As lideranças, conhecedores, rezadores e pesquisadores avá, mbya, ñandeva, kaiowa, guarani e tupi-guarani de diversas localidades da América Latina, reunidos em São Paulo, entre os dias 24 e 27 de setembro de 2019, para o II Seminário Internacional de Etnologia Guarani: redes de conhecimento e colaboração, realizado junto com nossos parceiros do Centro de Estudos Ameríndios da USP e do grupo Etnologia e História Indígena da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e tantos outros grupos e instituições que apoiam nossa luta, após quatro dias de debates conjuntos, lançamos esta carta.
Manifestamos à sociedade nacional e internacional nossas reflexões e posicionamentos a respeito da situação de nossas comunidades, das posturas do atual governo brasileiro para com os povos indígenas e a perspectivas de nossa resistência à manutenção de nossas terras e modos de vida. Esperamos que este documento sensibilize a sociedade e oriente as autoridades responsáveis pela proteção dos direitos dos Guarani, cuja presença é fundamental para a garantia e continuidade desse mundo compartilhado entre todos e todas.
Em 2016, no primeiro seminário realizado em Dourados, Mato Grosso do Sul, assim como no evento Redes Guarani, realizado em 2013 em São Paulo, já havíamos nos manifestado nossa preocupação com as graves ameaças a nossos direitos, que agora foram brutalmente atacadas pelo atual governo. Estamos preocupados com os despejos e derramamento de sangue que podem ocorrer, incentivados pelo discurso da Presidência, considerando a atual inflexão anti-indígena que é também sentida no Poder Judiciário.
Alguns de nossos territórios já tem sido sistematicamente atacados por setores do Judiciário, com a imposição de um marco temporal que condiciona a efetivação dos nossos direitos territoriais à data da promulgação da Constituição de 1988, negando o caráter originário que ela reconhece. Nesse sentido, chamamos atenção aos processos envolvendo a Terra Indígena Guyraroka, dos Kaiowá e Guarani em Mato Grosso do Sul, e a Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, do povo Xokleng em Santa Catarina, marcados para o próximo período e que poderão definir o futuro da demarcação de nossas terras.
Denunciamos, assim, que a chamada “Tese do Marco Temporal” não tem fundamento jurídico, histórico, sociológico ou antropológico razoável e que constitui, na verdade, parte de uma estratégia de setores ligados ao agronegócio para barrar o processo de reparação às comunidades indígenas lesadas, ao longo do século XX, por atos de exceção praticados pelo Estado brasileiro ou com a conivência de seus agentes. Clamamos, portanto, a todos os integrantes do Poder Judiciário comprometidos com a defesa do estado democrático de direito que tomem medidas efetivas para barrar o avanço na adoção do “marco temporal”.
Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), ao tratar da questão dos povos indígenas, reconheceu como genocida a política promovida pelo estado brasileiro com vistas à eliminação dos povos indígenas sob falso argumento fraternal da “integração à comunidade nacional”. Segundo a CNV, o estado brasileiro é responsável pela morte de no mínimo 8.300 indígenas ao longo da segunda metade do século XX (entre 1946-1988), bem como pela situação atual de de restrição territorial de diversos povos e comunidades, promovida por meio de sistemáticas remoções e desaparecimentos forçados, expulsões violentas, massacres, entre outras técnicas criminosas de genocídio. Motivados pela cobiça por nossas terras, agentes públicos e privados empreenderam esbulhos generalizados com vistas à apropriação de nossos territórios para satisfação de seus interesses políticos e econômicos.
Esta é a situação, por exemplo, dos mais de 20 tekoha localizados na região do Oeste do Paraná, cujas famílias Avá-Guarani foram removidas compulsoriamente de seus territórios durante a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu Binacional. Sem qualquer tipo de licenciamento, o empreendimento, que na época era a maior UHE do mundo, promoveu a remoção de 8 mil pessoas, apenas no lado brasileiro, sem qualquer plano de realocação minimamente adequado à realidade das famílias e povos ali habitantes, contando ainda com a participação ativa dos mesmos órgão públicos responsáveis pelo resguardo e proteção dos direitos desses povos. Mais de 32 aldeias foram alagadas, e ainda hoje existem xeramoĩ e xejaryi, anciões e anciãs, que se recordam do desespero de ver a água subindo e ter que sair às pressas dos locais que tradicionalmente ocupavam.
Assim, os territórios hoje reivindicados são aqueles que o próprio Estado nos roubou no passado. E hoje, na contramão do que nos reconhece a Constituição, a tese do marco temporal vem para legitimar as violências historicamente cometidas, anistiar nossos opressores e oferecer segurança para que ações violentas sigam sendo praticadas contra nós.
Em Mato Grosso do Sul, a expulsão das terras e o confinamento em pequenas áreas, resultaram em uma histórica violação dos direitos dos povos guarani que ali vivem, impossibilitando a livre circulação das pessoas, que após mais de cem anos confinados nessas áreas, buscam, através da luta, retomar os seus territórios tradicionais, e voltar a suas terras esbulhadas. Isso tem gerado conflitos intensos com os ruralistas, o poder público e a sociedade envolvente, fortalecendo preconceitos e acirrando o ódio contra o nosso povo. Somos chamados de invasores, mas fomos nós que tivemos nossas terras, nossos corpos e nossas vidas invadidas pelos não-indígenas. A violência a que estamos submetidos em Mato Grosso do Sul não é nossa responsabilidade, mas sim do Estado brasileiro, que só poderá reparar isto devolvendo e demarcando as nossas terras.
É necessário denunciarmos também a recente nomeação de uma advogada dos ruralistas para a Direção de Proteção Territorial da FUNAI, gerando um flagrante conflito de interesses, já que tal advogada atuou diretamente em processos contra a demarcação de nossas terras tradicionais no Vale do Ribeira, em São Paulo, região com uma importante faixa remanescente de Mata Atlântica e da qual somos guardiões.
As autoridades, os órgãos ambientais e toda a sociedade precisam compreender que nossos modos de ser não são predatórios, e que nossa presença em áreas atualmente tipificadas de conservação ambiental garante a conservação e a promoção da biodiversidade. Os povos guarani praticam milenarmente a agricultura e sempre o fizemos sem destruir a natureza, diferente dos não-indígenas que acabaram com a quase totalidade das matas em que viveram nossos ancestrais, em nome de seu desenvolvimento irresponsável e inconsequente. Hoje, a partir da renovação e fortalecimento de nossos saberes tradicionais, temos buscado realizar plantios que aliam abundância produtiva à recuperação ambiental nas tantas áreas tradicionais que foram degradadas pela ação perniciosa dos ruralistas. Lamentamos profundamente a posição de parentes que, sob pressão e seduzidos pelo dinheiro do agronegócio, querem criminosamente dispor de terras indígenas para realizar um modelo retrógrado dos ruralistas baseado no veneno e na destruição ambiental, que só gera exclusão e morte e que, se não parar, vai acabar com o mundo.
É preciso que o sistema educacional respeite e reconheça o modelo de educação escolar indígena, assegurado pela legislação brasileira, garantindo que nossos saberes, costumes, línguas e tradições sejam plenamente recepcionados nos currículos e no ambientes escolares como um todo. Que as redes escolares não indígenas também recebam as contribuições que temos a oferecer, efetivando a lei 11.645/2008, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, e que contribui decisivamente à efetivação de um ambiente sociocultural diverso, plural e cada vez mais democrático, livre de preconceitos, racismo e ignorância.
Repudiamos a política destrutiva do sistema educacional levada a cabo pelo atual governo, que rejeita os anseios e compromete o futuro de nossa juventude. Estudantes e professores indígenas de todo o Brasil mantêm-se em constante mobilização contra as investidas do governo contra nosso direito à educação diferenciada, comunitária, específica e bilíngue que ameaçam as conquistas de décadas de lutas. A educação é a área mais afetada pelos cortes de orçamento do governo Bolsonaro, e, na universidade, o maior impacto recai sobre estudantes indígenas, quilombolas, bem como pessoas de baixa renda, especialmente. Nesse sentido, entendemos os cortes nas bolsas-auxílio como outra imposição à nossa presença nesses espaços, o que não aceitamos, mas antes é preciso ampliar esta presença, com nossos corpos, nossas vozes, nossas histórias, nossa verdade e nossos projetos de futuro.
No dia 24 de setembro, na cerimônia de abertura da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, o atual presidente do país, Jair Bolsonaro, mantendo a linha de seus discursos anti-indígenas, incitou, perante a comunidade internacional, o ódio contra os povos indígenas no Brasil. Reforçou o discurso inverídico de que hoje temos no Brasil “muita terra para pouco índio” e de que não haverá mais demarcações em seu mandato, traduzindo o interesse do governo sobre as riquezas naturais sobre as quais localizam-se as poucas terras indígenas no país. Em um espetáculo de racismo e desinformação, o presidente não teve pudores em se utilizar de uma liderança indígena presente para tentar legitimar seus preconceitos, enquanto atacava o ancião Raoni Metuktire Kayapó, que de fato tem representatividade para o movimento nacional indígena e que, inclusive, foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz de 2020. Em um contexto no qual a figura de Jair Bolsonaro é um reflexo do aumento das forças conservadoras em escala mundial, a resistência e o dinamismo dos povos Guarani é crucial para pensar novas saídas em um período de completa desilusão e falta de horizontes para a política nacional e internacional.
Nesse sentido, no mesmo dia em que o presidente mancha a imagem do Brasil perante a comunidade internacional, optamos por fazer um contraponto, com a participação central das mulheres guarani, o evento foi apenas mais uma mostra da potência do nosso povo frente às ameaças atuais, em uma demonstração de força em defesa da autonomia dos povos indígenas, do reconhecimento das mulheres nessa luta, da inclusão dos jovens para atualização dos debates, da educação e saúde diferenciadas e, principalmente, pela demarcação de todas as nossas terras reivindicadas e que aguardamos há muitas décadas. A não demarcação de nossas terras expõe nossas mulheres, homens, velhos e crianças à dependência da relação com o Estado, que interferem no modo como cuidamos dos nossos corpos, de nossas famílias, de como educamos nossos filhos, enfim, de como vivemos em nossas terras.
Alertamos a sociedade brasileira do perigo e conclamamos as mais diversas pessoas, movimentos, instituições a se aliarem a nós nessa luta e fazer valer a Constituição, que garante nosso direito à terra e, portanto, à vida.
DEMARCAÇÃO JÁ!
AGUYJEVETE PRA QUEM LUTA!
São Paulo, 27 de setembro de 2019