Por Sonia Guajajara, Angela Kaxuyana e Beto Marubo, publicado em O Globo

No dia 3 de agosto o Supremo Tribunal Federal (STF) vai julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolou contra o governo federal. Estamos à mercê do novo coronavírus e o texto pode ser resumido em uma frase: não nos deixem morrer. É bem provável que boa parte da nobreza europeia do século XVI não soubesse que além do pau-brasil, o sangue indígena também tingia de vermelho suas roupas; acreditamos que hoje muita gente igualmente não saiba o que se passa longe de seus olhos. Mesmo que a voz dos povos tradicionais tenha ganhado volume nos últimos anos e conquistado todos os corações e mentes que vem alcançando – simplesmente porque nossa causa é justa – ainda é necessário reafirmar que se trata, literalmente, de uma questão de vida ou morte. E não somente de indivíduos, mas de povos inteiros, com culturas próprias, únicas, também.

Sentimo-nos atados a uma bomba-relógio. O ministro Luís Roberto Barroso acatou e se tornou relator de nossa APDF em 8 de julho, quando também determinou que o Executivo tomasse imediatamente cinco medidas para nos proteger. Naquele dia, o relatório “Covid-19 e Povos Indígenas”, da Apib, registrava 455 mortos e 12.777 infectados; em 29 de julho, os números já haviam pulado para 592 e 20.444. Entre esses 21 dias tivemos apenas duas reuniões com representantes do Executivo – e o fato de Barroso ter designado um observador externo para acompanhar a segunda diz muito sobre o que aconteceu na primeira –, nenhuma medida concreta foi tomada, 137 de nós morreram, 7.667 caíram doentes e hoje há 143 povos atingidos, mais da metade do total.

Nossa maior preocupação, no momento, são os grupos isolados. As estatísticas vêm mostrando que nós, indígenas, somos mais vulneráveis ao novo coronavírus; mas por não terem memória imunológica para resistir sequer a uma simples gripe, esses povoss podem ser exterminados caso a doença se espalhe por suas aldeias. Temos feito a nossa parte, cumprindo as regras do distanciamento social – que conhecemos tão bem, pois enfrentamos epidemias estrangeiras há mais de 500 anos. Mas invasores continuam tomando nossas terras, levando a pandemia até elas.

Barroso deu um prazo de dez dias para que fosse elaborado um plano para instalação de barreiras sanitárias em terras indígenas; passados dez dias depois de este prazo se esgotar, foi registrado o primeiro caso de Covid-19 em um indígena Kanamari. Ele mora numa aldeia na Terra Indígena Vale do Javari, que fica a apenas 15 quilômetros de onde vive um grupo não contatado. Este território concentra o maior número de povos isolados do mundo. Passados quatro meses desde que os primeiros indígenas foram infectados na Amazônia, o governo não apresentou nenhum plano objetivo dirigido à região e a esses grupos especialmente indefesos. Nós, indígenas, conquistamos os direitos à cidadania plena e às nossas terras ancestrais somente com a promulgação da Constituição 1988. Já o direito à vida é originário em todo ser humano e transcende o tempo.