Foto tirada por Xuli Ribeiro na Segunda Marcha das Mulheres indígenas 2021
por Aldenora Pimentel e Kamuu Dan Wapichana
A infância não é para nós o ponto inicial. O começo está na ancestralidade e na dinâmica viva com que a memória nos constrói, fortalece e nos impulsiona para as experiências. Não é o meio e nem só o final. A infância tem a mesma relevância de contribuição em todo o processo de resiliência dos povos originários, pois é durante todo o percurso que se aprende a importância de cada indivíduo na coletividade.
As crianças não são só futuro, pois para ela existir, a responsabilidade do presente é fundamento essencial e agora, mais do que nunca, esse compromisso se torna emergencial. Por isso, não é possível separar os debates sobre cultura, educação, trabalho, brincadeiras, saúde, meio ambiente, direito e outros. Para nós, tudo está intrinsecamente interligado à nossa espiritualidade ancestral e à nossa sobrevivência.
Nosso esforço é garantir todas as existências, e isso só é possível mantendo a saúde da Mãe Terra. Todas as energias são voltadas para essa defesa, para a continuidade do legado dos guardiões da natureza, que exercem esse cuidado e que lutam diariamente para assegurar a dignidade coletiva dos seres. Todos somos protagonistas, e também as crianças cumprem um papel fundamental nesse cordão de resistência permanente, carregando no sangue e na memória a história de luta, a beleza do fortalecimento, a leveza do acreditar e do fazer.
Cada passo é um aprendizado, uma conexão. Cada ser é uma história, mas não existe história sem território. Nossa história está inteiramente vinculada ao território a que pertencemos. No entanto, não se trata apenas do espaço geográfico onde nascemos, mas também da conexão que a ancestralidade nos permite agregar, sentir, vivenciar, transmitir e compartilhar conhecimentos. Na infância se aprendem valores, mas também é ali que as crianças nos ensinam que a força não se sustenta quando estamos sozinhos, e que ganhamos experiência com a coletividade.
Estamos passando por um momento muito difícil atualmente, no qual essa conexão e esse equilíbrio estão sendo rompidos com o avanço do agronegócio e da degradação do meio ambiente, e até podendo afirmar que, em muitos lugares, as mulheres estão ficando inférteis. Como pensar em futuro sem assegurar o princípio da vida?
Não há espaço para as crianças em um contexto em que, com a cobiça pelos recursos naturais e terras indígenas, só resta a beira das estradas para muitas famílias, como é o caso dos Guarani Kaiowá e de tantos outros que foram expulsos de seus territórios ancestrais. Passam por uma situação complicada os Yanomami nas terras indígenas em Roraima, onde sofrem com a contaminação dos rios, fonte de toda existência. Com a exploração do minério em suas terras, seus corpos começam a adquirir o inimaginável e o desconhecido que trazem morte e destruição. E após as cidades invadirem nossas aldeias e avançarem para o progresso, como nós podemos falar de futuro para nossas crianças tendo um presente que fere e mata? Só nos resta ensinar aos pequeninos o fervor ao lutar por nossa própria existência?
Queremos mais que uma lembrança de um dia termos passado por essas terras. Queremos continuar tendo o direito de mantermos nossas diferenças que tanto nos igualam e nos tornam únicos coletivamente. Que nos fazem acreditar até sempre que, independente de nossas crenças, ideologias, idades e conhecimentos, podemos conviver. E indo mais além… que podemos bem viver.
Nessa relação única, os olhares indígenas infantis afirmam que somos um só, e por isso o respeito é o principal elemento que deve ser praticado diariamente, e que a sabedoria ancestral se manifesta em todas as formas de vida.
Fomos arrancados de nossos territórios e nossa própria história nos foi negada. Por isso, voltar o olhar carinhoso para as crianças se faz tão necessário, pois as mudanças geradas pela ganância e pela opressão afastam a infância ainda mais de nossas origens, costumes e tradições. O dinheiro parece continuar ter mais importância que a vida! Como permanecer com esse vínculo e com esse cuidado se continuam a nos arrancar do seio da Mãe Terra?
Agora é o momento para refletir e agir! Uma mão unida à outra nutre a alma, aquece o coração e fortalece a caminhada. Passos para o bem viver, mesmo por caminhos diferentes, sinais de respeito à vida. Experiência e cuidado manifestam aprendizado coletivo que nos constrói e nos transforma em sementes férteis, e assim não deixamos de ser crianças, continuamos a aprender e a nos relacionar bem com todos os seres.
Porque aqui usamos nós e não somente mencionamos a palavra criança? Porque a infância está em nós até o final, basta olharmos para dentro de nós para lembrar quem realmente somos. Independente de onde estivermos, esse será nosso lugar de fala e resiliência!
Aldenora Pimentel
Licenciada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Roraima (UERR) e Especialista em Residência Agrária com Habilitação em Cultura, Arte e Comunicação pela UnB. Pesquisadora na área de literatura indígena contemporânea com foco no suporte pedagógico e formação de profissionais da educação sobre a temática indígena em sala de aula.
Kamuu Dan Wapichana (Filho do Sol)
Mestre dos saberes tradicionais, estudante de Gestão Ambiental na Universidade de Brasília, escritor, contador de histórias, educador socioambiental popular, permacultor, nascido em Boa Vista-RR, de origem do Povo Wapichana.