foto Carlos Penteado
Marco de proteção dos povos tradicionais tem sido descumprido pelo país. Envio tardio de respostas do governo aos questionamentos do organismo internacional e de organizações impede manifestação de Comitê de Peritos
O Brasil tem violado sistematicamente a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), conforme denunciam organizações sociais em informe enviado recentemente para o organismo internacional. No relatório elaborado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), com apoio da Terra de Direitos e Central Única dos Trabalhadores (CUT), é listado um conjunto de ações do Estado brasileiro que descumprem o principal instrumento jurídico internacional sobre proteção dos direitos dos povos indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais.
Além de uma longa descrição de ações referentes ao período de 2019 e 2020 do Estado brasileiro que violam os direitos de autodeterminação, de participação nas decisões que afetem seus modos de vida e de posse e propriedade dos seus territórios tradicionais, entre outros – determinações presentes na Convenção 169, o relatório ressalta como a omissão do Estado na proteção aos indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais diante da Covid-19 tem especialmente violado os direitos destes povos tradicionais, exposto-os a um contexto de ainda maior de vulnerabilidade à pandemia e aos efeitos dela.
É nesse contexto que se inscrevem as ações movidas pelas mesmas organizações no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2020. Diante da negligência do Estado brasileiro em implementar ações específicas para indígenas e quilombolas para enfrentamento da grave crise epidemiológica já instalada no país, a Apib e Conaq, com apoio de diversas organizações, ajuizaram – cada organização – uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Em julgamentos de ambas ações os ministros do Supremo reconheceram a omissão governamental e determinaram que o Estado brasileiro desenvolvesse e implementasse, em caráter de urgência, planos de enfrentamento à pandemia dirigidos aos povos indígenas e população quilombola, bem como inclusão desses grupos dentre os prioritários para vacinação no Programa Nacional de Imunização. Passados vários meses das decisões pelo STF, a Conaq, Apib e organizações têm reiteradamente denunciado as fragilidades nas medidas implementadas.
Fundamental na garantia dos direitos dos povos tradicionais, quilombolas e indígenas no Brasil, a Convenção 169 tem orientado parâmetros para diversas normas e políticas públicas brasileiras desde a ratificação da norma pelo país, em 2002 – como na estruturação de programas de saúde e educação dirigidas aos povos indígenas. Mesmo com mais de 15 anos de vigência da norma em território nacional, antes da pandemia, o Brasil já vinha descumprindo a Convenção, apontam as organizações. A urgência da denúncia neste momento, entretanto, sublinham as organizações, é que as violações foram intensificadas nos últimos três anos e os direitos já assegurados sofreram significativas retrações, sobretudo durante o governo Bolsonaro.
Como destaca a assessora jurídica da Terra Direitos, Maira Moreira, “um dos instrumentos mais fundamentais de afirmação de direitos dos povos indígenas, quilombolas e dos demais povos e comunidades tradicionais está sendo sucessiva e reiteradamente violado pelo Estado brasileiro, produzindo uma situação de genocídio desses povos e comunidades, um genocídio lento e gradual, em que todas as suas condições materiais, culturais, sociais são minadas, colocando em risco a existência desses povos e comunidades”. Uma vez que “já vinha [a Convenção] sendo violada, mas no contexto de pandemia essa violação foi agravada”, reitera o advogado da Apib, Eloy Terena.
Informações governamentais tardias
Ao ratificar uma Convenção da OIT o país passa a ter a obrigação de apresentar relatórios regulares sobre as medidas adotadas para sua implementação. Entregues no prazo regular para análise pelo Comitê de Peritos – um grupo de 20 juristas de diferentes nacionalidades, os documentos devem também conter respostas às informações solicitadas pelo órgão e por organizações dos trabalhadores do respectivo país. Após análise das informações pelo grupo técnico, o Comitê pode emitir observações ou solicitações diretas de novas informações – e posteriormente reagir às devolutivas.
“A submissão de nosso relatório aos Peritos da Comissão de Aplicação de Normas da OIT se insere dentro do sistema de Controle Regular de Normas da entidade. A partir dos nossos comentários sobre a aplicação da Convenção 169 pelo Estado brasileiro nós expomos para a comunidade internacional todas as violações cometidas pelo governo”, aponta o assessor jurídico e secretário de relações internacionais da CUT, Fábio Bon.
Em relatório lançado em fevereiro deste ano, o Comitê de Peritos da OIT teve que se restringir a republicar os comentários referentes ao Brasil já feitos em 2019. Isto porque a resposta do Governo às perguntas feitas pelas organizações e já pontuadas pelos peritos há dois anos foi enviada tarde demais para exame pelo Comitê em sua reunião atual.
O envio tardio – e a impossibilidade de análise das respostas pelo Comitê – impacta no monitoramento pelo órgão e pela sociedade sobre o cumprimento da Convenção pelo Brasil. No entanto, é possível aferir que as violações – já relatadas em documentos anteriores – foram ainda mais agudizadas na história recente brasileira, já que o governo federal mostra-se abertamente opositor aos povos e comunidades tradicionais.
Nenhum centímetro
O período de registro das violações pelo Brasil à Convenção 169 remetido à OIT coincide com o período de gestão de Jair Bolsonaro (sem partido). Abertamente opositor aos direitos dos povos e comunidades tradicionais, o presidente já declarou que no governo dele “não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”, ou seja, por um lado, sinalizou grande abertura para exploração de terras indígenas ao afirmar que “onde tem uma terra indígena, tem uma riqueza embaixo dela. Temos que mudar isso daí ”, por outro lado, fez declarações racistas ao se referir a população quilombola quando disse que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais”.
Não são apenas as declarações presidenciais que caminham lado a lado com a negação e a violação dos direitos destas populações, como também o desmonte da política indígena e quilombola sedimentado pelo governo federal. Um dos exemplos mais simbólicos foi a reforma administrativa no início da nova gestão.
Pela Medida Provisória 870/2019 os órgãos responsáveis pelas políticas quilombolas e indígenas foram realocados para pastas e sob comandos de expoentes vinculados ao agronegócio. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – autarquia responsável pelos direitos territoriais quilombolas – foi realocado da Casa Civil da Presidência da República para o Ministério da Agricultura, pasta administrada pela ruralista Tereza Cristina (PSL). Já a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a atribuição de demarcação de terras indígenas também foram transferidas do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH). O novo arranjo para Funai e demarcação só foi revertido por decisão do Congresso Nacional. No entanto, o Incra segue sob a tutela do Ministério da Agricultura.
Direito basilar, a proteção e posse coletiva dos territórios tradicionais são um dos grandes gargalos no quadro de violações. Garantia constitucional e assegurado em vários artigos da Convenção 169, o direito ao território pelos povos tradicionais no Brasil esbarra na omissão administrativa federal, no orçamento caducante e no avanço do mercado sobre as áreas.
Ao menos 821 terras indígenas aguardam alguma providência do Estado brasileiro, em suas diferentes instâncias, segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Ou seja, 63% das 1.290 terras indígenas ainda não são reconhecidas – no papel e no direito – pelo Estado brasileiro.
A fotografia da titulação quilombola é ainda mais frágil – em pouco mais de 30 anos de vigência da Constituição de 1988, apenas 181 terras quilombolas foram tituladas (entre titulações estaduais e federais), dessas 47 titulações parciais. Ainda que os dados oficiais do Incra não sejam atualizados desde janeiro de 2019, o esvaziamento orçamentário nos últimos anos para a titulação quilombola evidencia o que Incra deixa de informar: de acordo com Nota Técnica apresentada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), desde 2017 não há recursos orçamentários para regularização fundiária, e o Brasil só titulou 7% destas áreas.
“Nós temos a certeza que todos os direitos de povos indígenas, quilombolas e tradicionais estão atrelados a seus territórios. Não tem como proteger as comunidades e garantir proteção sanitária sem falar em direito territorial. Daí envolve demarcar todas as terras indígenas, regularizar territórios quilombolas e proteger os que já estão demarcados”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos e Conaq, Vercilene Dias.
No rol de ataques aos territórios tradicionais ainda orbitam a incursões de grileiros, mineradores, garimpeiros e ruralistas. Em 2020, das 81.225 famílias vítimas de invasões em seus territórios, 58.327 são indígenas, de acordo com levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Os territórios ficaram totalmente à mercê destes invasores. Só a presença deles já é uma violação ao usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre seus territórios, mas nesta pandemia as incursões ilegais torna-se um vetor de disseminação da doença”, sublinha Eloy.
O documento enviado pelas organizações à OIT ainda destaca a violação do direito de autodeterminação pelos povos, ataques à políticas para estes povos, como a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), entre outras violações. Veja quadro.
Investidas legislativas
Não apenas o Executivo tem posto em andamento ações contínuas de desmonte de estruturas e ações vinculadas a quilombolas e indígenas, mas também o legislativo federal impõe uma pauta desfavorável a estes povos. Bancada mais expressiva no Congresso, os parlamentares vinculados à Frente Parlamentar da Agropecuária – um lobby bancado por associações e empresas do agronegócio – contabilizam 32 das 81 cadeiras no Senado. Na Câmara, os 225 deputados filiados à frente representarão 44% do total de votos (513) de toda casa legislativa.
Com esta representação majoritária e nenhuma correspondência com a composição da população brasileira, os ruralistas impõem uma agenda que possibilita a entrada do mercado nos territórios. Um exemplo singular é o PL 490/2007. O projeto de lei ameaça a demarcação de terras indígenas, abre as portas destes territórios para empreendimentos agropecuários, hidrelétricas, mineração, estradas e o garimpo. Em um cenário de intensa violência policial contra os indígenas nos arredores da Câmara dos Deputados e ausência de diálogo com quem será impactado pela medida, o PL foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara no dia 23 de junho. Isto em plena pandemia.
Já o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 177/2021 busca ferir diretamente a Convenção 169. De autoria do deputado federal e integrante da FPA, Alceu Moreira (MDB-RS), o projeto de lei protocolado em abril deste ano visa autorizar o presidente a denunciar a Convenção 169 da OIT, ou seja, caso aprovado, o Decreto Legislativo permitiria que Bolsonaro retirasse o Brasil da Convenção, procedimento chamado de “denúncia”, representando um enorme retrocesso aos direitos conquistados. A matéria legislativa já foi distribuída para comissões.