Foto: David Terena/@cons.terena
Por Dinamam Tuxá e Kleber Karipuna, coordenadores Executivos da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
Desde 1995, as Nações Unidas celebram anualmente o Dia Internacional dos Povos Indígenas em 9 de agosto, com o intuito de aumentar a conscientização e proteger os direitos da população indígena, sobretudo seus direitos a tomar suas próprias decisões – sua autodeterminação, e a executá-las de forma culturalmente apropriada. Entretanto, após quase 30 anos da instituição desta data, os povos indígenas têm poucos motivos para comemorar.
Ao redor do mundo, vivenciamos a negligência de nossos direitos em prol de um modelo desenvolvimentista que prioriza a exploração de nossas terras através da extração de combustíveis fósseis, de minérios, da expansão do agronegócio e de empreendimentos imobiliários, ignorando a relação inalienável que temos com nossos territórios ancestrais, um direito originário reconhecido internacionalmente e também pela Constituição Federal do Brasil.
Apesar de o Estado brasileiro ter se comprometido em demarcar todos os territórios em até cinco anos, apenas 483 dos 1.239 territórios indígenas foram demarcados até hoje, ou seja, 61,01% dos nossos territórios permanecem sem reconhecimento por parte do Estado. A morosidade na demarcação dos territórios traz consequências concretas e nefastas para os povos indígenas, agravadas ainda mais nos últimos anos.
O Relatório sobre Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil em 2022 [Cimi] demonstrou que, entre 2019 e 2022, foram registrados 795 assassinatos de indígenas durante o governo de Jair Bolsonaro, representando um aumento de 54% em comparação aos governos de Dilma Rousseff e Michel Temer. O documento aponta que a maior parte destes crimes tem relação direta com conflitos territoriais.
Neste contexto, consideramos o julgamento do Marco Temporal como o “julgamento do século” pois, caso o Supremo Tribunal Federal (STF) decida que apenas os territórios ocupados pelos povos indígenas na data de promulgação da nossa Constituição Federal sejam passíveis de demarcação, vivenciaremos um aumento nos conflitos territoriais, e seu impacto em nossas vidas e comunidades será sem precedentes.
É fundamental que o STF rechace de uma vez por todas essa tese que é motivada pelos interesses do agronegócio, e que desconsidera os séculos de perseguição e violência que impossibilitaram que muitos de nós estivéssemos ocupando nossos territórios em 5 de outubro de 1988. Mas a responsabilidade da Suprema Corte em fazer cumprir nossos direitos vai além de reconhecer a inconstitucionalidade do Marco Temporal.
O voto deferido pelo Ministro Alexandre de Moraes na retomada do julgamento (7 de junho) traz outros elementos de preocupação. Ainda que o Ministro rejeite a tese do Marco Temporal como tal, seu voto propõe uma interpretação alternativa, com o alegado intuito de “conciliar” os conflitos entre os povos indígenas e os invasores de nossos territórios.
O julgamento agora possui dois votos contrários ao Marco Temporal e um favorável à tese genocida, feito em 2021, pelo ministro Nunes Marques. O primeiro voto favorável aos povos indígenas foi realizado pelo ministro Edson Fachin, que fez um posicionamento histórico e reafirmou em seu voto, que os direitos indígenas são originários.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) reforça o mesmo entendimento do ministro Fachin, que é relator do caso. “A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 e independe da configuração de renitente esbulho”, afirmou Fachin em seu voto. Ou seja, não existe marco temporal e nossos direitos são originários.
Diferente de Fachin, o Ministro Moraes propõe, entre outras medidas, a indenização prévia a portadores de títulos de propriedade que tenham adquirido áreas sobrepostas aos nossos territórios de boa fé. Atualmente, a previsão legal de indenização prévia é restrita às benfeitorias realizadas de boa fé por portadores de certidão de propriedade sobreposta a terras indígenas O Ministro Moraes inova em seu voto ao propor que a indenização seja pela terra nua, ou seja, por toda a propriedade.
Na prática, a proposta de Moraes premiaria os invasores dos nossos territórios. Pequenos proprietários com títulos de posse sobrepostos a territórios indígenas representam a minoria dos casos de sobreposição. O agronegócio é responsável pela maior parte dessas invasões: a pecuária é responsável por 55,6% das áreas de sobreposição em terras indígenas, seguida pela soja, que representa 34,6% das sobreposições, segundo o relatório Os Invasores, publicado recentemente pelo De Olho nos Ruralistas. Além de premiar os invasores, a proposta do Ministro Moraes paralisaria ainda mais a política demarcatória no Brasil, ao passo que introduz maior ônus ao orçamento da União para a realização das indenizações prévias.
Esta propositura se assemelha ao atual status da política de titulação dos territórios quilombolas. Em recente análise da organização Terra de Direitos, no ritmo atual, o Brasil levaria 2.188 anos para titular todos os territórios quilombolas com processos em análise no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), devido sobretudo à insuficiência orçamentária para promover a indenização dos territórios quilombolas – o que não seria diferente para os territórios indígenas.
Além disso, o Ministro Moraes considera em seu voto a possibilidade de o Estado brasileiro promover a “compensação de Terras às comunidades indígenas”, concedendo-lhes propriedades em outros lugares, que supostamente seriam “terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas”.
Essa proposta desconsidera por completo os Direitos Territoriais Indígenas estabelecidos na Constituição Federal, assim como nossa intrínseca relação com nossos territórios, os quais são indispensáveis para a manutenção de nossos costumes, línguas, tradições, identidades e à conservação dos nossos modos de vida. A relação dos povos indígenas com seus territórios vai muito além do direito patrimonial e é reconhecida por diversas convenções e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O Estado brasileiro tem o dever constitucional de garantir nosso direito de ocupar nossos territórios de acordo com nossos modos de vida tradicionais. Mas promover a demarcação de nossas terras não é do interesse apenas dos povos indígenas, mas é também necessário para a garantia de um futuro para as próximas gerações de todo o planeta.
Os povos indígenas são protagonistas na luta contra as mudanças climáticas: através de nossa íntima relação com nossos territórios, nós protegemos 80% da biodiversidade do planeta [ONU]. Nos últimos 30 anos, o Brasil perdeu 69 milhões de hectares de vegetação nativa, segundo o MapBiomas. Porém, apenas 1,6% desse desmatamento foi registrado em terras indígenas. Não há como considerar a preservação de nossos biomas e políticas consistentes contra as mudanças climáticas sem garantir o pleno usufruto dos povos indígenas em seus territórios.
Na última edição do Acampamento Terra Livre (ATL, abril de 2023), nossa principal mobilização nacional, os povos indígenas do Brasil decretaram emergência climática. No último mês, o Secretário Geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, afirmou que a era do aquecimento global acabou, que já estamos vivenciando a era da ebulição global, com consequências catastróficas sendo cada vez mais registradas ao redor do globo.
Caso o STF reconheça o Marco Temporal ou proponha medidas que inviabilizem a célere e efetiva demarcação dos nossos territórios, as consequências serão diretas para os povos indígenas em nossos corpos e territórios, mas também serão sentidas por toda a população. Por isso, dizemos que o Marco Temporal é também um julgamento climático.
Neste simbólico Dia Internacional dos Povos Indígenas, estamos na Cúpula da Amazônia, que acontece em Belém, reunidos com chefes de Estado e os principais atores da agenda climática nacional e internacional, alertando uma vez mais que não temos mais tempo para nos limitarmos às negociações de compromissos, é necessário agir. Promover a demarcação dos territórios indígenas é uma das principais formas de ação climática, a qual está prevista em nossa Constituição Federal e já possui todos os meios institucionais para ser executada.