“Krenak não era um povo, mas uma cadeia. Até hoje o povo Krenak tem seu nome vinculado a um aspecto negativo, embora seja um nome sagrado (kren: cabeça; nak: terra)”, lembra Douglas Krenak. O depoimento consta no processo do Ministério Público Federal contra o Estado, aberto em 2015. Há anos o povo indígena Krenak cobra justiça pelas violações de direitos, torturas, trabalho forçado e maus tratos da ditadura, entre 1957 e 1980. O julgamento finalmente foi marcado para a próxima semana, dia 8 de abril de 2025.

O processo relata que os governos militares se caracterizaram pelo desrespeito às instituições indígenas, pela sistemática expulsão dos indígenas de suas terras, e pela vulnerabilização, destruição biológica e cultural de comunidades.

Uma das ferramentas do etnocídio e genocídio criadas pela ditadura foi o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, mais conhecido como Presídio Krenak, para onde eram sequestrados indígenas de vários povos. “Ninguém podia falar a língua indígena; só podia falar a língua “do branco”; se falasse língua indígena, apanhava e ficava preso. […] Não podia beber, não podia ir em festa”, relembra Dejanira Krenak. O presídio dentro do território transformou a vida de todo o povo Krenak, que passava os dias em constante vigilância, sendo submetidos a torturas de acordo com a vontade dos militares.

O Presídio Krenak foi criado em 1969, dentro da Terra Indígena Krenak, na área do Posto Indígena Guido Marlière, na margem esquerda do Rio Doce, entre os municípios de Resplendor e Conselheiro Pena, no estado de Minas Gerais. Povos de todo o país foram aprisionados. Porém, no dia 15 de dezembro de 1972, todos os Krenak e todos os confinados no presídio foram forçados a se deslocarem para a Fazenda Guarani, no município de Carmésia (MG), outro centro de detenção arbitrária. O episódio é chamado pelo povo de Exílio.

As terras do povo Krenak foram demarcadas em 1920, pelo Estado de Minas Gerais. Com o tempo, fazendeiros foram cercando a terras indígena, tanto por meio de arrendamentos incentivados pelo SPI (Serviço de Proteção aos Índios), como por meio de invasões. O aumento de não-indígenas foi acompanhado por conflitos com os fazendeiros que pressionavam pela retirada do povo de sua própria terra.

Os Krenak ganharam na justiça, através da Funai, o direito de reintegração de posse na área do PIGM contra os posseiros da região, em 1970. Contudo, os fazendeiros invasores se mobilizaram e enviaram até telegramas ao presidente Médici. O governo militar atendeu prontamente aos pedidos dos invasores. O povo Krenak foi conduzido para a Fazenda Guarani, que havia sido doada pela PM de Minas à Funai, com o objetivo de que a Fundação repassasse a área do Posto Indígena no município de Resplendor para o governo estadual para que esse, por sua vez, as doasse para os fazendeiros.

No município de Carmésia, o povo Krenak foi obrigado a conviver com etnias rivais, poucas terras férteis, clima frio a que não estavam habituados, a falta do cipó, que era matéria prima para a artesanato, e a ausência do Rio Doce, que era o centro de suas atividades culturais. Eles passaram fome, sobrevivendo à custa de banana verde cozida ou assada com angu e farinha.

Oito anos após a remoção, os Krenak decidiram fugir da Fazenda e começaram a retornar às suas terras, a despeito do grande temor de serem recebido com violência pelos fazendeiros e pelos agentes do Estado.

Assim, cerca de 25 indígenas Krenak retomaram suas terras, mas encontraram um intenso processo de devastação, impossibilitando a caça e a coleta, as terras tomadas por fazendeiros com títulos emitidos pelo governo de Minas Gerais. Eles ficaram reclusos a uma pequena faixa na beira do Rio Doce.

Somente em 10 de março de 1983 a Funai ajuizou uma ação sobrea nulidade dos títulos dos imóveis locais. Em 1993, o STF julgou procedente a ação, declarando nulos os documentos dos fazendeiros. Estes, por sua vez, defenderam a posse afirmando que a “etnia” Krenak estava praticamente extinta.

Vinte cinco anos após o Exílio, em 1997, os Krenak conseguiram retomar uma pequena parte de seu território e, em 2001, por meio de Decreto de 19 de abril, foi homologada a demarcação da Terra Indígena do Povo Krenak.

Finalmente, a Comissão Nacional da Verdade, reconheceu a ocorrência da sistemática e brutal violação de direitos pelo regime militar. Agora, a ação do MPF procura o reconhecimento pelo Estado Brasileiro, através de um pedido público de desculpas e a reparação econômica coletiva, por tal desagregação social e cultural que colocou em risco a própria existência dos Krenak enquanto povo.

*Com informações do processo do Ministério Público Federal