Foto: Scarlett Rocha
Mais de 6 mil indígenas vieram a Brasília em um dos momentos mais graves já vivenciados pelos povos indígenas para demandar respeito e garantia dos seus direitos
Há 521 anos, nós, Povos Indígenas do Brasil vivenciamos e experienciamos o significado de luta. Lutamos para sobreviver, para assim sermos respeitados por um Estado que despreza nossas existências, usurpa nossos territórios tradicionais e nos relega a uma condição de subcidadania. A herança do passado colonial é persistente e violenta e, hoje, ganha respaldo e novo impulso sob a gestão de Jair Bolsonaro, o presidente da República que nos elegeu como inimigos prioritários mesmo antes de sua posse.
A história do movimento indígena no Brasil é uma história de luta e resistência, mobilização e inovação constantes, e de busca pela construção de pontes e alianças entre os nossos 305 povos, que vivem em todas as regiões do país. Tamanha diversidade étnica, geográfica cultural e linguística, para além de uma inestimável riqueza, converte-se também em desafio quando se busca a unidade na luta. Para superar esta dificuldade, que é reforçada e explorada pelos inimigos que tentam artificialmente dividir e forjar disputas e oposições entre nossos parentes, nós renovamos nossa aliança a partir de nossa ancestralidade compartilhada.
A luta pela vida, mote do acampamento que agora reúne 6 mil indígenas em Brasília, se estabelece como uma necessidade e uma urgência para nós, povos originários, tão logo a face perversa e genocida do projeto colonialista se revelou. Vivemos em estado de alerta desde que o primeiro pé europeu pisou nesta terra, antes mesmo de lhe nomearem Brasil.
É sintomático que após cinco séculos de colonização, ainda tenhamos de bradar em defesa de nossas vidas, tanto quanto nossos ancestrais tiveram de fazer no passado. A luta segue sendo a mesma, mas ao longo de todos esses anos, nós acumulamos tecnologias de sobrevivência e estratégias de articulação.
Aprendemos desde o tempo de nossas ancestrais e com nossos mais velhos que quando o inimigo tenta nos subjugar pela força e pelo ódio, o caminho mais potente para fazer frente às agressões é nos unirmos. Assim fez o movimento indígena no processo constituinte de 1988, com a participação de lideranças de diversos povos na construção de uma pauta de afirmação de direitos. Conseguimos incluir parte de nossas demandas no texto da Constituição Federal, o que nos deu um suporte institucional inédito para avançarmos na luta por políticas públicas que contemplassem nossas necessidades específicas e especialmente garantissem a demarcação de nossas terras indígenas.
Isso, no entanto, não foi suficiente para convencer o Estado Brasileiro e uma nação que ainda não arrancou de sua cultura as raízes mais profundas do racismo de que nos respeitar plenamente enquanto cidadãos e cidadãs de direito não é favor nenhum – é obrigação. Tanto a Constituição Federal quanto tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário são categóricos ao afirmar a obrigação do Estado de demarcar territórios indígenas e proteger nossa integridade física.
Diante dessa necessidade infindável de reafirmar que nossas vidas importam, quando realizamos uma mobilização nacional com um número histórico de participantes, no meio da pandemia mais grave que o mundo enfrentou nos últimos séculos, são duas as conclusões que calam mais fundo em nosso peito. A primeira é que a situação ainda é desfavorável e urgente, e esse é um dos fatores que nos traz massivamente a Brasília. Nossos povos não aguentam mais contar histórias de morte, de fogo, de dor, de destruição. Queremos contar outras histórias, queremos falar de nossas riquezas, de nossas culturas, da nossa alegria.
E isso nos traz à segunda conclusão: a percepção nítida de que o movimento indígena no Brasil alcançou um nível de maturidade, organicidade e força que nos coloca definitivamente como sujeitos de nossa própria história. Nosso protagonismo está sedimentado em séculos de luta de nossos ancestrais, e na clareza de que não há mais espaço para o silenciamento. O mundo está vendo e ouvindo o que se passa com nossos povos, e somos nós, parentes, somos nós mesmos que estamos no controle de nossa narrativa!
O recorde de parentes e números de povos mobilizados em Brasília se converte, portanto, em um recado para o mundo, e principalmente, para aquelas forças que insistem em tentar nos violentar: não nos calaremos! Nossa força é maior do que nunca! Somos 6 mil em Brasília, e representamos todos e todas as parentes que seguem na luta em nossos territórios. Somos 6 mil que representamos os milhões de ancestrais que foram apagados da história. Somos 6 mil que representamos o futuro dos povos indígenas do Brasil!