O Supremo Tribunal Federal suspendeu para próxima quarta-feira (5), o julgamento da liminar que obriga o governo a implementar um plano emergencial de proteção aos povos indígenas durante a pandemia da Covid-19.
“Essa ação é a voz dos povos indígenas na Corte (do STF) e é uma ação histórica porque pela primeira vez os indígenas vem ao judiciário em nome próprio.”, reforça o advogado da APIB Luiz Eloy Terena (@luizeloyterena) durante a primeira parte do julgamento.
Confira na íntegra a defesa da APIB aos povos indígenas no STF feita na tarde de hoje (3):
Sustentação Oral ADPF 709
Dr. Luiz Eloy Terena – advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
Excelentíssimo Senhor Ministro Presidente Dias Toffoli
Excelentíssimo Senhor Ministro relator Luís Roberto Barroso
Senhores Ministros
Senhoras Ministras
Ilustre representante do Ministério Público
Inicialmente quero consignar a minha enorme satisfação, na qualidade de advogado indígena do povo Terena, de estar representando nesta ação a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), esta importantíssima organização que vem fazendo a defesa incansável dos povos indígenas, e que, mesmo num contexto político tão adverso, possui lideranças indígenas que têm feito uma resistência qualificada em prol da vida.
Quero saudar o eminente ministro e professor Luís Roberto Barroso por receber a petição da APIB, e proporcionar no âmbito da mais alta corte do país o diálogo intercultural.
Esta ADPF é a voz dos povos indígenas nesta Corte.
É o grito de socorro dos povos indígenas.
Esta iniciativa é uma ação histórica. Porque pela primeira vez, no âmbito da jurisdição constitucional, os povos indígenas vêm ao judiciário, em nome próprio, por meio de advogados próprios, defendendo interesse próprio. Pois durante muitos séculos esta qualidade de sujeito ativo de direito nos foi negada. Ainda no período colonial, pairava-se a dúvida se os índios eram seres humanos, se tinham almas. Foi preciso uma bula Papal reconhecendo esta qualidade de que os índios tinham almas e, portanto, eram passíveis de evangelização.
Depois instrumentalizou-se a tutela legal, na qual os índios não podiam falar por si mesmos. Sempre tinham que pedir licença para os puxarará, termo da língua terena utilizado para se referir aos brancos.
Foi somente com a Constituição de 1988 que os índios, suas comunidades e organizações tiveram reconhecido o direito de estarem em juízo defendendo seus interesses. Seguindo este preceito, a Constituição rompeu com a perspectiva integracionista que antes orientava a política indigenista do Estado brasileiro e determinou respeito às formas organizacionais, línguas, crenças, costumes e tradição dos povos originários, estabelecendo o Estado pluriétnico. A nossa Carta Magna irá completar 32 anos, e, passados todos esses anos, aqui estão os povos indígenas batendo à porta do judiciário.
É porque o momento requer!
Não há espaço para protelar o debate sobre o direito fundamental dos povos indígenas. Para se proteger a vida indígena, faz-se necessário proteger os seus territórios.
Para o fortalecimento da democracia, é preciso entender que proteger os povos indígenas é compromisso do Estado brasileiro e não pode ser mitigado em hipótese alguma.
Esse vírus que assola o mundo chegou em nossas aldeias. A história se repete, pois, no período da ditadura, a disseminação de vírus por meio de distribuição de roupas foi utilizada como forma de extermínio dos indígenas, conforme o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Essa pandemia está escancarando vários problemas sociais que assolam as comunidades indígenas. Desde a precariedade do subsistema de atenção à saúde indígena, passando pela negativa de atendimento aos indígenas que se encontram nas terras ainda não homologadas, até a importância de se respeitar a biodiversidade presente em nossos territórios. Além de olhar para o importante papel que os territórios indígenas desempenham no equilíbrio da vida humana, incluindo-se nisto o equilíbrio sanitário.
O Brasil possui atualmente, 305 povos, falantes de 274 línguas e mais o registro de 114 povos isolados e de recente contato. Neste contexto de pandemia, nossas lideranças estão morrendo. Nossos anciões são nossos troncos vivos. São os guardiões da nossa cultura e dos nossos saberes.
Mesmo neste contexto de pandemia, nossas comunidades não tiveram paz. Pois a todo o momento, além de lutar pela vida, redobraram-se lutando contra os interesses políticos e econômicos que recaem sobre as terras indígenas. O número de desmatamento e invasões aumentou sobremaneira. Estes fatos, públicos e notórios, constituem crimes, mas neste momento são também os vetores diretos para a disseminação do vírus nas terras indígenas.
Cito aqui o escândalo mundial referente à TI Yanomami, que já tem até decisão da Comissão Interamericana para os invasores sejam retirados. Segundo os dados da Associação Hutukara, são aproximadamente 20 mil garimpeiros dentro da TI.
Há pouco mais de um mês, a Covid-19 vitimou nosso líder Paulino Paiakan. Liderança indígena que fez nascer a Constituição, participou ativamente da construção da Carta Magna, que outorgou-lhe a proteção integral.
Hoje, segundo os dados do Comitê da Vida e Memória Indígena da APIB, são 623 indígenas mortos; 21.646 infectados e 146 povos atingidos. Chamando atenção para os estados do Amazonas, Pará, Mato Grosso, Roraima e Maranhão.
Posto isto a APIB pugna pelo reconhecimento de sua legitimidade, na qualidade de entidade de representação de âmbito nacional dos povos indígenas. Não obstante a APIB não estar constituída nos moldes do direito civilista, temos que sua personalidade jurídica irradia da própria Constituição.
Senhores Ministros e Senhoras Ministras, não é exagero alertar esta corte que temos sim um sério risco de genocídio. Temos povos isolados que, se forem contaminados, corre-se o risco de ser o grupo inteiro exterminado. No caso dos indígenas, o genocídio vem seguido do etnocídio, porque além do extermínio da vida, tem-se também o extermínio das culturas que jamais serão recuperadas.
Diante do exposto, espera a APIB que este egrégio Plenário referende a medida cautelar concedida pelo Min. Luís Roberto Barroso.
Em relação à presença de invasores em terras indígenas, reitera-se que seja determinado à União Federal que tome imediatamente todas as medidas necessárias para a imediata retirada dos invasores nas Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-EuWau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá, valendo-se para tanto de todos os meios necessários, inclusive, se for o caso, do auxílio das Forças Armadas, indo além, neste ponto, em relação à medida cautelar sob referendo.
Por fim, encerro esta sustentação parafraseando o nosso líder Davi Kopenawa, em seu livro “A queda do céu”, quando diz: “Eu gostaria de ter dito aos brancos, já na época da estrada: ‘Não voltem à nossa floresta! Suas epidemias xawara já devoraram aqui o suficiente de nossos pais e avós! Não queremos sentir tamanha tristeza de novo! Abram os caminhos para seus caminhões longe da nossa terra!’
Muito obrigado!