Nota técnica preliminar envolvendo aspectos etnohistóricos e socioambientais da Retomada Indígena Xokleng Konglui na Floresta Nacional São Francisco de Paula/RS
por Rafael Frizzo

A presente nota técnica contém informações preliminares de natureza entohistórica e socioambiental relacionadas ao movimento de retomada ancestral do Povo Xokleng Konglui sobre porção territorial em área da Floresta Nacional de São Francisco de Paula, Unidade de Conservação de Uso Sustentável, considerada a primeira Unidade de Conservação (UC) no Estado do Rio Grande do Sul.

Partindo do presente etnográfico, este documento sintetiza referências empíricas colhidas junto à comunidade indígena Xokleng e o seu entendimento sobre a FLONA como território de reconhecimento étnico tradicional; movimento, este, não isolado a outras manifestações originárias no sul do Brasil, frente à paralisação dos processos demarcatórios no Brasil.

Considerando o despacho da decisão que concedeu a expedição de reintegração de posse, no dia 24 de dezembro, contrária à permanência da comunidade originária na “área de infraestrutura”, conforme zoneamento da referida UC, fazem-se necessárias, portanto, a apresentação de alguns subsídios empíricos envolvendo considerações da comunidade sobre a presença imemorial do Povo Xokleng no Estado do Rio Grande do Sul, mais especificamente, na área da FLONA; sobretudo, considerando o velamento histórico em que seus antepassados foram condicionados no processo de descimento, esbulho e genocídio sobre seus corpos e territórios a partir do empreendimento de colonização e expansão das frentes madeireiras entre as terras baixas dos vales litorâneos e os campos de cima da serra, ao longo dos séculos XIX e XX.

No entanto, está nota não pretende ser exaustiva. Sob uma perspectiva socioambiental do Bem Viver, propõem-se a enfatizar o necessário diálogo entre os órgãos competentes para o reconhecimento interinstitucional da gestão de conflitos sob o desafio das sobreposições entre unidades de conservação e territórios indígenas, avançando sugerir para o regime de uma “dupla afetação” como “gestão compartilhada” entre as instituições competentes, visando à compatibilização de direitos fundamentais e humanos do caso concreto, considerando elementos, como:

  • O extenso conhecimento publicado em literatura especializada sobre o passado arqueológico e histórico e o presente etnográfico da Presença Xokleng como Povo Indígena Macro Jê Meridional nos Campos de Cima da Serra no sul do Brasil: a citarem-se a arqueologia sobre “os buracos de bugres” em José Alberione dos Reis, a história dos ancestrais Botocutos Xokleng em Lauro Pereira Cunha, os trabalhos antropológicos da etnografia dos Xokleng Laklanõ em Silvio Coelho dos Santos, como os mais recentes estudos de elementos fundamentis linguísticos realizados pelo antropólogo indígena Nanblá Gakran, da etnia Xokleng;
  • O registro de 45 Sítios Arqueológicos no Cadastro Nacional de Sítio Arqueológicos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (PHAN) para a região do Município de Francisco de Paula, incluindo registros na área da FLONA com remanescentes dos Povos Indígenas Macro Jê Meridional;
  • O reconhecimento de processos demarcatórios de Terras Indígenas da FUNAI pelo Estado do Rio Grande do Sul, como consta no Atlas Socioeconômico (2020), em “processo de estudo”, relacionados à Etnia Xokleng, no Município de São Francisco de Paula, e condizente às terras Zagaua e Zág;
  • A ampla trajetória jurídica de repercussão geral no processo da Terra Indígena Ibirama no Estado de Santa Catarina, a qual tramita no Supremo Tribunal Federal (ACO 1100) sob a relatoria do Excelentíssimo do Ministro Dr. Edson Fachin, aguardando julgamento;
  • O contexto de concessões de parques e florestas sem ter sido observada a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no tocante à necessidade de proceder-se com a consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas e tradicionais em todas as fases do processo, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), como modelo do Programa Nacional de Desestatização (PND) das Unidades de Conservação Florestais, incluindo à Floresta Nacional de Canela e a Floresta Nacional de São Francisco de Paula, conforme a Resolução No 113, de 19 de Fevereiro de 2020 e o Decreto No 10.381, de 28 de Maio de 2020;
  • O instrumento de gestão que 14, DE SETEMBRO DE 2020),
    DESPACHO No 11, DE Floresta Nacional de São Francisco de Paula aprovou o Plano de Uso Público da sem consulta e reconhecimento dos aspectos Socioculturais dos Povos Indígenas, especialmente da etnia Xokleng, considerando que a demanda foi registrada formalmente desde o ano de 2011 perante o Ministério Público Federal, conforme informações dispostas no Inquérito Civil n. 1.29.002.000553/2020-21;
  • Ademais, que, o referido Inquérito Civil n. 1.29.002.000553/2020-21, instaurado pela Procuradoria da República no Município de Caxias do Sul, para apuração da regularidade e andamento dos estudos realizados pela FUNAI relativos à reivindicação do Povo Indígena Xokleng sobre área da Floresta Nacional de São Francisco de Paula, atendendo, em parte, os questionamentos sobre a falta de prosseguimento de competência da referida fundação com a constituição de Grupo de Trabalho (GT), conforme pedidos encaminhados desde os anos 2015 e 2019, pela Sra. Kullung Teie Xokleng, ambos reconhecidos por servidores da FUNAI, em reunião virtual recente (gravada e com disponibilização de ata) com as partes envolvidas no Ministério Público Federal de Caxias do Sul/RS, no dia 18 de dezembro de 2020.
  • O “I Seminário sobre Unidades de Conservação e Conflitos
    Etnoambientais”, realizado no período de 8 a 10 de dezembro de 2010, no Hotel São Sebastião, em Florianópolis (SC), organizado pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Sociobiodiversidade (CNPT-SC) e a Coordenação Regional 9 (CR9), com o apoio da Diretoria de Extrativismo/Gerência Indígena do MMA e da Gerência de Gestão Socioambiental/Coordenação de Conflitos, do ICMBio, para discussão e a elaboração de estratégias a fim de solucionar os conflitos etnoambientais entre UC e comunidades indígenas, onde participaram representantes de UCs envolvidas em conflitos com comunidades indígenas, direta e indiretamente, incluindo gestores da Floresta Nacional de São Francisco de Paula;
  • O documento de “Qualificação de Reivindicação” encaminhada pelos Xokleng para a identificação como terra tradicional junto à Coordenação Regional do Litoral Sul da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), registrando-se parte do histórico da ocupação Xokleng na porção nordeste do Estado do Rio Grande do Sul, redigida e assinada pelo indigenista especializado Ricardo de Campos Lening (antropólogo/biólogo) e a agente indigenista Fernanda Cerqueira (geógrafa), junto ao Serviço de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (SEGATI);

1.1 O Bem Viver como alternativa outra para conceber sobreposições

Os movimentos críticos socioambientais propostos pelos horizontes do Bem Viver apontam como alternativa possível o caminho da conservação da vida sem a separação das culturas que dão sentido concreto a defesa dos territórios (Acosta, 2015; Solón, 2016; Escobar, 2016). A este posicionamento ecológico e político de efeitos profundos sobre a notável presença de Povos indígenas e comunidades tradicionais nas regiões rurais e áreas urbanas, conexas por sistemas de proteção da natureza, Victor M. Toledo (2014), chama a atenção para o olhar “polifônico da bioculturalidade” da América Latina:

[…] el largo proceso de humanización de la naturaleza, producto de su historia social y ecológica, ha hecho que cada especie de planta, grupo de animales, tipo de suelo o de paisaje, de montaña o manantial, casi siempre conlleve un correspondiente cultural: una expresión lingüística, una categoría de conocimiento, uma historia o una leyenda, un significado mítico o religioso, un uso práctico, o una vivencia individual o colectiva. (TOLEDO, 2014. p.16).

Nas palavras do coordenador da Rede de Etnoecologia e Patrimônio Biocultural do México, está em jogo o paradigma entre a conservação da biodiversidade inserida nos sistemas nacionais de áreas protegidas e seus consequentes efeitos sobre a diversidade biocultural dos sistemas de conhecimentos dos Povos indígenas e comunidades tradicionais. Para outro “paradigma da conservação”, em defesa da bioculturalidade, Toledo aponta necessária originalidade de enfrentamento e revisão das concepções que impuseram a países essencialmente polifónicos – como o caso do Brasil – monólogos convencionais provenientes da tradição científica ocidental sobre experiências vividas e essencialmente conservadas comunitariamente (TOLEDO, 2014, p.17). Sugere, portanto, o autor, que abordagens epistemológicas de análise sejam respostas para ações de princípios políticos nos sistemas nacionais e internacionais de áreas protegidas, oportunizando alternativas críticas a temas tão “controversos” e cada vez mais sujeitos a “opções centrais” entre os “dilemas” do mundo contemporâneo em suas dinâmicas sociais e de transformações (TOLEDO, 2014, p. 18).

Los dilemas entre la globalización y la autogestión local y regional, entre los paradigmas científicos y las lecciones históricas y cuturales de los pueblos originarios, entre la investigación y planeación unidirecional o con la participación social, y entre los paradigmas de la civilización industrial y los paradigmas alternativos. Se trata, en fin, de pasar de los monólogos derivados de una visión cientificista y tecnocrática a la polifonía de una realidad esencialmente diversa. (TOLEDO, 2014, p.18).

Autores como Frederick Turner (1990) e Antônio Carlos Diegues (1994) demonstram quanto o “espírito ocidental contra a natureza” e a invenção de “mitos sobre naturezas intocadas” influenciaram na criação de áreas naturais protegidas, idealizadas ao longo do processo histórico de invenção da modernidade. Reflexões outras de Diegues (2000) sobre a perspectiva da Etnoconservação remetem como os papéis da diversidade social, cultural e biológica, a partir de correntes preservacionistas e conservacionistas, promoveram evidente poder nas relações simbolicamente constituídas em detrimentos dos povos tradicionais e indígenas.

A criação e implantação de Unidades de Conservação (UCs) como espaços de proteção ao meio ambiente foram estabelecidas pela Lei n. 9.985/2000 do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), como espaços territoriais de características naturais relevantes, legalmente constituídas pelo poder público, entre limites definidos e com objetivos específicos de conservação da biodiversidade; sendo a principal política de conservação da diversidade biológica em território nacional, indo ao encontro dos anseios promovidos pela Convenção da Diversidade Biológica (CDB), um dos mais importantes Tratados internacionais pactuados durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente no Rio de Janeiro (ECO-92).

Acesse a nota técnica completa aqui