Por Eloy Terena* e Rafael Modesto**
O cacique Tito Vilhalva tem mais de 100 anos e já testemunhou toda sorte de selvageria contra o seu povo. As hostilidades começaram a se intensificar justamente na década de 20 do século passado, quando ele nasceu. A partir dali, as terras dos guarani kaiowá começaram a lhes ser tomadas sistematicamente, sempre com o uso da intimidação ou da violência.
Em maio de 2019, aconteceu o inimaginável: 15 crianças foram atingidas em cheio por uma nuvem de agrotóxicos lançada numa fazenda vizinha. A história horrorizou o mundo. Se foi proposital ou não, o fato é que os guarani kaiowá foram encurralados. Vivem em meio a um deserto verde e são submetidos a condições desumanas. Agora, o Supremo Tribunal Federal (STF) terá a oportunidade de fazer a Justiça prevalecer e lhes proporcionar uma vida mais digna.
A área reivindicada pelos guarani laiowá para a terra indígena Guyraroka, que fica no Mato Grosso do Sul, é de pouco mais de 11 mil hectares — para efeito de comparação, a Fazenda Nova Piratininga, o maior latifúndio do país, tem 135 mil hectares. Mas o processo de demarcação da terra, que se encontrava em estágio avançado, foi anulado em 2014 pela Segunda Turma do STF. De uma hora para outra, perderam seu chão. Atualmente, eles ocupam uma área de apenas 55 hectares. São 26 famílias. A decisão foi levada a cabo por um mandado de segurança e levou em consideração a tese absurda do “marco temporal”. Há anos a Ação Rescisória (AR) 2686, que reverte aquele veredicto, aguarda sua apreciação final. O principal argumento da AR é que falta consultar os Guarani Kaiowá. Esse direito lhes é garantido pelo artigo 232 da Constituição.
O “marco temporal” prega que os indígenas só teriam direito de reivindicar as terras que tivessem sob sua posse, comprovadamente, no dia da promulgação da Constituição Cidadã, 5 de outubro de 1988. Mesmo aqueles que tivessem sido expulsos com o uso da violência, fato corriqueiro na História do Brasil. É considerado inconstitucional pelo Ministério Público Federal e por juristas de renome, como Dalmo de Abreu Dallari e José Afonso da Silva, por ferir frontalmente o artigo 231 da Carta Magna — que anula qualquer título de propriedade localizada em terras tradicionalmente ocupadas por povos originários. A tese cai por terra também porque até 1988 os indígenas eram tutelados pelo Estado; logo, estavam impedidos de propor ações na Justiça.
O “marco temporal” foi mencionado pela primeira vez na Petição 3388/RR, que tratava da homologação da Raposa Serra do Sol, em 2012. Entretanto, o dispositivo não foi usado sequer naquele caso. O tribunal decidia se propriedades de não indígenas deveriam, ou não, constar da área demarcada. O segundo conceito prevaleceu, e todas as posses não indígenas no interior da terra indígena foram anuladas, incluindo a Fazenda Guanabara, cuja posse datava de 1918. Como escreveu o ministro Luís Roberto Barroso nos embargos de declaração da Petição 3388/RR, “ainda que algumas áreas abrangidas pela demarcação sejam ocupadas por não índios há muitas décadas, estando situadas em terras de posse indígena, o direito de seus ocupantes não poderá prevalecer sobre o direito dos índios”. Depois de um século dedicado à defesa de seu território, já passou da hora de o cacique Tito Vilhalva ter um pouco de paz.
*Assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
**Assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário e advogado dos guarani e kaiowá de Guyraroká
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Artigo orginalmente publico no Jornal O Globo, em 05/04/2021. Disponível para assinantes.