de agosto de 2021, a campanha tem como foco pressionar a Funai para a renovação de quatro portarias: Terras Indígenas Piripkura (MT), Jacareúba/Katawixi (AM) e Piriti (RR) e TI Ituna-Itatá (PA).

ACESSE: https://www.isoladosoudizimados.org/

Desde o ano passado, foram realizadas diversas ações a fim de alertar a opinião pública para a atual condição dos povos indígenas isolados que estão correndo o risco de perderem seus territórios, sem uma proteção legal e efetiva.

No fim de novembro de 2021, a Coiab lançou um manifesto em defesa da vida dos povos indígenas isolados, onde destacou que os crescentes ataques e pressões sobre os territórios estão ligados ao gradual enfraquecimento da política indigenista da Funai e do fortalecimento da pauta governamental anti-indígena.

Frente aos retrocessos de proteção por via dos órgãos de Estado, o movimento indígena, junto com os seus aliados, está fortalecendo estratégias para conter as invasões nas TIs, com monitoramento e ações de proteção autônomas no território, a fim de proteger os seus “parentes isolados”. Além disso, vem fazendo inúmeras denúncias e acionando a Justiça para garantir a proteção legal dos seus territórios e modos de vida.
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Indígenas de todo o país marcham em defesa da demarcação dos territórios, em Brasília

Indígenas de todo o país marcham em defesa da demarcação dos territórios, em Brasília

Mais de 7 mil indígenas, de 200 povos do país, marcharam pela demarcação dos territórios e contra a agenda anti-indígena do governo brasileiro; o ato fez parte da programação do ATL 2022 

A força dos povos indígenas tomou conta das ruas da capital federal na tarde dessa quarta-feira (6): com faixas e cantos, mais de 7 mil indígenas, de 200 povos de todas as regiões do país, marcharam em defesa da demarcação dos territórios e contra a agenda anti-indígena do governo brasileiro. O ato fez parte da programação do 18º Acampamento Terra Livre (ATL) 2022 , localizado na área externa do Complexo Cultural Funarte, no Eixo Monumental, em Brasília.

O destino final da marcha foi o Congresso Nacional, onde tramitam projetos que violam os direitos dos povos originários, como o Projeto de Lei 191/2020, que dá abertura para a exploração das terras desses povos, e o PL 490/2007, que inviabiliza, na prática, a demarcação de terras indígenas. 

Durante a mobilização, lideranças se pronunciaram em cima de um carro de som e reforçaram a importância de desembarcar em Brasília, nesta semana, para lutar pela causa indígena. 

O jovem Samuel Gavião falou sobre sua luta, como estudante, para conquistar os direitos resguardados pela Constituição Federal de 1988. “Estamos estudando para buscar nosso direito, o que é nosso. Temos que lutar. Os nossos parentes confiam e colocam a gente na frente para lutarmos ao lado deles, para voltarmos para as nossas terras. Não vamos desistir. Vamos lutar com força, não somos minoria, somos muitos. Vamos lutar até o fim, enquanto estivermos vivos”, afirmou. 

Presente também na marcha, Agnaldo Francisco, liderança Pataxó Hã-Hã-Hãe e coordenador geral do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba), comentou sobre o primeiro ato do ATL 2022, nomeado como “Demarcação Já”. 

“Esse ato de hoje [6] é muito importante para mostrar à sociedade brasileira que as pessoas não conseguirão viver sem a demarcação dos nossos territórios, porque, se o território não for demarcado, um projeto de morte será implementado. Morte não só para nós [povos indígenas], mas para todos os brasileiros, para todo o planeta. A demarcação do nosso território significa a preservação do meio ambiente, significa preservar e diminuir o desgaste da camada de ozônio”, explicou o coordenador do Mupoiba.

ATL 2022

Considerada a maior mobilização indígena do Brasil, o acampamento ocorre no mesmo período em que o Congresso Nacional e o governo pautam a votação de projetos que violam os direitos dos povos indígenas.

A mobilização é uma realização da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que volta a Brasília, neste ano, com o tema ‘Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política’. O ATL encerra no dia 14 de abril. 

Acesse a programação, aqui.

 
Marco Temporal

Logo no primeiro dia do acampamento, Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Apib, afirmou, durante a coletiva de imprensa, que os povos estão se preparando para voltar em junho para a capital, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgará o marco temporal. Esse julgamento irá definir o futuro das demarcações de terras indígenas no Brasil.

A Apib destaca que a tese do marco temporal restringe o direito das comunidades às terras que tradicionalmente ocupam e é repudiada pelos povos indígenas, que apontam a tese como inconstitucional. 

Em 2019, o STF reconheceu a repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, caso que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina. Isso significa que a decisão tomada neste julgamento terá consequências para todos os povos indígenas do Brasil.

Advogados indígenas lutam para colocar Bolsonaro como réu na corte internacional e indígena no Supremo brasileiro

Advogados indígenas lutam para colocar Bolsonaro como réu na corte internacional e indígena no Supremo brasileiro

Por Geanini Hackbardt
A mesa Advocacia Indígena, realizada na manhã desta quarta-feira, durante o 18° Acampamento Terra Livre reuniu advogados indígenas, diversos representantes do poder judiciário e da sociedade civil para demarcar a centralidade dos embates nas instâncias da justiça brasileira para garantir os direitos indígenas. O debate foi aberto por representantes do povo Pataxó da Bahia, os primeiros a sofrerem com a invasão branca sobre os territórios. “Nós somos o primeiro povo a ser massacrado pelos brancos, mas estamos vivos. E vamos continuar vivos nos nossos territórios, protegidos por Deus. Porque nós somos à terra, nós somos a água, nós somos o meio ambiente. Pode vir PL, pode vir marco temporal, nós vamos continuar resistindo. Estamos aqui para lutar juntos, somos todos iguais. Awery.”, afirmou o Cacique Pequi.
Em seguida a mesa foi composta pelos advogados indígenas Paulo Pankararu, Dinamam Tuxá, Weibe Tapeba, Manaimi Xucuru Kariri Maurício Terena, Ivo Macuxi Jorge Tabajara. E pelos convidados Déborah Duprat, Subprocuradora-Geral da República; Marcia Brandão Zollinger, Procuradora dos Direitos do Cidadão Adjunta da Procuradoria da República no Distrito Federal; Eliana Torelly, Coordenadora da 6° Câmara do Ministério Público; Fabio Felix Silveira Deputado Distrital (PSOL-DF) e presidente da Comissão de Direitos Humanos da CLDF; Ronan Figueiredo, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Distrito Federal; Felício Pontes, Procurador Regional da República; Darcy Frigo, Presidente da Comissão da Nacional de Direitos Humanos; Gabriel Travasso, da Defensoria Pública da União; Juliana Batista, Advogada do Instituto Sócioambiental; Rafael Modesto, Advogado do Conselho Indigenista Missionário; Welerson Pereira, Secretário Geral da Comissão de Povos Indígenas da OAB-DF; Aluísio Azanha, Advogado do Centro de Trabalho Indigenista; Ronan Ferreira Figueiredo, Defensor Público do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Distrito Federal.
Eliana Toreli, do Ministério Público Federal destacou a importância de mobilizações como o ATL. “Nós precisamos que a sociedade veja esse movimento e saiba que vocês estão aqui para reivindicar os seus direitos. Nós precisamos advogados indígenas no ministério público, dessa força do movimento indígena. E estamos aqui para ouvi-los e levar a voz de vocês adiante”.
Em seguida Dinamam Tuxá, advogado e coordenador executivo da APIB, relembrou que “há cinco, dez anos atrás, a gente não via uma cadeira mista da área jurídica. E hoje estamos aqui entre indígenas e apoiadores de vários povos. Espero que essa bancada de advogados em breve esteja ocupando outros cargos como o MP, como juízes e quem sabe até o Supremo. Nós somos vítimas do processo colonizador, mas os povos indígenas do Brasil hoje se qualificam para fazer o enfrentamento em todas essas instituições”.
A Dra. Débora Duprát afirmou que “o ATL é um exemplo de luta e organização para o Brasil. Se todos os coletivos se organizassem como os indígenas, nós não teríamos Bolsonaro no poder. Na internet não temos política, temos uma estratégia individualista de promoção do ódio. Não estamos aqui para lutar com ódio, mas com nossos direitos e as grandes decisões do supremo nos últimos quatro anos foram favoráveis aos povos indígenas. Por isso vocês já são vitoriosos”.
As falas seguiram em tom comemorativo e de denúncia do antigoverno Bolsonaro. “Por muito tempo o estado brasileiro disse que não éramos capazes de nos representar. Agora, nós estamos no judiciário para descolonizar este espaço. E se o judiciário brasileiro não responsabiliza Bolsonaro, nós vamos responsabilizar. Por isso levamos a denúncia de genocídio à corte internacional. O lugar de Bolsonaro é no banco dos réus”, anunciou o advogado indígena Ivo Macuxi.
Felício Pontes, Procurador Regional da República, ressaltou que o momento é histórico e quem começou a advogar para os movimentos populares há mais de20 anos atrás não poderia imaginar aonde chegaria. Para ele “muitas ações foram feitas e por melhor que fossem suas defesas, nunca nenhum de nós [não indígenas] conseguiria fazer como hoje é feito por um advogado Indígena. Jamais conseguiríamos o mesmo efeito”. Felício também apontou uma ação jurídico-políticas para os advogados, já que mesmo com as vitórias jurídicas a Funai segue incapaz de executar as decisões. Para ele é preciso fazer uma ação civil pública estrutural contra a Funai para mexer nas estruturas defasada da instituição, que teve uma redução drástica no orçamento, principalmente na área da demarcação.

ATL

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Representatividade: Indígena advogada toma posse de assessora no TSE

Representatividade: Indígena advogada toma posse de assessora no TSE

Nesta quinta-feira (24), a co-coordenadora executiva do setor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e assessora jurídica da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espirito Santo (Apoinme); do Movimento Unido dos Povos e das Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba), tomou posse no núcleo de inclusão e diversidade da secretaria Geral da Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), na função de assessora, a convite do atual ministro Edson Fachin.

Samara Pataxó é nascida na aldeia Coroa Vermelha, do povo Pataxó, em Porto Seguro, na Bahia. Ela é advogada, faz doutorado em Direito na UnB (Universidade de Brasília) e desde a graduação na UFBA (Universidade Federal da Bahia) estuda e trabalha com direitos territoriais indígenas.

A cerimônia de posse aconteceu em Brasília, hoje, 24 de fevereiro, dia que celebra os 90 anos da justiça eleitoral e da conquista do voto feminino no Brasil. Samara vai acompanhar o Núcleo de Inclusão e Diversidade no Tribunal, pelo que tem como missão potencializar as frentes de atuação e trabalho que a justiça eleitoral já desempenha nesse tema. Como exemplo, cita-se o fortalecimento e incentivo às candidaturas femininas e de pessoas pretas, bem como ampliar, incentivar e inserir novas propostas para que outros/as sujeitos/as diversos/as e plurais possam exercer seus direitos civis e políticos, tais como o de votarem e de serem votados/as.