Supremo adia julgamento e povos indígenas seguem na luta contra o marco temporal

Supremo adia julgamento e povos indígenas seguem na luta contra o marco temporal

Caso que pode definir o futuro dos povos volta para pauta de votação do Supremo em agosto, período que marca o reconhecimento internacional dos povos indígenas

Brasília, 30 de junho de 2021 – A sessão de hoje, 30, do Supremo Tribunal Federal (STF) foi encerrada sem que o caso sobre demarcação de terras indígenas fosse julgado. O presidente da Corte, Luiz Fux, remarcou para o dia 25 de agosto o retorno do caso para a pauta do STF.

Mobilizados há três semanas em Brasília e nos territórios em todas as regiões do país, os indígenas esperavam que a Corte analisasse a ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang. Com status de “repercussão geral”, a decisão tomada neste julgamento servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça, também de referência a todos os processos, procedimentos administrativos e projetos legislativos no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios.

“Infelizmente não foi votada a repercussão geral, mas vamos continuar na luta, como sempre, pela demarcação das nossas terras e em defesa do meio ambiente. O Supremo se comprometeu em marcar o julgamento para agosto, e nós seguiremos mobilizados. O marco temporal é uma afronta aos direitos indígenas que nós não aceitamos”, alerta Brasílio Priprá, liderança do povo Xokleng.

O adiamento da decisão reforça o quanto é necessária a luta travada pelos povos. “Temos que continuar na resistência. É necessário que a gente continue na mesma pegada, na mesma luta. Agosto tem que ser o mês da luta!”, afirmou Kretã Kaingang, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e um dos organizadores do acampamento Levante pela Terra, que mobiliza desde o dia 8 de junho mais de 850 pessoas de 50 povos, na capital federal.

O mês de agosto é marcado pelo reconhecimento internacional dos povos indígenas e segundo Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Apib, a luta por direitos segue firme, em todo o país, até a nova data do julgamento. “Estamos aqui hoje mais uma vez fazendo esse chamado para o ‘agosto indígena’. Voltaremos em agosto para Brasília para lutar contra todos esses retrocessos, contra todas essas medidas anti-indígenas que tramitam no âmbito dos três poderes da União”.

Marco temporal
O “marco temporal” é uma interpretação defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das TIs que restringe os direitos constitucionais dos povos indígenas. De acordo com ela, essas populações só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, se não estivessem na terra, precisariam estar em disputa judicial ou em conflito material comprovado pela área na mesma data.

A tese é injusta porque desconsidera as expulsões, remoções forçadas e todas as violências sofridas pelos indígenas até a promulgação da Constituição. Além disso, ignora o fato de que, até 1988, eles eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente para lutar por seus direitos.

Os ministros também vão analisar no processo de repercussão geral a determinação do ministro Edson Fachin, de maio do ano passado, de suspender os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU). A norma oficializou o chamado “marco temporal”, entre outros pontos, a tese vem sendo usada pelo governo federal para paralisar e tentar reverter as demarcações. Na mesma decisão do ano passado, Fachin suspendeu, até o final da pandemia da Covid-19, todos os processos judiciais que poderiam resultar em despejos ou na anulação de procedimentos demarcatórios. Essa determinação também deverá ser apreciada pelo tribunal.

Adiamentos
O julgamento estava marcado anteriormente para 11 de junho deste ano, em plenário virtual, mas foi suspenso por um pedido de “destaque” do ministro Alexandre de Moraes, um minuto após começar. Os demais ministros sequer chegaram a depositar seus votos. Apesar disso, o voto do relator, ministro Edson Fachin, foi divulgado.

O presidente da Corte, Luiz Fux, recolocou o caso na pauta desta, quarta-feira (30), que agora segue para julgamento no dia 28 de agosto.

Mesmo com a indecisão em relação a nova data do julgamento, os indígenas afirmam seguir mobilizados. “Temos que continuar na resistência. É necessário que a gente continue na mesma pegada, na mesma luta. Agosto tem que ser o mês da luta!”, afirma Kretã.

“Eles (ministros e ministras) não tem noção do sofrimento daqueles que moram embaixo de uma lona na beira da estrada e que tão dentro de uma retomada sofrendo ameaça, sofrendo reintegração de posse, lideranças criminalizadas. Os ministros não têm noção disso”, enfatizou a liderança.

A TI Ibirama-Laklãnõ está localizada entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, Vitor Meireles e José Boiteux, 236 km a noroeste de Florianópolis (SC). A área tem um longo histórico de demarcações e disputas, que se arrasta por todo o século XX, no qual foi reduzida drasticamente. Foi identificada por estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2001, e declarada pelo Ministério da Justiça, como pertencente ao povo Xokleng, em 2003. Os indígenas nunca pararam de reivindicar o direito ao seu território ancestral.

Mais informações sobre o caso que pode definir o futuro dos povos indígenas, aqui

Atualizado ás 21h30 de 30 de junho: data do julgamento confirmada para dia 28 de agosto.

Apib reúne mais de 200 parceiros internacionais para falar da Emergência Indígena no Brasil

Apib reúne mais de 200 parceiros internacionais para falar da Emergência Indígena no Brasil

Na segunda-feira (28), a Apib – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil realizou uma reunião internacional com instituições não governamentais parceiras e outros interessados para tratar da situação de emergência que se passa no Brasil. Convocado na sexta-feira anterior, o encontro contou com a participação de mais de 200 pessoas, de 26 países de todas as regiões do mundo. Isso demonstra o interesse internacional sobre a situação vivida pelos Povos Indígenas no Brasil, e a relevância da Apib como autoridade global nos temas que envolvem os povos originários e a preservação do meio ambiente.

Durante a reunião, que durou cerca de duas horas, dirigentes da Apib compartilharam a visão da instituição sobre as ameaças que se avolumam no Congresso Nacional contra os direitos territoriais dos povos indígenas, principalmente no âmbito do Projeto de Lei 490 de 2007. Este PL transfere para o Congresso a responsabilidade de demarcar Terras Indígenas, o que submete os povos indígenas aos interesses de cada legislatura. Atualmente, a forte presença de ruralistas e militares tornaria praticamente impossível avançar na demarcação de territórios que ainda não tiveram seu processo concluído. Pelo contrário: há o risco de retrocesso, com a anulação da homologação de Terras Indígenas já consolidadas.

O advogado Luiz Eloy Terena, da Coordenação Jurídica da Apib, falou também sobre o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Especial que envolve a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, do povo Xokleng, de Santa Catarina. Essa ação, que pode ser retomada pelo plenário do STF ainda essa semana, debate a tese do “marco temporal” para a demarcação de povos indígenas, e possui status de “repercussão geral”, o que quer dizer que a decisão tomada no processo orientará futuras decisões judiciais e, inclusive, iniciativas legislativas e em políticas públicas nesse tema.

Sônia Guajajara, Coordenadora Executiva da Apib, mediou toda a reunião diretamente do Acampamento Levante Pela Terra, que se estabeleceu em Brasília há mais de um mês e reúne, atualmente, cerca de mil indígenas que vieram de todas as regiões do Brasil, mesmo durante a pandemia, para defender seus direitos. Ela informou os participantes sobre a intensa agenda de mobilizações prevista para os próximos meses.

O Coordenador Executivo da Apib, Dinaman Tuxá, também presente na reunião, compartilhou com os parceiros internacionais uma visão ampla das violências e ameaças vividas pelos Povos Indígenas no Brasil, que incluem tentativas constantes de invasão de suas terras.

Rumo a uma Mobilização Indígena Internacional
Marielle Ramirez, colaboradora da Apib, reforçou a importância do apoio dos parceiros internacionais para fortalecer a luta dos Povos Indígenas no Brasil. “O que estamos propondo é mais do que a participação em um tuitaço, em um Abaixo-Assinado: propomos uma articulação permanente, que esteja constantemente atenta às ameaças que vivemos no Brasil”, disse Sônia Guajajara.

A Apib já possui uma rede fortalecida de parceiros mundo afora, e espera reforçar essa rede com a Mobilização Indígena Internacional por meio de uma série de encontros e costuras políticas que se intensificarão no mês de julho, como o diálogo com instituições do Sistema ONU, com Embaixadas e Representações Diplomáticas no Brasil, entre outros.

Se você ou sua instituição desejam fazer parte dessa Mobilização e receber mais informações sobre as ações da Apib, faça seu cadastro clicando aqui.

Após séculos de violências, remoções forçadas e extermínio, STF tem a oportunidade de salvaguardar os povos indígenas

Após séculos de violências, remoções forçadas e extermínio, STF tem a oportunidade de salvaguardar os povos indígenas

Artigo de Luiz Eloy Terena. Advogado indígena coordenador jurídico da Apib. Pós-doutor na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), França.

O futuro das terras indígenas está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro presidente Luiz Fux incluiu na pauta de julgamento do dia 30 de junho, o Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, com repercussão geral reconhecida. Também conhecido como “caso Xokleng”, a decisão servirá de parâmetro para a demarcação de todas as terras indígenas do Brasil.

Os povos indígenas vivenciam um contexto político muito adverso na gestão do governo Bolsonaro, primeiro presidente eleito declaradamente contrário aos povos indígenas. Desde que tomou posse, assinou diversos atos que contrariam a Constituição e Tratados Internacionais que protegem as comunidades indígenas e seus territórios. Importante salientar que neste contexto de pandemia, faz-se fundamental refletir sobre o importante papel que os territórios tradicionais cumprem no equilíbrio da humanidade. Portanto, as terras indígenas, além de proteger o modo de vida dos povos indígenas, são patrimônio público federal e garantem o equilíbrio climático.

Aliás, não é novidade que os direitos dos povos indígenas estejam em constantes disputas no campo político e judicial. Desde o período colonial, vários expedientes normativos foram emitidos tendo por objeto a posse desses territórios. Na atualidade são muitos os argumentos utilizados para impedir o reconhecimento formal de uma terra indígena. Entretanto, sem dúvida, o mais utilizado é a tese do “marco temporal”. Na mesma semana que o STF analisa este processo, o Congresso Nacional agiliza a aprovação do Projeto de Lei (PL) n. 490/2007, que visa institucionalizar, pela via legislativa, o marco temporal.

Importa lembrar que no mês de maio de 2020, atendendo a um pedido incidental feito pela Comunidade Indígena Xokleng e outras organizações indígenas e indigenistas, o ministro do STF, Luiz Edson Fachin, por meio de decisão fundamentada, suspendeu todas as ações judiciais de reintegrações de posse ou anulação de processos de demarcação de terras indígenas enquanto durar a pandemia de Covid-19 ou até o julgamento final do Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, com repercussão geral reconhecida (Tema n.º 1.031). Neste mesmo processo, o ministro relator também suspendeu os efeitos do Parecer n.º 001 da Advocacia-Geral da União (AGU) e determinou que a Fundação Nacional do Índio (Funai) “se abstenha de rever todo e qualquer procedimento administrativo de demarcação de terra indígena, com base no Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU”.

O citado Parecer n.º 001 da AGU vinha causando imensos prejuízos aos povos indígenas. Além de vincular todas as demarcações de terras ao que foi decidido no caso Raposa Serra do Sol, também pretendia fixar a data de 5 de outubro de 1988 como marco temporal para a demarcação das terras indígenas. Ou seja, as comunidades indígenas que não estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988, segundo essa tese, perderiam seus direitos territoriais.

E ainda, este parecer da AGU também estava sendo usado para rever processos de demarcação, fazendo com que a Procuradoria Especializada da Funai desistisse de vários processos judiciais, abrindo mão da defesa de comunidades indígenas e do próprio interesse da União– tendo em vista que Terra Indígena é bem público federal (Art. 20, inciso XI). Como consequência, comunidades indígenas estavam perdendo os processos e ficando sem defesa, o que fere o direito fundamental ao devido processo legal.

A suspensão do Parecer n.º 001 da AGU e o mérito desse processo será analisado pelo Pleno do STF no dia 30 de junho. Esse julgamento é muito importante para todos os povos indígenas do Brasil. Após séculos de violências, remoções forçadas e extermínio de povos inteiros, a Suprema Corte terá a oportunidade de fazer valer o artigo 231 da Constituição, que determina que as terras indígenas, utilizadas para as atividades produtivas e para a preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar dos povos indígenas, bem como aquelas que são necessárias para a reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, devem ser demarcadas e protegidas.

Esse é um direito fundamental, inalienável, indisponível e imprescritível. Foi essa a escritura pública que o Estado brasileiro assinou para os povos indígenas do Brasil.

O caso em questão, do povo Xokleng, é o mais emblemático no momento, tendo em vista que teve repercussão geral reconhecida. Trata-se do Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, interposto pela Funai, onde se busca manter reconhecido o território tradicional do povo Xokleng, em Santa Catarina. O processo se originou em uma ação de reintegração de posse requerida pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (FATMA), no ano de 2009. Na petição, a FATMA pretendia reaver área administrativamente declarada pelo Ministro de Estado da Justiça como de tradicional ocupação dos indígenas Xokleng, Kaigang e Guarani. Tanto em primeira instância, quanto na segunda, as decisões foram contrárias aos interesses dos indígenas, razão pela qual, o processo chegou ao Supremo por via do extraordinário. O recurso foi distribuído ao Ministro Edson Fachin e teve reconhecida a repercussão geral. O processo é tido pelo movimento indígena como emblemático, tanto que muitas organizações requereram ingresso no feito na qualidade de amicus curiae. São elas: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Conselho do Povo Terena, Aty Guasu Guarani Kaiowá, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Conselho Indigenista Missionário, dentre outros.

Teoria do Indigenato

A teoria do indigenato foi desenvolvida por João Mendes Junior. A subprocuradora-geral da República Deborah Duprat, aponta que essa tese teve início em conferência proferida na antiga Sociedade de Ethnografia e Civilização dos Índios, em 1902, quando o professor João Mendes Junior afirmou: “[…] já os philosophos gregos afirmavam que o indigenato é um título congenito, ao passo que a occupação é um título adquirido. Com quanto o indigenato não seja a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial, todos reconhecem que é, na phrase do Alv. de 1º de abril de 1680, ‘a primária, naturalmente e virtualmente reservada’, ou, na phrase de Aristóteles (Polit., I, n.º 8), – ‘um estado em que se acha cada ser a partir do momento do seu nascimento’. Por conseguinte, não é um facto dependente de legitimação, ao passo que a occupação, como facto posterior, depende de requisitos que a legitimem”.

O Alvará de 1º de abril de 1680, referido no texto, ao cuidar das sesmarias, ressalvou as terras dos índios, considerados “primários e naturais senhores delas”. Portanto, tem-se nesta norma o reconhecimento expresso do instituto do indigenato, como sendo um direito originário, anterior ao próprio Estado, anterior a qualquer outro direito. Nas palavras do professor José Afonso da Silva “o indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem”.

Neste sentido, a Constituição de 1988 adotou a teoria do indigenato ao reconhecer o direito originário dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas. Em recente julgamento ocorrido em 16 de agosto de 2017, o pleno do Supremo analisou as ACOs 362 e 366, ambas de relatoria do ministro Marco Aurélio Mello. Nos votos é possível extrair pontos importantes lançados pelos ministros, que deixam claro que o instituto do indigenato possui assento Constitucional.

A tese do marco temporal (fato indígena)

A tese jurídica do marco temporal não nasceu exatamente no âmbito do Poder Judiciário. Antes do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, esta intepretação jurídica era rotineiramente suscitada nos discursos parlamentares e de juristas que advogam para os interesses do capital. Cito por exemplo, o discurso do deputado federal Gervásio Silva (PFL-SC), proferido no dia 20 de outubro de 2005, intitulado “Acirramento de conflitos fundiários pela política de demarcação de terras indígenas da FUNAI no Estado”, discorreu: “[…] e é bom que se repita: a Constituição Federal de 1988 não fala em posse imemorial, mas em terras tradicionalmente ocupadas no presente e de habitação permanente […] à identificação de uma terra indígena, está completamente divorciado do entendimento atual do STF, externado pela Súmula 650-STF, que consolidou a jurisprudência sobre o reconhecimento de terras indígenas […] como todos sabem, esta súmula não reconhece a doutrina de posse imemorial e consagra o princípio jurídico da ocupação atual e permanente das terras tradicionais de ocupação indígena. Explicando que os supostos direitos da suposta comunidade indígena de Araçá só mereciam o abrigo constitucional se os índios lá estivessem em 05 de outubro de 1988”.

Ao que se percebe, essa interpretação restritiva aos direitos dos povos indígenas consistente no “marco temporal” nasceu justamente de uma leitura equivocada feita a partir da súmula 650 do STF, que preceitua “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”. Entretanto, é preciso fazer uma leitura dessa súmula em conexão com a matéria posta a julgamento que resultou na edição do citado verbete. O precedente da súmula 650 do STF, é o RE 219.983, tendo em vista o interesse da União na solução de ações de usucapião em terras situadas nos Municípios de Guarulhos e de Santo André, no estado de São Paulo, em vista do disposto no artigo 1º, alínea h, do Decreto-Lei 9.760/1946. Como bem salienta o jurista Roberto Lemos dos Santos Filho “é necessário que os operadores do direito atentem ao fato de que aplicação da Súmula 650-STF deve ser realizada aos casos específicos a que ela tem relação, vale dizer, usucapião de terras indígenas a que se refere o Decreto-Lei 9.760/1946”.

Ainda no âmbito do legislativo, cabe citar o Projeto de Lei (PL) 490/2007, de autoria do Dep. Homero Pereira que tem por objetivo alterar a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, também conhecido como Estatuto do Índio, propondo que as terras indígenas sejam demarcadas por lei, ou seja, que a demarcação passe pelo crivo do legislativo. O autor justifica a importância da proposição evidenciando que a “demarcação das terras indígenas extrapola os limites de competência da FUNAI, pois interfere em direitos individuais, em questões relacionadas com a política de segurança nacional na faixa de fronteiras, política ambiental e assuntos de interesse dos Estados da Federação e outros relacionados com a exploração de recursos hídricos e minerais”. Em 15 de maio de 2018, o Dep. Jerônimo Goergen apresentou parecer nesta proposição legislativa no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, propondo a instituição do marco temporal por meio de lei.

Nota-se que é uma clara iniciativa da bancada ruralista implementar o marco temporal pela via legislativa, como uma espécie de retorno ao nicho de onde nasceu, mas agora com precedentes judiciais. No âmbito de discussão da tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, verifica-se de forma reincidente os parlamentares se valerem do argumento do marco temporal para capitanear apoio à aprovação dessa proposta.

Entretanto, foi no âmbito do judiciário que o marco temporal encontrou terreno fértil, enraizando-se e alastrando-se por toda a estrutura. Seus frutos são decisões liminares, sentenças e acórdãos anulando demarcações de terras indígenas e determinando o despejo de comunidades inteiras. No ano de 2009, por ocasião do julgamento da Petição 3.388, no STF, aparece pela primeira vez, no âmbito no Poder Judiciário, a tese jurídica denominada “marco temporal”. Segundo esta interpretação jurídica, os povos indígenas só teriam direito às terras que estivessem ocupando no dia 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Dessa decisão proferida, tanto as comunidades indígenas quanto o Ministério Público Federal interpuseram recurso de embargos de declaração, buscando com isso, uma nova manifestação da Corte, para se manifestar se as condicionantes se estendiam automaticamente às outras terras ou não. No ano de 2013, o Supremo analisou os recursos de embargos opostos, decidindo que as condicionantes do caso “não vincula(m) juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas (…). A decisão vale apenas para a terra em questão”.

Parecer 001/2017 da AGU: um duro golpe aos direitos indígenas

Como dito, em 2009, o STF fixou as denominadas “salvaguardas institucionais às terras indígenas” no acórdão proferido no julgamento da Pet. n.º 3.388/RR (caso Raposa Serra do Sol). Instaurou-se o debate sobre se essas “salvaguardas” ou “19 condicionantes” deveriam ser seguidas em todos os processos de demarcação de terras indígenas. Ato seguinte, no ano de 2012, foi editado a Portaria de n.º 303 pela Advocacia Geral da União (AGU) com o propósito de “normatizar” a interpretação e aplicação das 19 condicionantes. Em 25 de julho de 2012, a Portaria AGU n.º 308 suspendeu o início da vigência da Portaria n.º 303/2012 em razão da oposição de diversos embargos de declaração ao acórdão do STF na Pet. n.º 3.388/RR e de um intenso processo de mobilização dos povos indígenas e de organizações sociais. Em 17 de setembro do mesmo ano, uma nova portaria, a Portaria n.º 415 da AGU, estabeleceu como termo inicial da vigência da Portaria n.º 303 o dia seguinte ao da publicação do acórdão a ser proferido pelo STF nos referidos embargos.

Em 2013 o STF analisou os embargos opostos no caso da Pet. n.º 3.388/RR e decidiu que as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol “não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas (…). A decisão vale apenas para a terra em questão”.
Após a publicação do acórdão do STF nos embargos de declaração, a AGU publicou a Portaria n.º 27 de 07 de fevereiro de 2014, determinando à Consultoria-Geral da União e à Secretaria Geral de Contencioso a análise de adequação do conteúdo da Portaria n.º 303/2012 aos termos da decisão final do STF. Diversos órgãos da Administração Pública (FUNAI, AGU, PFE/FUNAI, CONJUR/MJ/CGU/AGU) se envolveram em uma controvérsia sobre a vigência e eficácia da Portaria em questão. Em 11 de maio de 2016, o Advogado-Geral da União, por meio do Despacho n.º 358/2016/GABAGU/AGU, determinou que a Portaria n.º 303/2012 deveria permanecer suspensa até conclusão dos estudos requeridos por meio da Portaria n.º 27/2014.

A partir de 2016, com a ascensão de Michel Temer à Presidência da República, iniciou-se um acelerado retrocesso dos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil. Em maio de 2017, quando o ex-presidente da Funai, Sr. Antônio Fernandes Toninho Costa entregou o cargo, acusando o ex-Ministro da Justiça de agir em favor de um lobby conservador de latifundiários e outros interesses da bancada ruralista, inclusive impondo indicações políticas dentro da Funai, o órgão passou a ser dirigido por um general do Exército. A despeito de protestos do movimento indígena nacional, assumiu a presidência da Funai o general Franklimberg Ribeiro de Freitas. Empossado no cargo, Sr. Freitas assinou uma série de medidas controversas, particularmente no que diz respeito à perspectiva de assimilação de povos indígenas, escondida atrás do argumento do desenvolvimento econômico. Enquanto isso, o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) ficou inoperante, corroborado pela falta de interesse do Ministério da Justiça em estabelecer um diálogo com os povos indígenas.

Foi neste contexto que, em julho de 2017, o Ministério da Justiça estabeleceu um grupo de trabalho (Portaria n.º. 541/2017 do Ministério da Justiça), com vários representantes das forças de segurança e sem a participação de representantes indígenas, para elaborar medidas visando à integração desses povos. Depois de críticas severas por parte do movimento indígena e de organizações da sociedade civil, o ato foi substituído por um similar (Portaria n.º 546/2017 do Ministério da Justiça), sob a justificativa de que o objetivo não era assimilação, mas a organização de povos indígenas.
No dia 20 de julho de 2017 foi publicado no Diário Oficial da União o Parecer n.º 01/2017/GAB/CGU/AGU o qual obriga a Administração Pública Federal a aplicar as 19 condicionantes que o STF estabeleceu na decisão da Pet. n.º 3.388/RR a todas as terras indígenas. O Parecer tem como objetivo, além de determinar a observância direta e indireta do conteúdo das 19 condicionantes, institucionalizar a tese do “marco temporal”, segundo a qual os povos indígenas só teriam o direito às terras que estivessem ocupando na data de 05 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal.

A pretexto de normatizar a atuação da Administração Pública Federal e uniformizar a interpretação constitucional a respeito do processo demarcatório de terras indígenas, o que o Parecer n.º 01/2017 da AGU fez na verdade foi conceder efeito vinculante e automático à decisão do STF, quando este próprio proibiu essa possibilidade.

Na prática este parecer vincula todos os órgãos da Administração Pública Federal (direta e indireta), atingindo notadamente a Funai e a Procuradoria Especializada da Funai. Os efeitos são extremamente negativos porque imediatamente a Funai começou a reanalisar vários procedimentos de demarcação de terras indígenas de todo o país.

Outros processos que já estavam na Casa Civil e Ministério da Justiça, em estágio avançado, foram devolvidos à Funai para serem reanalisados. No âmbito da própria AGU, muitos advogados da União que atuam na defesa dos interesses da União e da Funai, pois as terras indígenas são bens da União, tiveram suas prerrogativas de atuação tolhidas. Em muitos casos, os procuradores da Funai foram obrigados a desistir de fazer a defesa judicial de muitas comunidades indígenas, sob pena de sofrerem procedimento disciplinar. Sem dúvida, este parecer gestado pelo setor ruralista no âmbito do governo de Michel Temer, trouxe serias consequências aos direitos e interesses dos povos indígenas. Tal parecer foi editado justamente no momento em que Michel Temer precisava do apoio da bancada ruralista para impedir a admissibilidade de denúncia contra si no parlamento brasileiro. A Apib chegou a protocolar representação na Procuradoria-Geral da República, mas o caso foi arquivado.

Pontos importantes do voto do ministro relator Luiz Edson Fachin

O departamento jurídico da APIB preparou nota abordando os principais pontos do voto do ministro relator Luiz Edson Fachin. Em seu voto, o ministro relator afirmou que “está em julgamento a tutela do direito à posse de terras pelas comunidades indígenas, substrato inafastável do reconhecimento ao próprio direito de existir dos povos indígenas.”
Ainda, não foi acolhida, por Fachin, a tese do “marco temporal” de ocupação. Segundo essa teoria, somente indígenas que estivessem nas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, teriam direito à demarcação de suas terras. Proferiu o relator: “Entender-se que a Constituição solidificou a questão ao eleger um marco temporal objetivo para a atribuição do direito fundamental a grupo étnico significa fechar-lhes uma vez mais a porta para o exercício completo e digno de todos os direitos inerentes à cidadania”.

A respeito do “marco temporal” e sobre os indígenas que vivem em isolamento voluntário, o ministro questionou: “estando completamente alijadas do modo de vida ocidental, de que modo farão prova essas comunidades de estarem nas áreas que ocupam em 05 de outubro de 1988?”

Neste sentido, é incontroverso que a tese do “marco temporal” não merece prosperar, uma vez que as Constituições brasileiras desde muito antes da promulgação da Carta Magna asseguravam o direito de posse dos indígenas em seus territórios. Em seu voto, o ministro resgatou o texto dos dispositivos das mesmas:

Constituição de 1934: Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.
Constituição de 1937: Art. 154. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das mesmas.
Constituição de 1946: Art. 216. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.
Constituição de 1967: Art. 186. É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes.
Emenda nº 1/1969: Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes. § 1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas. § 2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio.

Logo, importa compreender a demasiada relevância de fazer valer o pensamento de que o direito originário da posse de terras por parte dos indígenas se sobrepõe a linearidade do tempo estabelecido na tese do “marco temporal”. E neste sentido, a proteção constitucional à posse indígena se verifica desde a Carta de 1934, e “tem relevo diversas formas e espécies de reconhecimento legislativo da ocupação indígena, desde a época da Colônia.”

Sobre o autor: Luiz Henrique Eloy Amado é Terena da aldeia Ipegue (MS), Coordenador Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Pós-doutor na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), França.
STF começa amanhã julgamento do século sobre Terras Indígenas

STF começa amanhã julgamento do século sobre Terras Indígenas

Com previsão para iniciar às 14h, Suprema Corte vai fixar a interpretação jurídica dos direitos dos povos indígenas sobre suas terras

Brasília (DF), 29 de junho de 2021 – O Supremo Tribunal Federal (STF) inicia, amanhã (30/6), o julgamento que definirá o futuro das demarcações das Terras Indígenas (TIs) no Brasil.

A Corte vai analisar a ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à TI Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang. Em 2019, o STF deu status de “repercussão geral” ao processo, o que significa que a decisão servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios.

Os ministros também vão analisar a determinação do ministro Edson Fachin, de maio do ano passado, de suspender os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU). A norma oficializou o chamado “marco temporal”, entre outros pontos, e vem sendo usada pelo governo federal para paralisar e tentar reverter as demarcações. Na mesma decisão do ano passado, Fachin suspendeu, até o final da pandemia da Covid-19, todos os processos judiciais que poderiam resultar em despejos ou na anulação de procedimentos demarcatórios. Essa determinação também deverá ser apreciada pelo tribunal.

O “marco temporal” é uma interpretação defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das TIs que restringe os direitos constitucionais dos povos indígenas. De acordo com ela, essas populações só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, se não estivessem na terra, precisariam estar em disputa judicial ou em conflito material comprovado pela área na mesma data.

A tese é injusta porque desconsidera as expulsões, remoções forçadas e todas as violências sofridas pelos indígenas até a promulgação da Constituição. Além disso, ignora o fato de que, até 1988, eles eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente para lutar por seus direitos.

O julgamento estava marcado anteriormente para 11 de junho, mas foi suspenso por um pedido de “destaque” do ministro Alexandre de Moraes, um minuto após começar. Os demais ministros sequer chegaram a depositar seus votos. Apesar disso, o voto do relator, ministro Edson Fachin, foi divulgado.

O julgamento será transmitido pela TV Justiça, com apresentação e debate dos votos. Não há garantia que seja concluído nessa data ou mesmo na sessão extraordinária, já marcada para o dia seguinte (1º de julho), porque os ministros podem pedir para avaliar o processo melhor, com um pedido de “vistas”, suspendendo-o e transferindo-o para uma data incerta.

A TI Ibirama-Laklãnõ está localizada entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, Vitor Meireles e José Boiteux, 236 km a noroeste de Florianópolis (SC). A área tem um longo histórico de demarcações e disputas, que se arrasta por todo o século XX, no qual foi reduzida drasticamente. Foi identificada por estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2001, e declarada pelo Ministério da Justiça, como pertencente ao povo Xokleng, em 2003. Os indígenas nunca pararam de reivindicar o direito ao seu território ancestral.

O que dizem os participantes do processo?

“A demora na demarcação das terras indígenas é muito preocupante. Porque, a cada tempo que se passa, se encontram grandes dificuldades para a demarcação de terra no Brasil. Os povos indígenas precisam ter reconhecidos seus direitos tradicionais. E nós gostaríamos que fosse julgada a repercussão geral, que fosse a favor, que não se falasse mais em marco temporal.”
Brasílio Priprá, uma das principais lideranças Xokleng

“A gente espera que o Supremo possa adotar uma interpretação mais justa, razoável, e que possa ajudar a efetivar direitos. E não mais utilizar, por exemplo, a tese do marco temporal, para limitar o reconhecimento de direitos a nós, povos indígenas… o que já vem acontecendo nos últimos dez anos. Mas também pode fortalecer a nossa luta nesse enfrentamento com os outros poderes, que utilizam do marco temporal como um critério para restringir direitos”.
Samara Pataxó, advogada da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)

“A forma como o povo perdeu o território foi a forma mais violenta, mais vil, mais terrível. Houve, no início do século passado, a demarcação sem critérios técnicos. Perdeu-se, na década de 1920, parte significativa do território. Em 1950, a mesma coisa. Depois, a construção de uma barragem levou as melhores terras. E nesse contexto se dá a disputa do povo Xokleng, para que de fato seja garantida a devolução dessas áreas roubadas”.
Rafael Modesto, advogado da comunidade Xokleng e também assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Levante Pela Terra

Povos indígenas de todas as regiões do país têm se mobilizado contra a tese do marco temporal. Desde o dia 8 de junho, em torno de 850 lideranças, de 50 povos, estão mobilizadas no acampamento Levante Pela Terra, em Brasília, contra o avanço da agenda anti-indígena do governo Bolsonaro e da bancada ruralista no Congresso.

“O levante é um chamado da terra a todos os povos do Brasil para que nós mostremos para esse genocida quem são os verdadeiros donos da terra. Estamos em Brasília pela garantia dos nossos direitos originários e para dizer ‘fora Bolsonaro genocida, e seus projetos maquiavélicos contra as populações indígenas’”, afirma Kretã Kaingang, coordenador da Apib.

Nos territórios, há semanas os povos indígenas têm se mobilizado contra o “pacote da maldade” que tramita no Congresso Nacional, a exemplo do Projeto de Lei 490/2007, que abre as terras indígenas para a exploração econômica predatória e inviabiliza, na prática, novas demarcações. Nos “trancaços” de rodovias, rituais e rezas, os povos também se posicionam contrários à tese do marco temporal, que busca restringir os seus direitos constitucionais.

Saiba mais sobre o julgamento 

Entenda porque o caso de repercussão geral no STF pode definir o futuro das terras indígenas

Entenda porque o caso de repercussão geral no STF pode definir o futuro das terras indígenas

Acesse a página dedicada sobre o Marco Temporal

Do que trata o RE 1.017.365?

O Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365, que tramita no STF, é um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada da TI Ibirama-Laklanõ. O território em disputa foi reduzido ao longo do século XX e os indígenas nunca deixaram de reivindicá-lo. A área já foi identificada pelos estudos antropológicos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça como parte da sua terra tradicional.

Por que esse julgamento é central para o futuro dos povos indígenas no Brasil?

Em decisão do dia 11 de abril de 2019, o plenário do STF reconheceu por unanimidade a “repercussão geral” do julgamento do RE 1.017.365. Isso significa que o que for julgado nesse caso servirá para fixar uma tese de referência a todos os casos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do Judiciário.

Há muitos casos de demarcação de terras e disputas possessórias sobre TIs que se encontram, atualmente, judicializados. Também há muitas medidas legislativas que visam retirar ou relativizar os direitos constitucionais dos povos indígenas. Ao admitir a repercussão geral, o STF reconhece, também, que há necessidade de uma definição sobre o tema.

Quando e como ocorrerá o julgamento?

A retomada do julgamento, que vai definir o futuro dos povos indígenas do Brasil e é decisiva para o enfrentamento da crise climática, está prevista para o dia 7 de junho. Não há garantia de que o julgamento seja concluído na data prevista. Há outros itens na pauta do STF. Além disso, antes dele ser iniciado, o presidente da corte ou o relator pode retirar o processo de pauta. Outra possibilidade é o pedido de vista, que pode ser feito por qualquer ministro. Aquele que fizer a solicitação deverá devolver o processo para prosseguimento da votação, no prazo de 30 dias (prorrogável por mais 30 dias), contado da data da publicação da ata de julgamento. Ocorre que nem sempre o prazo é respeitado e alguns processos ficam parados por anos. Os prazos também serão suspensos durante o recesso do STF.

O que está em jogo?

No limite, o que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental aos povos indígenas: o direito à terra. Há, em síntese, duas teses principais que se encontram atualmente em disputa: de um lado, a chamada “teoria do indigenato”, uma tradição legislativa que vem do período colonial e que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito “originário” – ou seja, anterior ao próprio Estado. A Constituição Federal de 1988 segue essa tradição ao garantir aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

Do outro lado, há uma proposta restritiva, que pretende limitar os direitos dos povos indígenas às suas terras ao reinterpretar a Constituição com base na tese do chamado “marco temporal”.

Há ainda a possibilidade de reavaliação das chamadas “salvaguardas institucionais”, conhecidas como “condicionantes”, fixadas, em 2009, no julgamento do caso da TI Raposa Serra do Sol (RR) e que igualmente restringem a posse e o usufruto exclusivos dos povos indígenas sobre suas terras.

O que é marco temporal?

O marco temporal é uma tese jurídica que busca restringir os direitos constitucionais dos povos indígenas. Nessa interpretação, defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras tradicionais, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988. Alternativamente, se não estivessem na terra, teriam que comprovar a existência de disputa judicial ou conflito material na mesma data de 5 de outubro de 1988.

A tese é perversa porque legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar. Além disso, ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos. Por tudo isso, os povos indígenas vêm dizendo, em manifestações e mobilizações: “Nossa história não começa em 1988!”.

Os povos indígenas participarão do julgamento?

O relator do caso, ministro Edson Fachin, defendeu a ampla participação de todos os setores interessados no tema, dada a importância da matéria. Tal participação se dará a partir da figura do amicus curiae – termo em latim que significa “amigo da corte” e que permite que pessoas, entidades ou órgãos com interesse e conhecimento sobre o tema contribuam num processo, subsidiando o tribunal com informações. Mais de 50 amici curiae foram admitidos e estão habilitados a contribuir no caso, entre eles, muitas comunidades e organizações indígenas. Além disso, a própria comunidade Xokleng também é parte no processo, tendo em vista que é diretamente afetada por ele.

Que consequências esse julgamento pode ter para os povos indígenas?

Caso o STF reafirme o caráter originário dos direitos indígenas e, portanto, rejeite definitivamente a tese do marco temporal, centenas de conflitos em todo o país terão o caminho aberto para sua solução, assim como dezenas de processos judiciais poderão ser imediatamente resolvidos.

As 310 terras indígenas que estão estagnadas em alguma etapa do processo de demarcação já não teriam, em tese, nenhum impedimento para que seus processos administrativos fossem concluídos.

Por outro lado, caso o STF opte pela tese anti-indígena do marco temporal, acabará por legalizar as usurpações e violações ocorridas no passado contra os povos originários. Nesse caso, pode-se prever uma enxurrada de outras decisões anulando demarcações, com o consequente surgimento de conflitos em regiões pacificadas e o acirramento dos conflitos em áreas já deflagradas.

Esta decisão poderia incentivar, ainda, um novo processo de invasão e esbulho de terras demarcadas – situação que já está em curso em várias regiões do país, especialmente na Amazônia.

Além disso, há referências de povos indígenas isolados ainda não confirmadas pelo Estado, ou seja, ainda em estudo – um procedimento demorado, em função da política de não contato. Se o marco temporal de 1988 for aprovado, muitas terras de povos isolados não serão reconhecidas, abrindo a possibilidade do extermínio desses povos.

Há outros casos, como o do povo Kawahiva, em que a comprovação da existência desse povo isolado se deu, para o Estado brasileiro, em 1999, ou seja, muito depois de 1988. Como vai ficar a situação desses povos? Ademais, não é possível contatá-los para saber se já estavam lá em 1988.

O julgamento pode afetar os povos indígenas isolados?

Os povos indígenas isolados também podem ser impactados pela tese do “marco temporal”. Isso porque, em muitos casos, seria difícil ou até impossível comprovar a presença desses grupos em 5 de outubro de 1988 nas terras onde hoje habitam, o que inviabilizaria a demarcação de seus territórios. O Estado brasileiro até hoje desconhece a existência dessas comunidades.

Não é razoável exigir que, numa data específica, esses povos estivessem reivindicando formalmente o reconhecimento e regularização de seus territórios. Por outro lado, a comprovação de que se encontravam em situação de conflito deflagrado tampouco é tarefa fácil em vista da perseguição e ocultação de sinais da sua presença por invasores e da omissão do Estado em protegê-los.

Foram vítimas notórias desses problemas os Canoê, Akunt’su e o “Índio do Buraco” (RO); os Piripkura Kawahiva e Kawahiva do Rio Pardo (MT), por exemplo. No último caso, a Funai só recebeu informações sobre a presença de povos indígenas isolados no final dos anos 90. A interdição da área foi feita em 2001 e o processo de demarcação se estendeu até a declaração da área como Terra Indígena em 2016.

Dos 115 registros da presença de indígenas isolados no Brasil, 86 ainda não foram confirmados – ou seja, caso sua existência venha a ser confirmada, ainda não se sabe ao certo qual é o território tradicionalmente ocupado por esses grupos.

Destes 86 registros não confirmados, 35 se encontram fora de terras indígenas reconhecidas, em alguns casos em áreas pressionadas pela realização de atividades ilícitas, por empreendimentos de infraestrutura, pela expansão do agronegócio e pelo proselitismo religioso. Essas pressões também incidem sobre terras indígenas reconhecidas. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), há 115 registros da presença de indígenas em isolamento no país, apenas 29 deles confirmados, outros 26 registros estão em estudo e 60 são informações coletadas pela Funai.

Um levantamento do ISA identificou 56 obras de infraestrutura em operação impactando 28 TIs, 13 Unidades de Conservação (UC) federais, 4 UCs estaduais e 5 áreas sem proteção, onde estão localizados 67 registros de povos indígenas isolados – 9 confirmados, 15 em estudo e 44 informações ainda não confirmadas.

A ideia usada por ruralistas para defender restrições às demarcações de que há “muita terra para poucos índios no Brasil” faz sentido? As terras indígenas tomam terra disponível da agropecuária brasileira?

Considerando o conjunto de serviços ecossistêmicos providos pelas TIs, elas são fundamentais para a manutenção da agropecuária brasileira.

Além disso, não é verdade que há “muita terra para pouco índio” no Brasil, isto é, não se pode afirmar que as demarcações comprometem o estoque de terras disponíveis para a produção rural.

Considerando os processos de demarcação já abertos na Funai, quase 14% do território brasileiro hoje está contido em TIs, mas mais de 98% da extensão total dessas áreas está na Amazônia Legal, grande parte em regiões remotas e sem vocação agrícola ou pecuária. Fora da Amazônia, onde está a maior parte do PIB agropecuário, as TIs ocupam algo como 0,6% do território. Em contrapartida, segundo o IBGE (2017), 41% de todo o território brasileiro é ocupado por estabelecimentos rurais privados.

Além disso, há uma enorme discrepância na distribuição da população das TIs. Das 517,3 mil pessoas que moravam nessas áreas protegidas conforme o Censo IBGE de 2010 (último dado oficial disponível), 62% estavam na Amazônia Legal, enquanto os outros 38% espremiam-se nos 2% restantes da extensão total das TIs localizados fora dessa região, o equivalente a menos de 21 mil km2, ainda considerando os processos de demarcação já abertos na Funai.

Em alguns dos estados mais importantes para o agronegócio, a extensão de terra ocupada pelas TIs é insignificante em relação ao território total, a exemplo de São Paulo (0,3%), Minas Gerais (0,2%) e Goiás (0,1%), igualmente levando em conta os procedimentos demarcatórios já abertos na Funai. Onde os conflitos de terra são mais intensos, a extensão total das TIs também não alcança 1% do território, como na Bahia (0,5%), Santa Catarina (0,8%), Rio Grande do Sul (0,4%) e Paraná (0,6%). No Mato Grosso do Sul, o percentual é de 2,4%.
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Enquanto isso, o Brasil é um dos campeões mundiais de concentração de terras. Pouco mais de 1% do número total dos estabelecimentos rurais (51,2 mil estabelecimentos) detém 47% da área total dos estabelecimentos rurais ou quase 20% do território nacional, o equivalente a 1,6 milhão de km2.

Fontes: IBGE e ISA.

Qual a importância ambiental e climática das Terras Indígenas?

Além de serem indispensáveis à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, as TIs têm papel fundamental na conservação ambiental. As grandes extensões de vegetação nativa conservadas nas Terras Indígenas são responsáveis pela manutenção de serviços ecossistêmicos essenciais, como a regulação climática e do regime de chuvas, a manutenção dos mananciais de água, a estabilidade e fertilidade do solo, controle de pragas e doenças, entre outros. Todas essas funções são benéficas não apenas à agricultura e à pecuária, mas também à manutenção da indústria e das cidades.

Esses territórios são os mais preservados entre as áreas oficialmente protegidas pela legislação, sendo reconhecidos pelas pesquisas como as principais barreiras contra o desmatamento e o avanço da fronteira agropecuária. Cientistas do mundo todo seguem demonstrando como as terras ocupadas tradicionalmente pelos povos originários são as áreas com maior biodiversidade e vegetação mais preservadas. Ou seja, demarcar as Terras Indígenas e mantê-las protegidas de invasores ilegais, garimpeiros, madeireiros e o avanço do agronegócio é garantir que o estoque de carbono nessa área seja mantido e os direitos dos povos indígenas respeitados.

Análise feita pela Apib e Ipam, com dados do MapBiomas, demonstram que 29% do território ao redor das TIs, no Brasil, está devastado, enquanto dentro das mesmas só tem 2% de desmatamento.

O mapeamento mostra que a maior parte das áreas desmatadas estão destinadas a pastagens para criação de gado (para exportação de carne e de couro) e a produção de soja, mas também destacam plantações de cana, arroz, eucalipto ou algodão, entre outras commodities.

Demarcar nossas Terras e reconhecer os direitos dos Povos Indígenas é a melhor estratégia contra a crise climática. Apoiar os povos indígenas e comunidades locais em suas práticas tradicionais é a estratégia para proteger e recuperar ecossistemas e construir não apenas um plano de contingência para a crise climática, mas também um plano de futuro.

Nota Técnica da APIB sobre o PL 490

Nota Técnica da APIB sobre o PL 490

Nota Técnica sobre o PL 490/2007

EMENTA: PL 490/2007. COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO E JUSTIÇA E DE CIDADANIA (CCJC). DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. DIREITO CONSTITUCIONAL. INCONSTITUCIONALIDADE.

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ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL – APIB, organização indígena de representação e defesa dos direitos dos povos indígenas no Brasil, diante do atual contexto em que se encontra em trâmite, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 490/2007, e considerando que tal proposta evidencia-se como uma das principais ameaças no Poder Legislativo aos direitos reconhecidos aos povos indígenas na Constituição Federal de 1988, é que passaremos à sua análise a seguir.

Dos objetivos do PL 490/2007

O PL 490/2007 é de autoria do deputado Homero Pereira (PSD/MT), e possui cerca de 13 outros projetos apensados, que em sua maioria versam sobre alteração da legislação existente quanto ao regime jurídico constitucional e infraconstitucional de demarcação de terras indígenas. Embora a ementa da proposta apresente como objetivo geral a alteração da Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio, mais adiante veremos que tais mudanças vão em sentido contrário daquilo que está disposto e assegurado como cláusula pétrea na Carta Constitucional de 1988.

Após tramitação pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, com parecer pela sua aprovação; e pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias, com parecer pela sua rejeição, o PL 490/2007 se encontra em trâmite na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), sob relatoria do Deputado Arthur Maia (DEM/BA), que apresentou à Comissão um texto substitutivo ao referido PL no dia 12/05/2021, o qual foi aprovado na sessão do dia 24/06/2021.

Destaca-se que o teor do substitutivo ao PL 490/2007 tem como objetivo central a regulamentação, através de lei ordinária, do art. 231 da Constituição Federal de 1988, para consolidar um suposto entendimento “amplamente majoritário” do STF sobre a matéria, que servirá como “instrumento de paz social e segurança jurídica”. O texto do substitutivo dispõe de maneira geral sobre o reconhecimento, a demarcação, o usufruto e a gestão de terras indígenas. No entanto, em uma análise pormenorizada de alguns dispositivos, logo se verifica que por meio do PL em comento objetiva-se:

a) Inviabilizar as demarcações das terras indígenas através da incorporação em lei da tese do marco temporal (Teoria do fato indígena) como um dos requisitos taxativos a ser observado para o reconhecimento de áreas tradicionalmente ocupadas (art. 4º, §2º ao §4º). O projeto ainda propõe mudanças quanto ao procedimento de demarcação que atualmente é regulamentado pelo Decreto 1.775/1996 (art. 4º, §5º ao art. 15); incorpora a condicionante de nº 17 do acórdão da Pet. 3.388/RR julgado pelo STF, no sentido de que pretende-se vedar a ampliação de terras indígenas já demarcadas (art. 13); e objetiva revisar e adequar todos os procedimentos de demarcação em curso, e tornar nulas as demarcações já feitas que estiverem em desacordo com os parâmetros da lei proposta (art. 14 e art.15);

b) Possibilitar à União a retomada de áreas reservadas aos indígenas quando verificada a “alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo” (art.16, §4º, I e II), ou seja, pretende-se reinserir na ordem jurídica, critérios integracionistas para negar e/ou restringir direitos territoriais aos povos indígenas;

c) Retirar a proteção das terras indígenas adquiridas por meio de compra e venda e doação. Pretende-se aplicar às terras indígenas que são adquiridas mediante algumas das formas previstas na legislação civil, o regime jurídico da propriedade privada (art. 18, §1º). Como consequência imediata disso, entendemos que poderá haver a utilização desta categoria de terra indígena como critério discriminatório ou limitador, para a não implementação de políticas públicas por parte da União, por exemplo;

d) Limitar o usufruto e a gestão das terras perante os indígenas ao elencar como não abrangente ao usufruto exclusivo dos indígenas o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, a pesquisa e lavra das riquezas minerais, a garimpagem e a faiscação, condicionando a permissão para tais práticas à autorização do Congresso Nacional. Restringe-se ainda o usufruto dos indígenas em relação às áreas cuja ocupação “atenda a relevante interesse público da União” (art. 20);

e) Violar o direito de consulta aos povos indígenas, utilizando-se como justificativa, além do “relevante interesse público”, o interesse da política de defesa e soberania nacional (art.21 e art.22); visa ainda, abrir as terras indígenas para a instalação de equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação (art.23);

f) Flexibilizar e desrespeitar a política indigenista do não contato com os povos indígenas isolados. O PL 490 traz previsão que permite o contato com povos indígenas isolados para “ prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública” (art.29). Além de expor em risco a vida e a autonomia dos povos isolados, ao mesmo tempo esse dispositivo desconsidera toda a política indigenista consolidada nos últimos 33 anos, em que a atuação do Estado sempre esteve pautada na política do não contato como um dos fatores primordiais para o respeito e a proteção aos povos isolados;

Portanto, vê-se que o texto substitutivo do PL 490 apresentado pelo relator na CCJC, está longe de atender aos objetivos que se propõe, quais sejam: paz social e segurança jurídica, na medida em que tais objetivos não contemplam os interesses dos mais afetados com tais mudanças legislativas: os povos indígenas.

Da inconstitucionalidade do PL 490/2007 e da sua contrariedade à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Um ponto que merece atenção é o que diz respeito à justificativa que fundamenta o teor do substitutivo do PL 490/2007, que traz como embasamento uma “suposta lapidação” do regime jurídico constitucional das terras indígenas, tanto por parte do Poder Judiciário, como pelo Poder Executivo.

Nesse sentido, busca-se fazer crer que o Supremo Tribunal Federal já teria jurisprudência consolidada sobre a matéria de demarcação de terras indígenas, citando a súmula 650, o acórdão da Pet.3.388/RR (caso da TI Raposa Serra do Sol) e demais julgados em que foram aplicados excertos destacados do referido acórdão: o marco temporal de ocupação (teoria do fato indígena), o renitente esbulho e as 19 condicionantes. Ademais, afirma que tais critérios também já estariam “consolidados” em razão do Poder Executivo ter aprovado pelo Presidente da República o Parecer nº GMF-05 da AGU, com força normativa, nos termos do §1º do artigo 40 da Lei Complementar nº 73/93, que por sua vez adotou o Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU, o qual vincula a Administração Pública Federal, direta e indireta, a observar, respeitar e dar efetivo cumprimento, em todos os processos de demarcação de terras indígenas, às condições fixadas na decisão do STF na Pet. 3.388/RR.

É diante disso que o deputado Arthur Maia finaliza a justificativa do substitutivo afirmando que “é imprescindível que o poder legislativo consolide o entendimento jurisprudencial do STF e da AGU/Presidência da República sobre o regime jurídico constitucional demarcatório de terras indígenas do art. 231 da CF/88 em lei ordinária”.

Ocorre que o substitutivo ao PL 490/2007 é flagrantemente inconstitucional, tanto no aspecto formal como material, haja vista a afronta aos parâmetros constitucionais que regulamentam o processo legislativo, bem como a pretensão de alterar substancialmente, por meio de lei ordinária, os direitos territoriais reconhecidos aos povos indígenas na Constituição.

O imperativo constitucional disposto no art. 60, §4º é o que deve prevalecer em face da potente ameaça que traz o PL 490/2007 a pilares que são caros ao Estado Democrático de Direito: a separação dos Poderes, os direitos e as garantias individuais, e os direitos reconhecidos aos povos indígenas.

No largo desses quase 33 anos de promulgação da Constituição Federal de 1988, não restam dúvidas de que os direitos ali reconhecidos aos povos indígenas são também cláusulas pétreas e, como tais, gozam de máxima proteção à luz dos princípios da vedação ao retrocesso e à proibição da proteção deficiente de seus direitos. Esse entendimento foi reafirmado em voto recente proferido pelo Ministro Edson Fachin do STF, no julgamento do processo em repercussão geral no qual é relator. Vejamos:

Em primeiro lugar, incide sobre o disposto no artigo 231 do texto constitucional a previsão do artigo 60, §4º da Carta Magna, consistindo, pois, cláusula pétrea à atuação do constituinte reformador, que resta impedido de promover modificações tendentes a abolir ou dificultar o exercício dos direitos individuais e coletivos emanados do comando constitucional do artigo citado.
[…]
Em segundo lugar, os direitos emanados do artigo 231 da CF/88, enquanto direitos fundamentais, estão imunes às decisões das maiorias legislativas eventuais com potencial de coartar o exercício desses direitos, uma vez consistirem em compromissos firmados pelo constituinte originário, além de terem sido assumidos pelo Estado Brasileiro perante diversas instâncias internacionais (como, por exemplo, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e a Declaração das nações Unidas sobre os Povos Indígenas). Portanto, consistem em obrigações exigíveis perante a Administração Pública, consistindo em dever estrutural a ser desempenhado pelo Estado, e não meramente conjuntural.
Em terceiro lugar, por se tratar de direito fundamental, aplica-se aos direitos indígenas a vedação ao retrocesso e a proibição da proteção deficiente de seus direitos, uma vez que atrelados à própria condição de existência e sobrevivência das comunidades e de seu modo de viver. (grifos do original)

Se o artigo 60, §4º da CF/1988 protege tais direitos das violações intentadas por meio de emendas à Constituição, torna-se mais gravoso ainda quando a tentativa de atacar e violar tais garantias se dá através de projeto de lei, como o PL 490/2007.

Frisa-se ainda que, ao contrário do que tem sido fortemente defendido pelo Poder Executivo, pelo Poder Legislativo e por todos aqueles que possuem interesses contrários à demarcação das terras indígenas, não há que se falar em “jurisprudência consolidada” do STF quanto à aplicação dos critérios extraídos da Pet.3.388/RR (marco temporal, renitente esbulho e as 19 condicionantes), a qual não possui força vinculante erga omnes em sentido técnico para o próprio Poder Judiciário e muito menos deveria ter para os outros Poderes.

Ademais, é importante ressaltar que, quanto à tese do marco temporal de ocupação das terras indígenas, embora tenha sido apresentada como um critério objetivo para aferir a ocupação indígena na área objeto da ação (a TI Raposa Serra do Sol – Pet. 3.388), tal tese nem sequer foi aplicada para o deslinde desta controvérsia! Pois, caso contrário, a demarcação daquela TI teria se dado de maneira descontínua (em ilhas) e não teria sido reconhecida a constitucionalidade da sua demarcação, o que não ocorreu. Já em relação às 19 condicionantes deste caso, em especial a de número 17 (“é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada”), estas serviram apenas para viabilizar a autoexecutoriedade do que foi decidido no bojo da Pet. 3.388/RR.

Acrescenta-se ainda que a matéria em discussão no Legislativo através do PL 490/2007, que visa regulamentar o regime jurídico das terras indígenas, possui total relação com a pauta que ainda está em trâmite no STF, no processo em repercussão geral (RE 1.017365/SC) sob o Tema 1.031, no qual pretende-se firmar tese sobre a “Definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional”. Portanto, vê-se que a tramitação no Poder Legislativo de um PL que trata do mesmo tema em discussão no Judiciário como repercussão geral, no mínimo deveria levar em consideração o fato de que, uma vez que há um processo cuja tramitação carrega tal status paradigmático, isto torna evidente, por si só, que não há um entendimento “consolidado” por parte do STF sobre a matéria em comento, o que só poderá ser afirmado após o julgamento de mérito. Assim, verifica-se que a justificativa e a fundamentação que norteiam os objetivos do PL 490/2007 não subsistem.

Outro ponto a ser observado, e que demonstra mais uma ilegalidade e violação aos direitos dos povos indígenas que permeiam a tramitação deste PL 490/2007, é o desrespeito às normativas internacionais das quais o Brasil é signatário e que ampliam a esfera de proteção aos direitos reconhecidos aos povos indígenas no ordenamento jurídico pátrio (Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Convenção nº 169 da OIT). Ocorre que além de inconstitucional (quanto à forma e matéria), o PL 490/2007 é também inconvencional, pois em nenhum momento ao longo da sua tramitação foi oportunizado aos povos indígenas o direito de serem consultados a despeito de tal medida legislativa, conforme assegura o art. 6º da Convenção 169 da OIT, que também é norma interna.

Conclusão

Ante o exposto, por restar nítida a inconstitucionalidade do PL 490/2007 sob o ponto de vista formal e material, bem como a sua inconvencionalidade por violar o direito de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas e, ainda, a sua contrariedade à hermenêutica jurídica constitucional do art. 231 da CF/1988, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB manifesta-se pela REJEIÇÃO e ARQUIVAMENTO do referido projeto de lei.

Brasília, 25 de junho de 2021

STF e a tutela ao direito originário dos povos indígenas a suas terras de ocupação tradicional

STF e a tutela ao direito originário dos povos indígenas a suas terras de ocupação tradicional

Confira alguns prontos do voto do ministro Edson Fachin no Recurso Extraordinário n. 1.017.365, que está com repercussão geral, e seu julgamento será no próximo dia 30/06, oportunidade em que o STF definirá o futuro das terras indígenas no país.

material preparado pela Assessoria Jurídica da APIB

No próximo dia 30 de junho de 2021, irá ocorrer o julgamento do Recurso extraordinário nº 1.017.365, na qual a APIB ingressou como amicus curiae, que tem repercussão geral reconhecida, e foi retirado de pauta recentemente do julgamento no plenário virtual do Supremo Tribunal Federal (STF), por conta de um pedido de destaque do ministro Alexandre de Moraes.

Em seu voto, o ministro relator Edson Fachin afirmou que “está em julgamento a tutela do direito à posse de terras pelas comunidades indígenas, substrato inafastável do reconhecimento ao próprio direito de existir dos povos indígenas.”

Neste sentido, afim de que possamos explanar a importância e relevância da temática para toda a sociedade civil brasileira, de forma didática, elencamos as 5 principais razões do porquê o Recurso extraordinário nº 1.017.365 definirá o futuro das terras indígenas no país.

Em seu voto, o r. Ministro trouxe, em sede de relevante contribuição, o contexto histórico das Constituições brasileiras acerca da temática, bem como do ordenamento jurídico como um todo. No que tange ao direito dos indígenas à posse e uso das terras que ocupam, o ministro Fachin fez ressalva a legislação que deu início a legitimação do instituto da posse indígena: ”foi infirmado pela Lei de Terras de nº 601/1850, e veio também assegurada pelo disposto do artigo 24, § 1º do Decreto nº 1318/1854, que regulamentou referida lei, pois entende que a posse é legitimada ao primeiro ocupante, e já se reconhecia o direito originário dos indígenas às terras em sua posse.”

Ainda, não foi acolhida por Fachin a tese do “marco temporal” de ocupação. Segundo essa teoria, somente indígenas que estivessem nas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, teriam direito à demarcação de suas terras. Proferiu o relator: “Entender-se que a Constituição solidificou a questão ao eleger um marco temporal objetivo para a atribuição do direito fundamental a grupo étnico significa fechar-lhes uma vez mais a porta para o exercício completo e digno de todos os direitos inerentes à cidadania”.

A respeito do “marco temporal” e sobre os indígenas que vivem em isolamento voluntário, o ministro questionou: “estando completamente alijadas do modo de vida ocidental, de que modo farão prova essas comunidades de estarem nas áreas que ocupam em 05 de outubro de 1988?”

Neste sentido, é incontroverso que a tese do “marco temporal” não merece prosperar, uma vez que as Constituições brasileiras desde muito antes da promulgação da Carta Magna asseguravam o direito de posse dos indígenas em seus territórios. Em seu voto, o ministro resgatou o texto dos dispositivos das mesmas:

Constituição de 1934: Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.

Constituição de 1937: Art. 154. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das mesmas.

Constituição de 1946: Art. 216. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.

Constituição de 1967: Art. 186. É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes.

Emenda nº 1/1969: Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes. § 1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas. § 2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio.

Logo, importa compreender a demasiada relevância de fazer valer o pensamento de que o direito originário da posse de terras por parte dos indígenas se sobrepõe a linearidade do tempo estabelecido na tese do “marco temporal”. E neste sentido, a proteção constitucional à posse indígena se verifica desde a Carta de 1934, e “tem relevo diversas formas e espécies de reconhecimento legislativo da ocupação indígena, desde a época da Colônia.”

PONTOS IMPORTANTES DO VOTO:

1 – Posse civil x posse indígena de terras:

“De início, cumpre afirmar que já restou assentado por esta Corte que a posse indígena difere-se frontalmente da posse civil, não sendo portanto regulada pela legislação privatista vigente, mas sim pelas previsões constitucionais configuradoras do direito territorial indígena.”
“Efetivamente, a posse civil pode ser conceituada como “sempre um poder de fato, que corresponde ao exercício de uma das faculdades inerentes ao domínio” (GOMES, Orlando. Direitos reais. 19.ed. atual. por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 51)”
“No caso das terras indígenas, a função econômica da terra se liga à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena, mas não funciona como mercadoria para essas comunidades.”
“A posse indígena, portanto, não se iguala à posse civil; ela deságua na própria formação da identidade das comunidades dos índios, e não se qualifica como mera aquisição do direito ao uso da terra.”
“A terra para os indígenas não tem valor comercial, como no sentido privado de posse. Trata-se de uma relação de identidade, espiritualidade e de existência, sendo possível afirmar que não há comunidade indígena sem terra, num ponto de vista étnico e cultural, inerente ao próprio reconhecimento dessas comunidades como povos tradicionais e específicos em relação à sociedade envolvente.”

2 – Direito originário – direitos indígenas fundamentais, cláusula pétrea e vedação do retrocesso

“De início, cumpre afirmar que os direitos das comunidades indígenas consistem em direitos fundamentais, que garantem a manutenção das condições de existência e vida digna aos índios. Ao reconhecer “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, o artigo 231 tutela aos indígenas brasileiros direitos individuais e coletivos a ser garantidos pelos Poderes Públicos por meio de políticas que preservem a identidade de grupo e seu modo de vida, cultura e tradições.”
“Em primeiro lugar, incide sobre o disposto no artigo 231 do texto constitucional a previsão do artigo 60, §4º da Carta Magna, consistindo, pois, cláusula pétrea à atuação do constituinte reformador, que resta impedido de promover modificações tendentes a abolir ou dificultar o exercício dos direitos individuais e coletivos emanados do comando constitucional.”
“Em segundo lugar, os direitos emanados do artigo 231 da CF/88, enquanto direitos fundamentais, estão imunes às decisões das maiorias legislativas eventuais com potencial de coartar o exercício desses direitos, uma vez consistirem em compromissos firmados pelo constituinte originário, além de terem sido assumidos pelo Estado Brasileiro perante diversas instâncias internacionais (como, por exemplo, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e a Declaração das nações Unidas sobre os Povos Indígenas). Portanto, consistem em obrigações exigíveis perante a Administração Pública, consistindo em dever estrutural a ser desempenhado pelo Estado, e não meramente conjuntural.”
“Em terceiro lugar, por se tratar de direito fundamental, aplica-se aos direitos indígenas a vedação ao retrocesso e a proibição da proteção deficiente de seus direitos, uma vez que atrelados à própria condição de existência e sobrevivência das comunidades e de seu modo de viver.”

3 – O direito originário às terras independe de demarcação

“Como se depreende do próprio texto constitucional, os direitos territoriais originários dos índios são reconhecidos, portanto, preexistem à promulgação da Constituição.”
Logo, a posse permanente das terras de ocupação tradicional indígena independe da conclusão ou mesmo da realização da demarcação administrativa dessas terras, é direito originário das comunidades indígenas, sendo apenas reconhecimento, mas não constituído pelo ordenamento jurídico. A natureza jurídica do procedimento demarcatório é meramente declaratória, consiste na exteriorização da propriedade da União, vinculada e afetada à específica função de servir de habitat para a etnia que a ocupe tradicionalmente. É atividade do Poder Executivo, desempenhada por diversos órgãos, conforme o procedimento acima demonstrado, mas que não cria terra indígena, apenas reconhece aquelas que já são, por direito originário, de posse daquela comunidade.

4 – Teoria do indigenato x Teoria do fato indígena (marco temporal)

“Os direitos dos índios sobre suas terras assentam em outra fonte: o Indigenato. O ‘tradicionalmente’ refere-se não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção – enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos pelos quais se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realize segundo seus usos, costumes e tradições.” (SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 8.ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 889-890)”
“O direito dos indígenas à posse e uso das terras que ocupavam não só não restou infirmado pela Lei de terras acima citada, como veio também assegurado pelo disposto do artigo 24, § 1º do Decreto nº 1318/1854, que regulamentou referida lei, pois entende que a posse é legitimada ao primeiro ocupante, e já se reconhecia o direito originário dos indígenas às terras em sua posse. Tratava-se, nas palavras de João Mendes Jr., do reconhecimento do indigenato, ou seja, de que os índios eram os ocupantes primeiros das terras, e sua posse não estava sujeita à legitimação pelo ordenamento jurídico, pois não se tratava de aquisição de um direito, mas apenas da declaração de sua existência.”
“Tomada a questão pelo aspecto normativo, e considerando que as terras de ocupação indígena, ao menos diante da perspectiva legal, eram protegidas pelo ordenamento jurídico e em especial pelas Constituições desde a de 1934, não se justifica normativamente a “teoria do fato indígena”, uma vez que não depreendo da Constituição nenhuma fratura em relação à tutela dos direitos territoriais indígenas, porquanto a simples apropriação dessas terras por parte de particulares, incentivada ou não pelos entes públicos, jamais foi permitida pelos textos constitucionais.”

5 – Repercussão geral

“O juiz que analisa essa espécie de litígio, ainda que se trate de processo com rito abreviado, deverá, primeiramente, considerar os elementos caracterizadores da posse indígena, como colocado no presente voto: a) a demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena; b) a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional; c) a data da promulgação da Constituição de 1988 não constitui marco temporal para a aferição dos direitos possessórios indígenas, sob pena de desconsideração desses direitos enquanto direitos fundamentais, bem como de todo o arcabouço normativo-constitucional da tutela da posse indígena ao longo do tempo; d) não se exige para a demonstração de renitente esbulho a instauração de demanda possessória judicializada à data da Constituição de 1988, ou mesmo de conflito fático persistente em 05 de outubro de 1988; e) o laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições; f) o redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência.”

“Nada obstante, autorizar, à revelia da Constituição, a perda da posse das terras tradicionais por comunidade indígena, significa o progressivo etnocídio de sua cultura, pela dispersão dos índios integrantes daquele grupo, além de lançar essas pessoas em situação de miserabilidade e aculturação, negando-lhes o direito à identidade e à diferença em relação ao modo de vida da sociedade envolvente, expressão maior do pluralismo político assentado pelo artigo 1º do texto constitucional. Não há segurança jurídica maior que cumprir a Constituição.”

Conselho Indígena Mura – CIM – repudia projeto que representa novo genocídio indígena

Conselho Indígena Mura – CIM – repudia projeto que representa novo genocídio indígena

O CONSELHO INDÍGENA MURA – CIM, que há 30 anos atua em defesas dos direitos do Povo Mura do Município de Autazes – Am, em concordância com as lideranças Mura de Autazes e Organizações Mura, repudia mais uma tentativa de violação aos direitos constitucionais dos Povos originários. Em meio a tantos ataques, agora ressuscitaram ȧ PL 490/2007 que propõe a aprovação de um substitutivo ao PL 6818/2013, um dos projetos apensados, no qual insere uma serie de restrições aos direitos de reconhecimento e usufruto das terras indígenas. A PL 490/2007, que está previsto para entrar em discussão na CCJ da Câmara nessa quarta-feira dia (26), é uma grave ameaça aos direitos constitucionais dos Povos indígenas pois transfere a competência do poder executivo de demarcar terras indígenas ao congresso Nacional, de maioria ruralista. A população indígena teme mais uma nova onda de invasões, perdas de territórios conquistados com muita luta e sangue, e maior pressão sobre áreas ainda em processo de demarcação. O CIM é contra a aprovação da PL 490/2007, e repudia qualquer forma de revogação do direito constitucional ȧ liberdade e ao bem viver social do Povo Indígena do estado Amazonas e do Brasil.

Não ao Marco Temporal

acesse nota aqui

Povos indígenas de Alagoas contra Arthur Lira e a mineração de terras

Povos indígenas de Alagoas contra Arthur Lira e a mineração de terras

Os povos indígenas de Alagoas, estado de origem do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, publicam carta repudiando as declarações do parlamentar, que manifestou apoio ao Projeto de Lei 490, que ameaçam a vida dos povos indígenas.

Confira carta na integra:

Nós lideranças indígenas presentes em diversos municípios nos estado alagoanos, vimos através desta, expressar o nosso descontentamento com as declarações do presidente da câmara dos deputados federais. Sr. Arthur césar pereira de lira, do Progressista de Alagoas, que fez declarações a favor da mineração em terras indígenas e ao Projeto de Lei no490, que tramita na casa e está sendo objeto de votação hoje 23 de junho de 2021 na CCJ-Comissão de Constituição e Justiça.

O mesmo se mostrou a favor da opressão feita pela Policia Militar do Distrito Federal contra aos anciões, criança e mulheres que estavam em frente a Câmara dos Deputados, protestando pacificamente, pelo direito a consulta, ampla, previa, informada e de boa-fé, assim como estabelece a Conversão 169 da OIT, onde as comunidades e a sociedade possa ter acesso e debaterem sob projetos que interfiram em suas vidas.

É inadmissível que o parlamentar alagoano ignore o sofrimento das comunidades do baixo são Francisco, zona da mata, agreste e alto sertão alagoano, muitas delas se quer não possui uma escola, ou um palmo de terra para produzir seu alimento e não tem acesso a políticas públicas.

O apoio a este PL no490, e sua aprovação, irá aumentar a desigualdade social, e inviabilizará o processo de demarcação de terra indígenas no brasil, entendemos que a fala do deputado Arthur César Pereira de Lira, não ajuda em nada a minimizar o sofrimento dos demais povos indígenas brasileiro, nem os alagoanos, pois até hoje, nós povos indígenas, não tivemos nossas terras regularizadas como manda a constituição de 1988, não temos a garantia da segurança alimentar, acesso à educação diferenciada como manda a lei, e em meio a pandemia de COVID-19 nem todos os indígenas brasileiros foram vacinados.

O mandato do parlamentar nos causa decepção, pois ataca os povos originários, as minorias, não contribuindo para combater a desigualdade e dívida que o estado brasileiro tem para com os povos indígenas.

Atenciosamente:
Liderança do Povo indigena Koiupanka Liderança do Povo indigena Katokin Liderança do Povo indigena Karuazú Liderança do Povo indigena Kariri xocó Liderança do Povo indigena Karapotó Liderança do Povo indigena Kalankó Liderança do Povo indigena Geripankó Liderança do Povo indigena Tingü-Botó Liderança do Povo indigena Xucuru kariri Liderança do Povo indigena Wassu Kocal

CARTA ABERTA AOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF

CARTA ABERTA AOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF

Foto: Matheus Veloso

Leia a íntegra da carta assinada por mais de 300 pessoas, entre as quais diversos artistas, juristas e acadêmicos.

Assunto: Recurso Extraordinário (RE) nº. 1.017.365

 

Excelentíssimos Ministros do Supremo Tribunal Federal

 

Dirigimo-nos respeitosamente a Vossas Excelências na condição de cidadãs e cidadãos não-indígenas deste território em que se constituiu o Estado Brasileiro e envergonhados com a forma com que, há séculos, tratamos os povos originários e os assuntos que são de seu interesse e direito.

Os indígenas foram tratados pela lei brasileira como indivíduos relativamente incapazes até a Constituição de 1988. É verdade que esse tratamento poderia se justificar como uma proteção do Estado-guardião contra práticas enganosas e fraudulentas a sujeitos sem a plena compreensão dos parâmetros sociais da sociedade dominante. Entretanto, a história de expulsão, transferência forçada e tomada de suas terras pelo Estado ou por particulares sob aquiescência ou conivência do Estado evidenciam os efeitos deletérios de uma tutela estatal desviada de sua finalidade protetiva.

Segundo o último Censo do IBGE (2010), 42,3% dos indígenas brasileiros vivem fora de terras indígenas e quase metade deles vivem nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste do país. Essas regiões foram as primeiras e as mais afetadas pelas práticas de expulsão e ocupação não-indígena das terras dos povos originários. Embora boa parte da sociedade brasileira, por simples desinformação, pense que a tomada e a ocupação das terras dos indígenas tenha ocorrido nos primeiros anos da chegada dos europeus a este território, isso não é verdade.

Foi sobretudo com as políticas de expansão para o Oeste iniciadas sob Getúlio Vargas e aprofundadas na Ditadura Militar, com grandes obras de infraestrutura e abertura de frentes agropecuárias, que os indígenas sentiram com mais vigor e violência o significado do avanço da “civilização” sobre suas terras e seus recursos. São deste período, os massacres dos índios Panará, dos Waimiri-Atroari e dos Krenak, para mencionar apenas alguns. É também deste período, a formação das reservas do SPI, hoje superlotadas e caóticas, para onde foram removidos, sem esclarecimento ou prévio consentimento, os Terena e os Guarani e Kaiowá, do Mato Grosso do Sul. Da mesma forma, os Guarani Mbyá foram expulsos de suas terras com a ocupação recente do oeste do Paraná e a construção da usina hidrelétrica de Itaipu.

Para boa parte dos povos indígenas brasileiros, a perda dos territórios tradicionais consolidou-se na metade do século XX. Considerados incapazes e tutelados, o Estado Brasileiro jamais negociou ou lhes deu possibilidade concreta de se opor às remoções. Ao contrário dos povos nativos norte-americanos com quem a Coroa Britânica e depois o governo dos EUA firmaram tratados e contra quem, desde os primórdios da Suprema Corte dos EUA, os nativos litigam, no Brasil só muito recentemente os tribunais concederam aos povos indígenas o direito de serem ouvidos quando o assunto é direito à terra.

E nisto este Supremo Tribunal tem desempenhado papel histórico. A decisão de 2020 tomada na ADPF no. 709 no sentido de que a “Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB possui legitimidade ativa para propor ação direta perante o Supremo Tribunal Federal”  é um marco para o reconhecimento da capacidade processual dos indígenas, nos termos do art. 232, da Constituição de 1988. A decisão pioneira de 2016, de lavra do Eminente Ministro Fachin, na ACO 1100, que admitiu a participação, como litisconsorte passivo necessário da comunidade indígena dos povos Xokleng e Guarani em processo que discute anulação de ato demarcatório da Terra Indígena Ibirama Lãklãno, é outra medida que corrige o erro histórico da ausência de participação dos maiores interessados no desfecho do caso. Trata-se de uma mudança de entendimento importante, mas muitíssimo recente na jurisprudência brasileira.

No entanto, a perda dos territórios jamais foi esquecida ou aceita pelos indígenas. A conquista a duras penas dos direitos elencados nos artigos 231 e 232 da Constituição foi a oportunidade para as comunidades indígenas finalmente reivindicarem junto ao Estado o reconhecimento e a demarcação das terras de onde haviam sido, há não muito tempo, expulsos e desapropriados. Como consequência, a partir dos anos 90 do século XX, inicia-se no Brasil um amplo processo de demarcação de terras. Conforme a FUNAI, há 435 terras indígenas definitivamente regularizadas no país, sendo que mais de 98% da área demarcada está na Amazônia.

A realidade é muito diversa no resto do país. Embora muitos processos de demarcação tenham sido iniciados, há em torno de 231 processos demarcatórios paralisados e 536 pedidos indígenas de constituição de grupos de trabalho para identificação de outras terras tradicionais. A paralisação de grande parte dos processos de demarcação na FUNAI decorre de ações judiciais propostas por ocupantes não-indígenas (fazendeiros ou poder público estadual), visando à anulação dos atos administrativos que declaravam a tradicionalidade da terra indígena por eles atualmente ocupadas para fins comerciais ou não.

Tomando como base o argumento do “marco temporal da ocupação” invocado por este Tribunal, no julgamento da Petição 3.388, para reforçar a legitimidade da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, Juízes Federais e Tribunais Regionais Federais têm, a contrario sensu e indiscriminadamente, anulado os atos de demarcação de terras indígenas. Fundamentam suas decisões na ausência de direito à demarcação no caso de os índios não estarem na posse da terra na data da promulgação da Constituição de 1988. Esta Suprema Corte criou uma exceção à regra: “a reocupação não ter ocorrido por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios”. Porém, em dois processos em que anulou demarcações de terras no Estado do Mato Grosso do Sul, a Segunda Turma desta Corte exigiu prova de que o “conflito possessório iniciado no passado tenha persistido até o marco temporal de 05 de outubro de 1988, materializado por circunstâncias de fato e controvérsia possessória judicializada”. 

Excelências, como exigir prova de resistência ao esbulho renitente a pessoas e comunidades vulneráveis, muitas vezes transferidas à revelia para outros espaços, a quem o Estado tutelava e não reconhecia capacidade civil? Exigir provas de sujeitos que sequer foram citados ou admitidos no respectivo processo judicial? Que sequer, na maioria das vezes, sabia da existência do trâmite de um processo dessa natureza?

Enquanto esses processos se desenrolam lentamente na justiça brasileira, conflitos e violências contra comunidades indígenas se multiplicam país afora. Cansados da indisposição do Estado em garantir-lhes o retorno às suas terras, comunidades indígenas têm ocupado as terras identificadas ou reivindicadas à FUNAI e sofrido intensos ataques armados de milícias rurais, que resultam em mortes, espancamentos, tortura e toda sorte de atos desumanos e humilhantes caracterizados como verdadeiros crimes contra humanidade. Decisões judiciais anulatórias não farão cessar os conflitos, ao contrário os acirrarão. Vulneráveis e sem acesso à terra, essas comunidades serão simplesmente exterminadas, se não pelas armas, pela absoluta ausência de base territorial para que as próximas gerações desfrutem de um espaço para manter sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.

Por conta desses fatos, é que esta Corte encontra-se nestes dias diante do principal caso indígena de sua história: o RE No 1.017.365/SC, ao qual, acertadamente, reconheceu repercussão geral. Este processo trata justamente da espoliação de terras de comunidades indígenas que, em 1988, não estavam na posse diante do esbulho de não-índios e da impossibilidade de resistir.

O tratamento que a Justiça Brasileira tem dispensado às comunidades indígenas, aplicando a chamada “tese do marco temporal” para anular demarcações de terras, é sem dúvida um dos exemplos mais cristalinos de injustiça que se pode oferecer a alunos de um curso de teoria da justiça. Não há ângulo sob o qual se olhe e se encontre alguma sombra de justiça e legalidade.

Este Supremo Tribunal tem em suas mãos a oportunidade de corrigir esse erro histórico e, finalmente, garantir a justiça que a Constituição determinou que se fizesse aos povos originários.

Em decisão de 2020, no caso McGirt v. Oklahoma, a Suprema Corte dos EUA entendeu que a terra reservada aos indígenas Muscogee Creek, no que hoje é o Estado de Oklahoma, por meio dos Tratados de 1832 e 1866, não foi desconstituída pelo posterior loteamento e transferência de partes da terra para não-índios em 1901, porque o Congresso não emitiu nenhuma lei determinando a extinção da reserva.  Com isso, considerável parte leste do Estado de Oklahoma, incluindo a cidade de Tulsa, foi reconhecida pela Suprema Corte como terra indígena. Juiz Gorsuch, nomeado pelo então Presidente Donald Trump e redator do voto condutor, destacou que nenhuma interpretação diferente desta poderia ser admitida e, caso fosse,  a Suprema Corte estaria diante da lei dos fortes, não da lei do Estado de Direito: “[T]hat would be the rule of the strong, not the rule of law”.

Esperamos que esta Corte faça prevalecer o Estado de Direito. Como brasileiros não-indígenas e constrangidos com a indignidade do tratamento dispensado aos povos nativos, pugnamos a este Tribunal que não faça triunfar a concepção de justiça de Trasímaco refutada por Sócrates: “a justiça serve ao interesse do mais forte e o que é injusto é útil e vantajoso para ele.” (PLATÃO, A República, 334c).

23 de junho de 2021.

 

Acesse o documento na íntegra

A carta pública segue aberta a novas assinaturas de pessoas e instituições até o dia 29 de junho. Clique aqui para assinar a carta em defesa dos direitos constitucionais dos povos indígenas.