A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) entrou com uma medida cautelar na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), nesta quarta-feira (29), para resguardar a integridade dos povos Guarani e Kaiowá. A comunidade foi alvo recente do Massacre de Guapoy, um ataque da Polícia Militar no Mato Grosso do Sul, que matou Vitor Fernandes, de 42 anos, e deixou dez feridos, quando retomavam o território ancestral Guapo’y Mirim, no município de Amambai. Ao mesmo tempo, em Naviraí, três indígenas ficaram desaparecidos por mais de 24 horas.

O pedido busca que o Estado brasileiro adote as providências urgentes para proteger a vida dos indígenas e demarcar as terras ancestrais, invadidas por fazendeiros. Também pede a investigação e afastamento dos agentes envolvidos e seus superiores, que têm agido de forma conivente com as condutas violentas.

“Pode-se, ainda, dizer que o próprio histórico de omissão e violência do Estado brasileiro em face das comunidades indígenas – que tem se agravado pela atual política do presidente Jair Bolsonaro de descaso com as comunidades indígenas e incitação de violência contra essas comunidades – comprova que os membros das comunidades Guarani e Kaiowá, e a própria existência da comunidade enquanto grupo, encontram-se submetidos a um risco iminente”, o representante jurídico da Apib, Eloy Terena.

Polícia ou milícia?

Depois de negar que o Batalhão de Choque da Polícia Militar tenha ido até a fazenda Borda da Mata, a 351 quilômetros da Capital, para fazer o despejo, o Secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública, Antônio Carlos Videira, também tentou deslegitimar a retomada, afirmando que poderia se tratar de “paraguaios ou indígenas do Paraguai”. Em seguida, classificou a ação como “normal”, em entrevista à imprensa. A APIB ressalta que não são fatos isolados, mas da atuação recorrente das tropas em favor de fazendeiros, a despeito de trâmites jurídicos.

Em 2018, um agente de saúde indígena foi morto em Caarapó, em ação da PM, na reserva Tey Kuê. No mesmo local, um ancião indígena de 70 anos foi preso por furto. Um ano depois, em Aquidauana, a etnia Kinikinau ocupou a Fazenda Água Branca e foi despejada sem mandado. E em fevereiro deste ano, outro despejo sem embasamento judicial em Rio Brilhante, na área conhecida como Laranjeira Nhanderu. “Se olharmos o histórico, fica claro que a PM do Mato Grosso do Sul vem atuando há anos como milícia do agrobanditismo, seguindo ordens diretas dos fazendeiros, com a conivência do secretário de segurança pública””, afirmou xxxx Aty Guasu. A justificativa para os abusos da PM sempre são o tráfico de drogas ou roubos e furtos.

Indígenas cercados

A região da TI Amambai concentra o maior número de indígenas do Brasil. Ao contrário do que costuma propagar Bolsonaro, não se trata de “muita terra para pouco índio”. De acordo com a Agência Estadual de Defesa Animal e Vegetal do Mato Grosso do Sul, uma família de quatro indígenas precisa de 30 hectares para garantir sua subsistência e conduzir atividades econômicas sustentáveis. No entanto, a média na região é de 0,8 hectare para cada unidade familiar.

A média calculada pelo Jornal Brasil de Fato, com os dados fornecidos por antropólogos, se repete nas principais TIs do estado. É um espaço menor do que um campo de futebol, no qual não é possível exercer nenhuma atividade de caça, pesca, plantio ou extrativismo. “Aqui é pouca terra para muitos indígenas”, constata um integrante da Grande Assembleia Aty Guasu, que reúne as etnias Kaiowá e Guarani. “Então a nossa luta é por espaço. Por conta disso que estamos fazendo as retomadas e a reivindicação pela demarcação”, prossegue o morador da TI Amambai.

O agrobanditismo manda

Os grandes agropecuaristas do estado já tentaram organizar publicamente a formação de milícias rurais e dão o tom da política de segurança pública. Em 2013, a Associação de Criadores de Mato Grosso do Sul (Acrissul) e a Federação de Agricultura e Pecuária (Famasul) arrecadaram R$ 860 mil de produtores rurais da região para a contratação de “segurança”, conforme alegaram à época. A ação foi chamada pelos ruralistas de “Leilão da Resistência”.

Segundo o site De Olho nos Ruralistas, a articulação do “Leilão da Resistência” contou com o apoio de políticos do estado, como os ex-ministros de Bolsonaro Henrique Mandetta e Tereza Cristina, além do governador do Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja (PSDB). A iniciativa terminou bloqueada anos depois pela Justiça Federal, que julgou ilegal a contratação de seguranças privados nos termos propostos pelos latifundiários.

“Resistir até o fim”

Diante dos cercos, resta aos Guarani Kaiowá resistir na “tekoha”, as terras habitadas por seus antepassados, onde eles poderiam viver plenamente sua cultura, sem a interferência dos não indígenas. “A terra para nós é sagrada. Na vista do não indígena, a terra é lucro e dinheiro. Para nós, ela é a vida, é espiritualidade. É sagrada na questão de manter a nossa língua, manter o nosso modo de ser como indigena”, afirma Eliseu Lopes, da Aty Guasu.

A violência em Guapoy sucede uma série de mortes de indígenas provocadas pela reação às dezenas de retomadas organizadas nas últimas décadas. Desde 2013, pelo menos seis indígenas foram assassinados por conflitos de terra. “Não é de hoje que esse tipo de coisa acontece. Todos os Guarani Kaiowá estão revoltados”, lamenta a liderança, reafirmando a resistência no território.

*Com informações do Brasil de Fato e De Olho nos Ruralistas