A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), e o Opi – Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recente Contato vêm a público manifestar o mais profundo pesar pelo falecimento do grande indigenista Rieli Franciscato, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Uru Eu Wau Wau, da Fundação Nacional do Índio (Funai), no estado de Rondônia.

Segundo informações veiculadas na mídia, nesta quarta-feira (9), Rieli teria sido flechado no peito, pelo grupo de índios conhecido como “isolados do Cautário”, ou Yraparariquara, (como são conhecidos pelos indígenas Amondawa, que compartilham essa terra com eles) durante uma vistoria para verificação de informações sobre o avistamento de índios isolados em uma propriedade rural, próxima aos limites da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau. Desde o último mês de junho, quando os índios isolados apareceram fora dos limites da terra indígena, Rieli intensificou sua atuação para evitar um conflito entre esses indígenas isolados e a população não indígena da zona rural do município de Seringueiras, em Rondônia.

O ocorrido surpreende a todos, visto que o grupo isolado em questão, o qual Rieli conhecia há mais de duas décadas e trabalhava diretamente nos últimos dez anos, nunca apresentou esse tipo de comportamento. Assim, é preciso considerar, imediatamente, que algo alterou o comportamento dessa população a ponto de impeli-la a reagir com violência.

Em 2019, a Terra Indígena Uru Eu Wau Wau ocupou o ranking das 10 mais desmatadas do Brasil, com pressões constantes em todos os seus limites. A parte sul, que era protegida pela equipe coordenada por Rieli, é a porção mais preservada e protegida, em função da sua dedicação em proteger esses territórios com ocupação comprovada de povos isolados. Sem sombra de dúvida, esse povo não sabia que estava atacando um aliado.

Os “isolados do Cautário”, ou Yraparariquara, são sobreviventes dos inúmeros massacres ocorridos em Rondônia desde os anos 1980, quando o governo militar encampou um processo de colonização na região com a construção de estradas, forçando o contato que acarretou o extermínio de inúmeros povos indígenas da região. Apesar desse histórico, sempre tiveram um comportamento pacífico, sem registro de situações de violência.

Não à toa a Articulação dos povos indígenas do Brasil incluiu essa Terra indígena em sua “Prioridade 1” para a instalação de Barreiras Sanitárias na ADPF 709, impetrada no STF, ocasião em que também fora pedida a extrusão dessa terra, infestada de invasores não indígenas. A cautelar, embora já concedida há mais de dois meses, nada garantiu de efetivo nessa terra indígena e, agora, vemos nosso amigo, professor e grande indigenista partir. A extrusão, por sua vez, não foi concedida pelo ministro relator. Apenas o Ministro Fachin posicionou-se a favor da extrusão no Referendo da cautelar, os demais acharam inoportuno. Assim, seguimos esperando que isso possa ser considerado pelos demais ministros e que não percamos mais vidas indígenas nem de indigenistas.

A precoce partida de um dos mais experientes sertanistas da atualidade representa uma perda irreparável para o indigenismo brasileiro, como também para todos aqueles que militam em prol dos direitos humanos e da conservação da floresta Amazônica. Sua morte revela ainda a urgente necessidade de implementação de medidas efetivas de proteção dessas populações e de seus territórios cada vez mais invadidos por posseiros, madeireiros, em uma das áreas mais vulneráveis no país.

Rieli iniciou sua dedicação aos povos indígenas na década de 1980 e revolucionou, com outros indigenistas, a política de proteção aos povos isolados, ao elaborar metodologia inédita garantista da autonomia desses povos de assim permanecerem, conforme suas expressões de vontade, de vida e de bem-estar. Contribuiu para a demarcação de ao menos três terras indígenas com a presença de povos indígenas isolados, além de ter feito inúmeras expedições para monitorar e localizar esses povos em outras regiões da Amazônia, como a Terra Indígena Ituna-Itatá, hoje considerada a mais desmatada do Brasil.

Nos últimos anos, Rieli vinha denunciando e cobrando melhorias nas condições de atuação das Frentes de Proteção Etnoambiental, que são unidades descentralizadas da Funai. Quem o conhece, sabe que Rieli profetizava grandes tragédias, tal como a que com ele aconteceu, devido ao avanço do desmatamento da região e a paulatina destruição do órgão indigenista do Estado, atualmente nas mãos de ruralistas retrógrados e missionários extremistas.
Assim, pelos motivos expostos, exigimos uma investigação severa dos fatos e reforçamos a necessidade imediata da retirada de invasores, posseiros e grileiros da Terra Indígena Uru Eu Wau Wau. Rogamos ao STF que não aguarde mais tragédias para elaborar grandes planos de trabalho. Os invasores estão pressionando os indígenas dia após dia!

Além disso, alertamos para a necessidade urgente para a estruturação da Frente de Proteção Etnoambiental Uru Eu Wau Wau e a permanente vigilância dos territórios dos povos isolados da região. A morte de Rieli não pode deixar um flanco aberto para os invasores que ele sempre combateu.

Juntos, povos indígenas e indigenistas, seguiremos a luta de Rieli! Que seu legado continue inspirando esta e futuras gerações daqueles que atuam em defesa dos povos indígenas isolados e de recente contato.

Brasil, 10 de setembro de 2020.

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB),
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)
Opi – Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recente Contato