Funcionários da petroleira vão à aldeia Manga dois anos após assumir projeto na Foz do Amazonas
“As palavras se vão. Nós, indígenas, aprendemos isso a duras penas. Temos que documentar.” Com essa frase Priscila Karipuna repetiu a solicitação para que a Petrobras se comprometesse a seguir o Protocolo de Consulta Prévia dos Povos Indígenas do Oiapoque, documento que informa ao governo e empresas como devem incluir os povos em decisões administrativas e legislativas que afetarão suas vidas e seus direitos. O pedido, algumas vezes ignorado pela equipe de 13 pessoas da Petrobras, foi feito em reunião do Conselho de Cacique dos Povos Indígenas do Oiapoque (CCPIO) na aldeia Manga, na Terra Indígena Uaçá, no dia 13 de fevereiro. Ao fim do encontro ficou acordado com o cacique Edmilson Oliveira, do povo Karipuna, que o CCPIO criará um grupo de trabalho com representantes indígenas, da Petrobras, para acompanhamento das atividades na Foz do Amazonas.
“As contrapartidas são um leque de opções. Vamos ouvir vocês e construir juntos com seus anseios e queremos saber os seus receios. A mão de obra hoje é muito pequena, a Petrobras não tem escritório em Oiapoque. No aeroporto empregamos 20 pessoas, três delas são indígenas. Sempre que possível vamos buscar absorver mão de obra indígena. Indiquem quem vocês querem que seja o elo de contato, que estamos dispostos a criar um comitê”, disse uma funcionária da Petrobras.
Estavam presentes 36 cacicas e caciques dos povos Karipuna, Palikur-Arukwayene, Galibi Marworno e Galibi Kali’na, além de integrantes das aldeias, das organizações indígenas, a secretária extraordinária de povos indígenas do Estado do Amapá, Simone Karipuna, representantes da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e as organizações da sociedade civil Iepé (Instituto de Pesquisa e Formação Indígena) e WWF-Brasil.
Solicitada por ofício do CCPIO à Petrobras, a reunião foi a primeira oportunidade dos povos dialogarem com a petroleira sobre as movimentações já iniciadas em Oiapoque para o processo de licenciamento ambiental para exploração do bloco FZM-59 na bacia da Foz do Amazonas, a 178 km da cidade no extremo norte do Brasil.
As colaboradoras e colaboradores da Petrobras informaram que cinco embarcações, equipes treinadas e helicópteros estão na região, à espera da liberação da licença ambiental para exploração do bloco. Segundo o CCPIO apurou, os equipamentos e maquinários estão aguardando a licença desde novembro, pois a expectativa era de que a exploração começasse ainda em 2022.
A reunião durou todo o dia. Na parte da manhã, as pessoas presentes se identificaram e a Petrobras fez uma apresentação para mostrar como será feita a atividade de exploração caso a licença ambiental seja concedida pelo Ibama e demonstraram plena confiança sobre as medidas de resposta previstas em caso de acidentes. Além disso, a empresa reforçou que a atividade atual na Foz do Amazonas é temporária e para verificar se há presença de petróleo na localidade (prospecção). Caso seja encontrado, começa a nova fase de licenciamento ambiental para a produção de petróleo, que então será uma atividade permanente, com a construção de um poço de petróleo em alto mar.
Na parte da tarde da reunião, diversos indígenas presentes colocaram suas preocupações com a movimentação na cidade de 28 mil habitantes (IBGE, estimativa 2021), da qual um terço é indígena. A cidade tem três terras indígenas, com algumas aldeias que ficam nas margens da BR 156 AP Norte, que liga a capital amapaense a Oiapoque. O trecho final da rodovia atravessa por cerca de 40 quilômetros a TI Uaçá. Já as outras aldeias se localizam às margens do rio Oiapoque, rio Uaçá. Esse território, que sofre grande influência das marés, é muito sensível e tem enorme importância sob a ótica da biodiversidade, além dos modos de vida local.
A presença da empresa na região já começou a afetar a vida dos povos indígenas, pois foi a movimentação provocada pelo uso do aeroporto de Oiapoque que levou à mudança do lixão de lugar. O Cacique Edmilson destacou a insatisfação com a mudança.
“Já estamos sofrendo impacto com a mudança do lixão da cidade para o quilômetro 21 da BR, na terra indígena. [Hoje, o lixão] está na rota dos aviões, agora vai ficar na aldeia, perto dos igarapés do rio Curupi. É nosso berçário de peixes que sobem no verão para desova. É um impacto que já vamos sofrer”, alertou.
Para a Secretária Extraordinária dos Povos Indígenas do Amapá, Simone Karipuna, a questão do lixão é consequência do contexto das atividades da Petrobras. Simone fez inúmeros questionamentos. “Quais as contrapartidas vocês trariam aos povos? Os projetos teriam de envolver a população local, capacitar indígenas para trabalhar na Petrobras. Vocês já têm planos de recuperação de danos ambientais? O espaço aéreo sobre os territórios já está sendo afetado. Vocês vão entrar nos territórios?”
Para Hiandra Pedroso, a assessora jurídica da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amapá e do Norte do Pará (APOIANP) já há impactos relacionados à Petrobras. “Com a questão do lixão houve uma aceleração, expectativas têm sido geradas. É só ir à cidade e conversar com as pessoas. A Petrobras tem responsabilidade nesses fatos pelo nexo de casualidade, tem responsabilidade factual”, afirmou a advogada.
O Cacique Odimar fez mais ressalvas sobre a questão do lixo e cobrou a empresa. “A história do lixão começou com 500 metros de distância da aldeia Tuluhi. Sabemos todos os igarapés e espaços das nossas terras indígenas e a nossa preocupação é que o lixão afete nossas águas. Disseram que não vai atingir nada. Mas vai atingir com certeza. Vocês [Petrobras] fazem um estudo agora, mas no futuro sabemos que vai nos atingir. Tem casas e umas 100 pessoas que moram ali perto de onde será o lixão.”
Insegurança ambiental na exploração de petróleo
A licença ambiental do bloco FZA-M-59 ainda não foi concedida porque o Ibama e Ministério Público Federal no Amapá e no Pará entendem que faltam elementos que garantam um plano de emergência eficiente para o caso de um derramamento de óleo (que pode causar danos transfronteiriços, chegando por exemplo à Guiana Francesa, além de impactar estados brasileiros como Amapá, Maranhão, Pará). Em 2018, o mesmo problema levou o Ibama a negar licença para empreendimentos nessa região, que teve blocos arrematados em leilão pela Petrobras, a empresa francesa Total e a britânica BP. Em 2021, a Petrobras assumiu o bloco, após a saída das duas parceiras.
O Ministério Público Federal, Ibama e pesquisadores vêm apontando há mais de um ano que a modelagem da exploração do FZA-M-59, que simula a dispersão do óleo em caso de acidentes não garante segurança ao processo. O conhecimento tradicional dos povos indígenas sobre a dinâmica das marés no litoral do Amapá também contrapõe os resultados científicos.
Outra condicionante à liberação, cobrada pelo MPF, é a obrigatoriedade da consulta livre, prévia e informada aos povos locais sobre a forma como os seus modos de vida seriam impactados. Portanto, a petroleira brasileira quer fazer a exploração, mas não conseguiu ainda comprovar que a operação seja segura.
Conheça os receios dos indígenas e as respostas da Petrobras
Na reunião, todos puderam fazer seus questionamentos à equipe da Petrobras. Uma colaboradora da Petrobras garantiu que todas as perguntas feitas pelos indígenas seriam respondidas e sugeriu que a comunidade escolhesse as pessoas que seriam o ponto focal para a empresa manter o diálogo. “A voz dos povos indígenas vai ser ouvida dentro da Petrobras. Minha sugestão é que o ponto focal seja o cacique Edmilson e a Sonia [secretária de estado].” Por ser uma fase ainda de investigação, as colaboradoras da companhia informaram que querem ouvir os povos para saber “qual impacto positivo podemos trazer, para trazer desenvolvimento local”.
Porém, na primeira questão que aparece, sobre o lixo e o uso do aeroporto, a Petrobras não se responsabilizou. Uma das funcionárias disse que “a Petrobras não pode falar pela prefeitura [de Oiapoque, responsável pela administração do aeroporto]. Fazemos a reparação de evento adicional se for decorrente da nossa atividade. [Em caso de algum incidente] a indenização ou compensação seguirá os ritos para entender o que houve. Os impactos esperados serão bem localizados na [região do bloco] FZA-M- 59, e não afetam a atividade pesqueira.”
A discussão, no entanto, é muito anterior a isso. A preocupação dos indígenas diz respeito aos impactos ambientais, sobre suas vidas e territórios, como alertou Ramon Karipuna, representante dos Povos Indígenas do Oiapoque pela Prefeitura Municipal de Oiapoque.
“Se tiver um acidente [na atividade de exploração de petróleo], vamos perder nossos peixes, tracajás e pássaros. A gente se preocupa com essas aeronaves. Nós preservamos o nosso território.”
Até o momento, não estão claras as mudanças que tal empreendimento poderá trazer para a região. É o que questiona o Cacique Jacson. “Se a corrente marinha faz o que tá perto chegar a Oiapoque, quais serão os impactos ambientais aos mangues, matas ciliares? Queríamos ver isso em estudo, mostrando isso. É a nossa preocupação.” Já o Cacique Nazildo, levanta a amplitude dos impactos. “Vemos que os trabalhos já iniciaram. Se houver um acidente que chegue a uma terra indígena, vai afetar as três terras indígenas”, ressalva.
Outro impacto informado pelos caciques foi sobre a perda dos alimentos cotidianos dos povos. “Com a passagem dos helicópteros hoje nossas caças fogem e já sentimos essa dificuldade de achar alimento que antes eram comuns.
Queremos que sigam o nosso protocolo de consulta prévia porque nós, povos indígenas trabalhamos na coletividade. Nossas decisões são de todos. Vamos avaliar, cada povo, como queremos que seja. E queria pedir que tenha uma identificação nos helicópteros para saber se é da Funai, da polícia, da Petrobras”, protestou o Cacique Edmilson.