Crédito da foto: Thyara Pataxó/Etnomída

POR RENATO SANTANA, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO – CIMI

A decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) de paralisar todas as políticas públicas destinadas às aldeias da Terra Indígena Ponta Grande, localizada no município de Porto Seguro (BA), foi reclamada pelo povo Pataxó, representado pela assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).

No dia 03 de maio a Reclamação Constitucional, ingressa com caráter de urgência, foi distribuída ao ministro Kassio Nunes Marques. Nela os indígenas afirmam que a decisão do TRF-1 contraria a Suprema Corte, que suspendeu quaisquer ações de reintegração de posse enquanto durar a pandemia. A decisão do ministro Edson Fachin ocorreu no início de maio de 2020 como apêndice do processo de Recurso Extraordinário 1.017.365/SC.

Ocorre que o desembargador Carlos Brandão, ao paralisar a execução de políticas públicas na Terra Indígena, proferiu sua decisão nos autos de uma ação possessória de reintegração de posse de 2006. Ou seja, seu teor e tramitação violam a autoridade de julgado pelo STF e desobedecem uma decisão em vigor até o término da pandemia ou com o julgamento do Recurso Extraordinário.

“Esperamos que o ministro Kassio Nunes Marques dê uma decisão que retome, o mais rápido possível, as obras e políticas públicas nas nossas aldeias. Não podemos ficar sem água em plena pandemia. Se pra afastar a covid precisamos cuidar da higiene, como fazemos isso sem água? Sem contar que o próprio STF diz que não pode ter esse tipo de ação contra o nosso povo”, diz o cacique Roberto Pataxó.

“Não deveria haver tramitação porque a decisão do ministro Fachin a impede. Pedimos, portanto, que a decisão seja cassada por ter sido proferida enquanto a suspensão era para acontecer”, diz a assessora jurídica do Cimi

A defesa dos Pataxó solicita, na Reclamação Constitucional, que os efeitos da decisão sejam suspensos em caráter liminar e que acolhida a presente reclamação, com a confirmação da medida liminar, o TRF-1 decida conforme o disposto na decisão do ministro Fachin atrelada ao Recurso Extraordinário 1.017.365/SC.

“Não deveria haver tramitação porque a decisão do ministro Fachin a impede. Pedimos, portanto, que a decisão seja cassada por ter sido proferida enquanto a suspensão era para acontecer e que seja determinada a suspensão do processo, o que não aconteceu até hoje mesmo com a decisão do Fachin”, explica a assessora jurídica do Cimi, Lethicia Reis de Guimarães.

Mulheres na aldeia Novos Guerreiros, Terra Indígena Ponta Grande: mobilização envolve todas as cinco aldeias. Crédito da foto: Thyara Pataxó/Etnomídia

Autoria da ação contra os Pataxó

A paralisação das políticas públicas foi requerida no âmbito da ação possessória pela autora, a empresa Goés Cohabita Administração, Consultoria e Planejamento LTDA. A empresa, com capital acima dos 23 milhões de reais, é liderada por Joaci Fonseca de Góes, que reivindica a posse da “Fazenda Ponta Grande”, onde estão localizadas as aldeias Pataxó.

Conforme nota da Etnomídia Pataxó, o empresário Joaci Góes mantém uma imagem de intelectual, tendo presidido a Academia Baiana de Letras, comprometido com a educação e outras questões sociais, além de ter sido deputado federal e um dos principais dirigentes do jornal Tribuna da Bahia.

No entanto, mesmo atrelado a atividades avessas a uma postura ávida por acúmulo de capital e especulação imobiliária, a ação da Goés Cohabita fez com que obras relacionadas à distribuição de água e energia elétrica fossem paralisadas deixando cerca de duas mil famílias Pataxó sem acesso a necessidades básicas como saneamento, água potável e iluminação de vias e residências.

“Nos faz sentir que somos vistos como animais, sem direito a nada, sem direito a um chão, sem direito ao nosso território, sem direito a uma casa, sem direito à água potável e à luz elétrica”, trecho da carta dos caciques

“Prejudica a gente na demarcação e nos projetos sociais das comunidades indígenas. Somos cinco aldeias e essas aldeias precisam dos projetos sociais. Através dessa liminar, ficamos impossibilitados de receber esses projetos municipais, estaduais e federais”, diz o cacique Roberto Pataxó. Ele frisa que a ocupação tradicional é atestada por estudos antropológicos e históricos.

Em carta endereçada às autoridades públicas (acesse pelos links abaixo), os caciques da Terra Indígena Ponta Grande questionam: “como cuidaremos de nosso povo durante a pandemia, que já mata mais de 3.000 pessoas por dia no Brasil, se não temos água nem luz? Como uma decisão judicial pode ser tão injusta? (SIC)”. Eles afirmam que a comunidade da Terra Indígena se sente violada.

“Nos faz sentir que somos vistos como animais, sem direito a nada, sem direito a um chão, sem direito ao nosso território, sem direito a uma casa, sem direito à água potável e à luz elétrica, sem direito a VIVER! Nem o momento de pandemia, de calamidade pública, foi capaz de conter uma decisão terrível como essa. Nem a autoridade do STF foi capaz de conter mais uma violação dos povos indígenas”.

Resistência dos Pataxó contra o despejo da aldeia Novos Guerreiros teve cantos, rituais e manifestações. Foto: Thyara Pataxó

Resistência dos Pataxó contra o despejo da aldeia Novos Guerreiros, em 2020, teve cantos, rituais e manifestações. Crédito da foto: Thyara Pataxó/Etnomídia

Comunidade não reconhecida nos autos

A defesa dos Pataxó argumenta, na Reclamação, que “a despeito da previsão do artigo 232 da Constituição Federal, a comunidade indígena ainda não é reconhecida como parte nos autos da reintegração de posse. Por isso, na audiência em que foi exarada sentença (em 19 de outubro de 2006), por não figurar como parte integrante do processo e, consequentemente, ter a sua intimação prejudicada, a comunidade indígena sequer se encontrava presente”.

Paralelamente, a Fundação Nacional do Índio (Funai) informou ao juiz que o Grupo de Trabalho para revisão dos limites da Terra Indígena Coroa Vermelha, cuja demarcação deixou de fora a área da Ponta Grande, foi publicado pela Portaria nº 1.082, da Presidência do órgão, em 05 de outubro de 2007, comprovando haver estudo iniciado para a demarcação nova área em favor da comunidade da Ponta Grande. Justamente por isso, desde então, os Pataxó passaram a ser clientes de políticas públicas e projetos sociais.

Causou espanto aos Pataxó o fato de que em outubro de 2020 a comunidade requereu, no âmbito da ação possessória, a construção de obras estaduais para distribuição de água para a comunidade indígena

Em ofício da Funai datado de 11 de novembro de 2016, juntado ao processo, o órgão indigenista afirma que a comunidade indígena, composta na época por cerca de 450 pessoas divididas em cinco aldeias (Nova Coroa, Itapororoca, Mirapé, Novos Guerreiros e Txihikamayurá), já era beneficiária do programa federal “Luz para Todos”, executado pela Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia (Coelba).

Causou espanto aos Pataxó o fato de que em outubro de 2020 a comunidade requereu, no âmbito desta ação possessória, a construção de obras estaduais para distribuição de água para a comunidade indígena. O TRF-1 foi comunicado com antecedência da necessidade da comunidade e da chegada desta política pública às famílias indígenas.

Comemoração na aldeia Novos Guerreiros, depois que a suspensão do despejo foi confirmada. Foto: Thyara Pataxó

Comemoração na aldeia Novos Guerreiros, depois que a suspensão do despejo foi confirmada, em 2020. Crédito da foto: Thyara Pataxó/Etnomídia

Os argumentos da Reclamação Constitucional 

“A insegurança dos direitos territoriais dos povos indígenas somada à pandemia do coronavírus colocou os povos indígenas em situação de risco ainda maior, seja pela omissão estatal na regularização dos territórios, seja pela maior vulnerabilidade em relação ao vírus”, argumenta a defesa dos indígenas.

Este também é o argumento do ministro Fachin em sua decisão de maio de 2020:  “a manutenção da tramitação de processos, com o risco de determinações de reintegrações de posse, agravam a situação dos indígenas, que podem se ver, repentinamente, aglomerados em beiras de rodovias, desassistidos e sem condições mínimas de higiene e isolamento para minimizar os riscos de contágio pelo coronavírus”.

“Diversas têm sido as decisões neste sentido reconhecidas pelo STF, que reforçam o entendimento que a decisão do ministro Edson Fachin tem eficácia nacional e compulsória”, diz trecho da Reclamação

A suspensão dos processos possessórios relativos à Terra Indígena Ponta Grande foi explicitamente determinada na Reclamação Constitucional 43.058/BA, proposta em liminar pela Defensoria Pública da União (DPU) no STF, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, em 02 de setembro de 2020: “dessa forma, tendo em vista o possível descompasso entre o ato reclamado e a orientação firmada  pelo STF no âmbito da repercussão geral, entendo presente a fumaça do bom direito a dar ensejo à concessão da liminar”.

Há ainda, no STF, sob relatoria do ministro Alexandre de Morais, outra Reclamação Constitucional, de número 45.671/BA, que também trata da Terra Indígena Ponta Grande, pertinente novamente à Aldeia Novos Guerreiros e interposta pela DPU. Neste caso, é reclamada decisão proferida nos autos da reintegração de posse, proposta por José Derly Costa, que também tramita na Vara Federal Cível e Criminal de Eunápolis.

“Diversas têm sido as decisões neste sentido reconhecidas pelo STF, que reforçam o entendimento que a decisão do ministro Edson Fachin tem eficácia nacional e compulsória, suspendendo decisões e processos de reintegração de posse em todo o país, como a Rcl 42.329 e a Rcl 43.907. Em relação aos povos da Bahia, há que se mencionar ainda a Rcl 45.260 (Tupinambá de Olivença)”, diz trecho da Reclamação.

Pedido ao Governador da Bahia
Pedido aos MPs
Pedido ao CDA
Decisão