Por comunidades tradicionais e indígenas de Cumuruxatiba

O município de Prado, no extremo sul baiano, é palco dos conflitos por terra mais antigos do Brasil. Desde que esta paradisíaca costa recebeu a invasão portuguesa, expulsando os indígenas, moradores originários do local, a violência e a pistolagem é promovida por grileiros e latifundiários que ameaçam as vidas da população nativa. 

Na última quarta-feira, 20 de outubro, houve mais uma tentativa de atentado. Lucas Lessa avançou o carro sobre Xawã Pataxó (Ricardo) quebrando sua moto e provocando alguns arranhões. “A gente acabou de ter um ataque aqui na comunidade, no território, onde o pessoal dos Lessa estava. Justamente o Lucas Lessa com homens no carro. A gente explicando pra ele a decisão que tem do STF, do ministro Dias Toffoli para esse território da Aldeia Kaí… Ele infelizmente jogou o carro em cima da gente, a gente teve que se defender com nosso tacape. Ele veio em direção a mim com o carro e consegui se livrar do atropelamento. Mas ele quebrou minha moto também, passou por cima da moto. Aí estamos comunicando os companheiros. A gente não vai deixar mais as nossas praias serem fechadas e nosso território ser tomado”, denunciou Xawã. 

Ao tentar denunciar a violência na delegacia de polícia de Prado, alguns minutos depois, a liderança indígena se deparou com Lucas que acabava de dar um depoimento. O delegado, por sua vez, se recusou a ouvir a denúncia da vítima.

A tentativa de coerção é motivada pela disputa em torno principalmente das Praias do Moreira e do Calambrião, que vem sendo cercadas por grileiros para criar condomínios de luxo. Os acessos tradicionalmente utilizados pelas comunidades extrativistas, marisqueiros e indígenas foram cercados, impedindo a passagem destes povos e dos turistas que frequentam a região. 

No último sábado, 16, as comunidades se uniram para reabrir uma das estradas, que leva à Praia da Biquinha. Um loteamento ilegal também está em curso na Praia do Moreira, que é parte da Resex Corumbau (Reserva Extrativista Marinha de Corumbau). As comunidades denunciam e tentam retirar as cercas para conter a especulação imobiliária promovida pela chegada de estrangeiros e milionários. No mesmo território encontra-se a aldeia Kaí, que segundo o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) integra o Território Indígena de Comexatibá, mais conhecido pelos turistas como Cumuruxatiba.

“Essa questão não é só de Pataxó, não é só dos pescadores que nesse momento de fome estão impedidos de pescar, de pegar o seu peixe, porque a carne esta cara. É também do interesse nacional. Foi nesse lugar que baixou o primeiro barco das caravelas através de Nicolau Coelho. Isso é um patrimônio nacional e mundial da humanidade. Esse patrimônio está sendo tomado de nós brasileiros. O que está acontecendo aqui é um verdadeiro atentado contra a memória nacional e contra a terra Pataxó e os povos indígenas do Brasil. Está tudo invadido, ninguém tem mais acesso a praia”, alerta Maria Geovanda Batista, professora e pesquisadora da Universidade do Estado da Bahia e acompanha a causa há anos.

 

 

Quem é Lucas Lessa

 

Lucas Lessa é filho do advogado José Carlos Lessa, envolvido no esquema de compra e venda ilegal de lotes do INCRA, de acordo as denúncias feitas pela imprensa em 2011. Ele reside em uma mansão à beira da Praia da Japara Grande e transformou o que deveria ser um lote da reforma agrária em restaurante particular. A família Lessa, natural do Rio de Janeiro, adquiriu ilegalmente uma série de lotes à beira da praia, inclusive na Praia do Calambrião, onde possuem outra mansão. Lucas é advogado, porém se passa por pescador no distrito de Cumuruxatiba. 

 

O assentamento Cumuruxatiba foi homologado no Plano Nacional de Reforma Agrária em 1987 e abrangia 268 beneficiários. No entanto, as dificuldades para o estabelecimento das famílias assentadas com a morosidade na implantação das políticas da reforma agrária e a pressão exercida por fazendeiros e empresários, gananciosos sobre as riquezas litorâneas, gerou a mercantilização das terras públicas. Hoje o assentamento está completamente desconfigurado, há mansões construídas para veraneio e locação para pessoas ricas, já que a diária pode chegar até mil reais durante o verão. 

 

Conflito centenário

 

O território que originou a vila de Cumuruxatiba, pequena área urbanizada, e o PA Cumuruxatiba, é habitado pela etnia Pataxó desde os tempos de Pindorama. Alguns documentos nos relatórios da FUNAI registram a presença destes indígenas desde 1577, numa área que abrange as praias acima da vila, a Fazenda Paraíso e a suposta Fazenda dos Lessa e segue sentido Norte até Caraíva. Durante séculos eles foram massacrados e forçados ao êxodo, tendo suas aldeias incendiadas, como é o caso conhecido como Fogo de 51. As ameaças recorrentes deixaram o povo em situação de extrema vulnerabilidade diante das diversas invasões.

Mesmo o projeto de assentamento, que pela lei deveria beneficiar prioritariamente os nativos, foi criado sem considerar a existência dos Pataxós. Além do INCRA, houve a sobreposição feita pelo então Ibama (hoje ICMBio), que criou Unidades de Conservação (UC) com as áreas de ocupação histórica dos Pataxó. Trata-se do Parque Nacional do Monte Pascoal, implantado sobre o Território Indígena Barra Velha do Monte Pascoal, e o Parque Nacional do Descobrimento, sobreposto ao TI Comexatibá (Cahy/Pequi).

Desde 1999 os Pataxós deflagraram a retomada de seu território e fundaram cinco aldeias no entorno da vila de Cumuruxatiba: Kaí, Pequi, Tibá, 2 irmãos e Gurita. Atualmente há uma decisão do Supremo Tribunal Federal em benefício dos Pataxó que reafirma seu direito sobre as terras, no entanto não há nenhum tipo de fiscalização do Estado que garanta a segurança e a efetividade deste direito. A atuação do governo Bolsonaro tem estimulado a violência e a ampliação dos conflitos, ao mesmo tempo em que atua no desmonte da FUNAI. As comunidades apontam a demarcação como saída para o conflito e seguem resistindo nas áreas de retomada. 

“A gente precisa de apoio das autoridades porque estamos passando um momento tão difícil, a carestia taí, tem muitas pessoas que não conseguem comprar um quilo de carne, estão na fila do osso. E isso a gente não quer para o nosso povo. A gente quer melhoria, não só para nós indígenas, como para todos os brasileiros que entenderem a nossa luta”, apela o Cacique da Aldeia Tibá, José Fragoso.