A Constituição Federal de 1988 reconheceu aos nossos povos o direito de viverem de acordo com a “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarca-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. É daí que decorre a responsabilidade da União em garantir às políticas públicas destinadas a nós, respeitando nossas especificidades e diferenças.

A Constituição também criou o Sistema Unificado de Saúde (SUS), regulamentado pela Lei 8.080/90, onde estabelece a vinculação da assistência em saúde ao Ministério da Saúde (MS).

No ano de 1999, com a edição do Decreto nº 3.156/99 e a aprovação da “Lei Arouca” (n° 9.836 de 23 de setembro de 1999), ficou estabelecido que cabe ao Ministério da Saúde instituir “as políticas e diretrizes para a promoção, prevenção e recuperação da saúde do índio”, na época sob responsabilidade da Funasa. A Lei determinou ainda a criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, tendo por base 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), os quais se tornam referência para o modelo de assistência, para atender às especificidades étnicas, culturais, geográficas e territoriais dos povos indígenas.

Entre 1986 e 2014 foram realizadas cinco Conferências Nacionais de Saúde dos Povos Indígenas que avançaram na definição das diretrizes e propostas de um modelo de atenção diferenciada, isto é, de um subsistema, gestado pela União, no qual deve haver participação dos povos e organizações indígenas no controle social, no planejamento e avaliação do orçamento e das ações.

Nesse contexto, no final do ano de 2008 houve a tentativa governamental de se criar por meio do Projeto de Lei 3.958/2008 de uma Secretaria de Atenção Primária e Promoção da Saúde, à qual a saúde indígena estaria subordinada. O movimento indígena mobilizou-se intensamente para que a atenção diferenciada não fosse diluída numa lei genérica. Assim, reivindicou a criação de um Grupo de Trabalho (GT) com a participação de representantes dos povos indígenas (Portarias 3034/2008 e 3035/2008 GAB/MS), para discutir proposições a respeito da gestão da saúde indígena. O Governo, depois de dois anos, editou a Medida Provisória 483, que após aprovação do Congresso Nacional se transformou na Lei 12.314/2010, possibilitando a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) por meio do Decreto 7.336 de 19 de outubro de 2010.

Durante todos estes anos, as lideranças e organizações indígenas sempre estiveram vigilantes e mobilizadas para a melhoria da assistência específica e diferenciada de saúde de seus povos e comunidades. Sempre reivindicaram o fortalecimento dos DSEIs, vinculados ao Ministério da Saúde, assegurando a autonomia administrativa e financeira dos mesmos, como unidades gestoras do SUS, ancorados nos Fundos Distritais de Saúde, assegurando ainda um plano de carreira específica para profissionais de saúde indígena com condições trabalhistas adequadas às complexas e diferentes realidades regionais, geográficas, étnicas e culturais e o controle social efetivo, nos âmbitos local, distrital e nacional.

Mesmo com alguns problemas de gestão e controle social, críticas principalmente nos tempos da FUNASA, com relação por exemplo à falta de medicamentos, dificuldades de transporte, precariedade dos serviços nas Casas de Saúde (CASAIs) e a rotatividade dos servidores da saúde nos territórios, que impulsionou a discussão da necessária humanização da saúde indígena, o subsistema permaneceu e assegurou, mesmo que não plenamente, entre outras coisas, a participação e o controle social por parte dos usuários.

São todas estas conquistas, de garantia legal do atendimento diferenciado, que hoje estão correndo risco de extinção. Vejam porquê:

1. O governo Bolsonaro desde a época da campanha anunciava ser totalmente contrário aos direitos dos povos indígenas, principalmente no relacionado à demarcação das terras, ou seja, contra a existência desses povos, uma vez que os territórios indígenas são sua razão de existir, base fundamental da sua continuidade física e cultural.

2. Logo que assumiu o mandato, em janeiro, Jair Bolsonaro editou a Medida Provisória (MP) 870 que reestruturou o governo, transferindo a FUNAI para o Ministério dos Direitos humanos, da Mulher e da Família, e suas principais atribuições relacionadas com o licenciamento e a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). A proposta foi recusada pelo Congresso Nacional, devolvendo o órgão indigenista, e suas responsabilidades, para o Ministério da Justiça e Cidadania.

3. Após esta derrota, Bolsonaro, sob pressão da bancada ruralista, contrariou o Parlamento, editando uma nova medida provisória, a 886/2019, na qual insistia nas suas proposições. O STF, atendendo Ações de Inconstitucionalidade de quatro partidos políticos, por meio de decisão monocrática do ministro Barroso anula mais uma vez a proposta, pois medida provisória nenhuma pode ser reeditada, constitucionalmente, na mesma sessão legislativa (Art. 62 da C. F.) e porque, segundo o ministro, atenta contra a separação dos poderes.

4. A outra medida que atenta gravemente contra os direitos indígenas é o Decreto 9.759, editado em abril, por meio do qual Bolsonaro prescreve oficialmente todos os colegiados ligados à administração pública federal que foram criados por lei, via decreto ou por atos infralegais. A medida abrange conselhos, comitês, comissões, grupos de trabalho, juntas, fóruns, entre outros. Com isso, atingiu em cheio o Fórum de Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde Indígena (FPCONDISIs), instância nacional de controle e participação social dos povos indígenas, que exerce ações coordenadas de fiscalização, planejamento, monitoramento e avaliação da política de atenção à saúde indígena e orienta os conselhos locais nas suas ações.

Nesse caso a Suprema Corte, atendendo ação judicial, também suspendeu, embora parcialmente, a medida, afirmando que o governo não poderia extinguir colegiados que têm respaldo legal. O problema é que os Conselhos Locais e Conselhos Distritais de Saúde Indígena (CONDISI) e o próprio FCONDISI não foram criados por lei, e sim por decreto. No entanto, constituem para o movimento indígena instâncias legítimas de controle social, conquistadas com muita luta. Os Conselhos locais representam mais de 5 mil comunidades dos 305 povos, enquanto que os 34 Conselhos Distritais envolvem 1.390 conselheiros. Por outro lado, é garantido aos povos indígenas, pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – que é lei no país – o Direito à consulta livre, prévia e informada, sobre quaisquer assuntos administrativos ou legislativos que ao afetem.

Enfim, Bolsonaro assumiu o poder, determinado a acabar com o tratamento diferenciado, assegurado legalmente aos povos indígenas, por meio do desmonte das instituições e das políticas públicas nas distintas áreas de interesse: terra e território, saúde, educação, etnodesenvolvimento e cultura.

5. Logo que assumiu o cargo, o ministro da saúde, ruralista assumido, Luiz Henrique Mandetta, anunciou, certamente orientado por razões político-partidárias, a possibilidade de municipalizar a política de atenção à saúde indígena, a começar pelas regiões Sul, Sudeste e Nordeste, propondo a estadualização do atendimento nas demais regiões, alegando que isso melhoraria a qualidade da prestação dos serviços da saúde indígena, oferecida atualmente por organizações da sociedade civil através de convênios com o Ministério da Saúde, intermediados pela SESAI. A Mobilização dos povos indígenas e a intervenção da Procuradoria Geral da República (PGR) barrou a intenção do ministro, alertado sobre o caráter federal da responsabilidade do atendimento.

Desde a criação do subsistema, os povos indígenas recusaram essa perspectiva por inúmeras razões, dentre as quais: as administrações municipais se alternam geralmente de 4 em 4 anos, muitas delas são alinhadas a interesses político-econômicos poderosos, racistas e anti indígenas, estimulam e praticam inclusive atos de violência contra os povos; não reúnem quadros capacitados para atenção diferenciada, e estes também normalmente são nomeações políticas; e não reúnem condições físicas e financeiras ou então desviam recursos públicos para outras finalidades que não a da saúde.

6. Nomeação de Silvia Waiãpi

No velado propósito de colocar indígenas contra indígenas, o Governo Bolsonaro escolheu para presidir a Secretaria Especial de Saúde Indígena, a indígena, de formação militar, Silvia Waiãpi, que vem atuando de forma autoritária, racista e criminalizando lideranças indígenas, principalmente membros do FCONDISI, que discordam de sua postura, além de ter demonstrado não ter capacidade para ser gestora do órgão. Ao contrário, tem se dedicado a levar em frente uma campanha sistemática de acusações a instituições conveniadas, servidores e funcionários terceirizados, e ainda culpabilizando muitas vezes aos próprios povos, comunidades e lideranças indígenas que compõem os conselhos locais e distritais. Enquanto isso, a gestão e o atendimento que já eram precários, em muitos casos, na ponta, precarizaram-se ainda mais, sobretudo a partir do fim do Programa Mais Médicos, da fragilização do controle social, dos atrasos no pagamento de salário, da carência de recursos e remédios, da não realização de exames e a falta de remoção de doentes para os centros de referência.

Tudo indica que há o propósito de acabar com o subsistema e a SESAI por inanição, certamente para justificar, mais uma vez, os propósitos da municipalização, que reiteradas vezes é recusada pelo movimento indígena.

7. Por fim, a etapa nacional da VI Conferência Nacional de Saúde Indígena que inicialmente estava prevista para o mês de maio de 2019, depois para o mês de agosto, agora foi postergada para o período 9 a 12 de dezembro em Brasília, e sem local claramente definido

A Conferência Nacional foi presidida por 302 conferências locais e 34 distritais, realizadas entre outubro de dezembro de 2018, e tem entre seus objetivos o fortalecimento do Subsistema de Atenção à Saúde dos povos indígenas, passando pela discussão dos seguintes eixos temáticos: I. Articulação dos sistemas tradicionais indígenas de saúde; II. Modelo de atenção e organização dos serviços de saúde; III. Recursos humanos e gestão de pessoal em contexto intercultural; IV. Infraestrutura e Saneamento; V. Financiamento; VI. Determinantes Sociais de Saúde; e VII. Controle Social e Gestão Participativa. O que indigna é que a VI Conferência irá acontecer depois da Conferência Nacional de Saúde, à qual deveriam ser apresentadas as deliberações da Conferência Indígena.

MOBILIZADOS PELA DEFESA DO SUBSISTEMA DE SAÚDE INDÍGENA

Por todos esses ataques, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) reitera seu compromisso de continuar a luta em defesa das políticas públicas diferenciada de saúde, neste caso, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, e chama a suas bases, povos e organizações, para que se mobilizem na defesa deste direito, alcançado com muita luta a partir da Constituição Federal de 1988, com múltiplas e permanentes articulações, mobilizações e atos de resistência, contra as adversidades, ações de má fé e falta de vontade política dos governos, principalmente do governo Bolsonaro, em efetivar o respeito aos direitos fundamentais dos nossos povos.

Por isso a APIB convoca a todas e todos, no próximo dia 12 de agosto durante a Marcha das Mulheres Indígenas – “Território: Nosso Corpo, Nosso Espírito”- que acontecerá em Brasília – DF, no período de 11 a 13, para juntos defendermos nossos direitos! Venha conosco, apoie nossa causa! Nossa luta é pela vida!

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