Sentença da subseção de Santarém, publicada nesta terça (27), considera que a instrução normativa nº9 da Funai representa um retrocesso na proteção socioambiental, incentiva a grilagem de terras e os conflitos fundiários

A Justiça Federal de Santarém anulou, ontem (27), os efeitos da Instrução Normativa nº 9 da Fundação Nacional do Índio (Funai), que incentiva o crime de grilagem em territórios indígenas. A decisão é a primeira sentença sobre a normativa, que foi publicada dia 22 de abril, durante a pandemia da Covid-19. 

O juiz da 1º Vara Federal Civil e Criminal de Santarém, Domingos Moutinho da Conceição, acatou a Ação Civil Pública (ACP) feita pelo Ministério Público Federal (MPF) contra a Funai e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) que contesta a Normativa n°9. Para o juiz,  a Instrução representa um indevido retrocesso na proteção socioambiental e incentiva a grilagem de terras e os conflitos fundiários.

De acordo com a sentença, a IN 9 “contraria o caráter originário do direito dos indígenas às suas terras e a natureza declaratória do ato de demarcação” e “cria indevida precedência da propriedade privada sobre as Terras Indígenas, em flagrante ofensa ao art. 231, §6º, da Constituição, cuja aplicabilidade se impõe inclusive aos territórios não demarcados”

Em declaração conjunta no processo, Funai e Incra alegam que não existe a possibilidade de violação do direito originário dos povos indígenas, uma vez que as áreas reivindicadas ainda não tiveram processo demarcatório finalizado. No entendimento dos órgãos, a Constituição confere proteção às terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas quando a condição reconhecida após a conclusão do respectivo processo administrativo.

O juiz ainda destaca que Funai e Incra agem contra seus deveres institucionais quando defendem os interesses de particulares em prejuízo à proteção das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas que, segundo a Constituição, são bens da União: “Observa-se tanto dos termos do instrumento normativo impugnado quanto da manifestação dos demandados a clara opção pela defesa dos interesses de particulares em detrimento dos interesses indígenas e, por conseguinte, do próprio patrimônio público, numa aparente inversão de valores e burla à missão institucional daqueles entes.”

Para o assessor jurídico da Apib Luiz Eloy Terena a “decisão é importante porque resguarda os direitos dos povos indígenas, tendo em vista que estamos vivenciando um contexto político muito adverso, onde as pessoas pensam que está liberado invadir e explorar os territórios tradicionais”. Ele relembra ainda, que durante audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ocorrida no dia 06 de outubro, a APIB denunciou esta normativa e naquela ocasião o atual presidente da Funai disse que a normativa visava dar segurança jurídica. No entanto, “vemos que a segurança jurídica era para os ruralistas e não para as comunidades indígenas”, reforça Eloy Terena. 

A Instrução Normativa n° 9

O (des)governo Bolsonaro publicou, no dia 22 de abril, outra medida anti-indígena. No meio de uma crise sanitária que já nos custou 865 vidas e impactou diretamente 158 povos, Funai emitiu a Instrução Normativa nº 9 que permite legalizar o crime de grilagem dentro de áreas indígenas. Uma medida inconstitucional e criminosa, que agrava ainda mais a violência contra os povos indígenas e incentiva o aumento de crimes ambientais.

Ainda em abril, o Ministério Público Federal (MPF) emitiu recomendação feita por 49 procuradores de 23 estados para Funai anular a Normativa nº 9. A medida descumpre decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e de Cortes Internacionais que reconhecem os direitos indígenas. Esta norma do governo também desrespeita a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. 

Nosso direito não começa em 1988

No texto da sentença, o juiz relembra o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no estado de Roraima, em que o Supremo Tribunal Federal considerou que o direito originário reconhecido na Carta Magna – resultado da articulação política dos povos indígenas – “é um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios” 

Embora tenha sido um marco jurídico importante no reconhecimento dos direitos indígenas, a Constituição Federal não garantiu a devida proteção aos territórios tradicionais. É corriqueiro que o direito originário dos povos indígenas sobre as terras que ocupam seja questionado por meio de manobras jurídicas como a Instrução Normativa n°9 da Funai. Outro estratégia utilizada é a tese do marco temporal que relativiza a ocupação dos povos originários. 

Um julgamento de repercussão geral no STF estava marcado para esta quarta (28), porém foi retirado de pauta sem previsão de uma nova data. Esse julgamento pode definir o futuro dos povos indígenas, pois servirá como parâmetro para os processos demarcatórios seguintes. A tese do marco temporal representa uma inconstitucionalidade e terá impactos sobre a proteção dos povos indígenas, colocando em risco, inclusive, os povos isolados e de recente contato.

Povos indígenas de todo Brasil se mobilizam para denunciar mais essa estratégia que segue a violência histórica contra os povos originários, é uma ameaça ao direito de existir.