Relator de ação no STF que cobra do governo um plano de combate à Covid-19 em aldeias, ministro lamenta ‘dificuldade em sensibilizar atores governamentais’

Por Daniel Biasetto, para O Globo

RIO – Relator de processos no Supremo Tribunal Federal (STF) ligados às questões indígena, climática e ambiental, o ministro Luís Roberto Barroso entende que estas causas não podem ficar dissociadas ao defender um novo modelo de desenvolvimento para a Floresta Amazônica, tema sobre o qual tem se debruçado há um ano e que deve ocupar parte da agenda da Corte em 2021.

Entre os casos mais polêmicos está a ação que defende que povos indígenas só possam reivindicar terras onde já estavam em 5 de outubro de 1988, quando a Constituição foi promulgada. Esse julgamento terá repercussão geral, ou seja, a decisão deverá ser aplicada por juízes de todo o Brasil. A respeito do assunto, Barroso é taxativo.

— Não tenho dúvida de que o direito dos povos indígenas à terra é cláusula pétrea — afirmou o ministro em entrevista ao GLOBO por email, a primeira sobre a ação que cobra do governo um plano de combate à Covid-19 nas aldeias.

Covid-19 nas aldeias
Ao homologar parcialmente a quarta versão do plano do governo, no mês passado, Barroso afirmou em sua decisão que via um quadro de “profunda desarticulação” por parte dos órgãos responsáveis na elaboração do documento. Questionado sobre a lentidão nas ações do Executivo, que levou nove meses para entregar um planejamento aceitável, Barroso avaliou que se trata de um problema crônico e que falta sensibilidade a alguns “atores governamentais” sobre a importância devida à questão indígena:

— Encontramos uma estrutura de atendimento aos povos indígenas muito depreciada, que é produto de problemas de longa data e de sucessivos governos. A essa situação, que já era grave, se somam múltiplos fatores, como a dificuldade em sensibilizar alguns atores governamentais para a importância da questão indígena; a complexidade técnica de um plano dessa natureza; e a gravidade da pandemia, que levou a uma grande sobrecarga de todas as estruturas governamentais, com agravamento do quadro — disse o ministro.

Apesar das críticas, Barroso diz enxergar avanços e descarta a necessidade de uma ação de responsabilização contra o Estado, como defende a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), autora da ação.

— Minha preocupação é salvar vidas. Esse é o objeto da ação. Como juiz, tenho que me limitar a ele. Não acho positivo falar em responsabilização neste momento. As decisões estão sendo progressivamente cumpridas — afirma.

Entre os avanços citados por ele estão barreiras sanitárias em favor de povos isolados e de recente contato; instalação da Sala de Situação para o acompanhamento da pandemia com representantes indígenas; e extensão, ao menos parcial, do serviço especial de saúde aos povos que vivem em terras indígenas não homologadas.

Na decisão que homologou o plano do governo, Barroso tocou num dos temas mais delicados da ação que corre no Supremo: a retirada de invasores de sete terras indígenas, o que requer planejamento e uso das forças policiais. Os indígenas se queixam da presença maciça de garimpeiros, madeireiros e grileiros nessas áreas. Barroso determinou que o Ministério da Justiça e a Polícia Federal (PF) apresentassem um plano de isolamento de invasores e cobrou também a colaboração do Ibama, da Funai e da Agência Nacional de Mineração (ANM).

— O foco de um plano desse tipo é conter invasões e evitar o contato dos invasores com as comunidades locais. Um novo Plano de Isolamento acaba de ser apresentado e será examinado. A desintrusão é uma questão que está no meu “radar”, mas sem desconsiderar as complexidades da pandemia. Desintrusão, com envio de tropas, em meio à pandemia, aumentaria muito o risco de contaminação — analisa Barroso.

Consulta às comunidades
Marcada por uma escalada de conflitos nos últimos dias, a Terra Indígena Munduruku, no sudoeste do Pará, é uma das áreas em que os invasores serão isolados. Por conta da decisão do STF, Jacareacanga, a 1,8 mil quilômetros da capital Belém, vive um clima tenso com depredação de uma associação de indígenas mulheres e ameaças aos indígenas que não compactuam com a prática da extração ilegal de ouro.

Na quinta-feira, O GLOBO revelou que garimpeiros aliciaram indígenas para viajarem em dois ônibus para Brasília com o objetivo de pressionar o Supremo e o Congresso contra a retirada dos invasores e a favor do projeto de lei 191/20, que libera a exploração de minérios em terras indígenas, encaminhado pelo Executivo à Camara dos Deputados.

Perguntado sobre o fato de o Executivo incentivar a exploração de minérios das terras indígenas, Barroso recorre ao artigo da Constituição que versa sobre os direitos dos povos indígenas assegurando que as comunidades afetadas devem ser ouvidas antes de qualquer uso da terra.

— O art. 231 prevê que “o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”. Tratados internacionais de que o Brasil é parte também disciplinam a exploração de empreendimentos em terras indígenas e questões atinentes à preservação ambiental. A minha preocupação, como juiz, é de que – o que quer que venha a ser decidido – seja compatível com tais normas — defende o ministro.

Dia do Fogo
Diversas entidades indígenas acusam o governo federal de apoiar e incentivar não só o garimpo, mas também a ação de grileiros e desmatadores. Afirmam ainda que os criminosos se valem do discurso oficial para realizar seus ilícitos. Perguntado se reconhece nas ações do governo algum traço de estímulo a essas práticas e se, na sua opinão, as queimadas realizadas no Dia do Fogo em diversas regiões do país têm a ver com isso, Barroso foi cauteloso, mas não se furtou de fazer um conexão entre os atos.

— Evito emitir juízos políticos, assim como manifestar convicção sobre eventos que ainda não tive a oportunidade de examinar e sobre os quais posso vir a ter que decidir. De resto, me parece que o número de quilômetros quadrados de floresta desmatada e/ou queimada nos últimos anos fala por si.

Barroso não quis comentar sobre a lei aprovada pelo Congresso (14.021) que libera a presença de missionários em terras com registro de povos isolados em plena pandemia.

— A questão é objeto de ação sob a minha relatoria e está sendo examinada. Evito antecipar entendimentos — diz.

O ministro chama atenção para “urgência” que demanda a Amazônia, crucial diz, não só para o Brasil, mas também para toda a humanidade.

— Precisamos tratar com urgência da Amazônia. O Brasil pode prestar um grande serviço à humanidade e a si próprio propondo um novo modelo de desenvolvimento que se baseie na bioeconomia da floresta e na geração de produtos de alto valor agregado, com base em sua enorme biodiversidade. É uma grande oportunidade que não podemos desperdiçar de produção de novos medicamentos, cosméticos, produtos e patentes, que permitiriam o desenvolvimento da região, a melhoria da vida das pessoas, mantendo a floresta preservada. Precisamos enfrentar os crimes ambientais, proteger as áreas indígenas e criar uma bioeconomia da floresta — afirma Barroso.

Artigo originalmente publicado em O Globo no dia 19.04.2021