A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo exigem uma explicação.

O Povo Pataxó é alvo de uma escalada de violência desde junho do ano passado, quando os indígenas iniciaram o processo de autodemarcação nas Terras Indígenas (TI) de Barra Velha e Comexatibá, no extremo sul baiano. Desde então, três jovens foram assassinados e as ameaças, ataques, cercos às comunidades por parte de uma milícia armada comandada por fazendeiros invasores dos territórios não cessaram. O governador do estado, Jerônimo Rodrigues, rejeitou o apoio da Força Nacional de Segurança, que deveria realizar uma operação para proteger a vida dos indígenas.

Em setembro de 2022, após o assassinato do menino Gustavo Silva da Conceição – morto com um tiro nas costas, enquanto tentava fugir dos pistoleiros que atacaram a retomada Vale rio Cahy – uma Força-Tarefa composta por policiais militares, civis e bombeiros começou a atuar na região sob comando da Secretaria de Segurança Pública do governo do estado da Bahia. No entanto, os moradores das comunidades denunciam a pouca disposição dos enviados para cumprir sua função de conter a violência, garantir a segurança e a proteção do povo Pataxó.

“Tive que sair da minha casa por medo, porque eles passam aqui, revistam as pessoas, as casas, param as motos, deixa todo mundo assustado. Não sabemos o que eles estão fazendo. Fiquei com medo de me pegarem, levar pro mato e fazer alguma coisa ruim”, conta em sigilo de identidade um dos moradores de um distrito vizinho a TI Barra Velha.

Mesmo com a presença da Força-Tarefa, outros dois jovens morreram em 17 janeiro. Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, e o adolescente Nauí Brito de Jesus, de 16 anos, foram perseguidos e executados quando saíram para comprar alimentos no distrito de Montinho, na margem oposta da BR-101, que delimita o território indígena.

Ambos foram mortos na estrada, onze dias depois de iniciada a retomada das fazendas Condessa e Veneza, localizadas dentro dos limites da TI Barra Velha. “Eles mataram os parentes covardemente aqui dentro do próprio território”, indigna-se uma liderança Pataxó.

Força-tarefa defende fazendeiros

Os indígenas têm reforçado que a atuação da milícia ocorre com a conivência e a participação de parte da Polícia Militar da Bahia. Tanto o assassinato de Gustavo como de Samuel e Nauí resultaram na prisão de policiais militares, suspeitos de atuarem como pistoleiros a mando de fazendeiros. Três PMs foram presos, em outubro, e outro foi preso em janeiro, acusado de assassinar os outros dois jovens.

A Força-Tarefa não dialoga com os indígenas. “Eles chegaram dizendo que vieram para apaziguar o conflito. Mas antes de sentar com os indígenas para saber o que estava acontecendo, eles foram primeiro sentar com os fazendeiros”, relata uma liderança.

Declarações recentes de integrantes do governo estadual mostram que não há clareza na atuação do grupo. O secretário estadual de Justiça e Direitos Humanos, Felipe Freitas, afirmou, no final de janeiro, que “no extremo sul [da Bahia] não existe demarcação, há um litígio, uma disputa”.

Somente após muita cobrança e pressão começaram os insuficientes diálogos com a comunidade Pataxó. “Eles passam na porta das ocupações indígena, das áreas de autodemarcação, mas não entram nas fazendas para prender os pistoleiros que estão atirando todas as noites no indígena”, denuncia outa liderança.

“Hoje, quem anda matando nosso povo na nossa região, fazendo pistolagem, é uma parte da Polícia Militar do estado da Bahia. Por isso, nós queremos a presença da Polícia Federal dentro da área indígena. É dever da Polícia Federal intervir, tomando pé dessas investigações referente à morte de Samuel e Nauí”, reivindica.

Pedidos em Brasília

Os indígenas foram até o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), em Brasília, no dia 7 de fevereiro, para entregar uma carta pedindo novas providências. O Secretário Nacional de Justiça, Augusto de Arruda Botelho, prometeu levar ao ministro do MJSP, Flávio Dino, os pedidos de federalizar a investigação dos crimes na região. “É muito importante essa escuta e vou levar todas essas reivindicações ao ministro da Justiça para que essas deliberações possam ser feitas”, garantiu Botelho.

O povo também cobrou, novamente, a presença da Força Nacional nos territórios Pataxó. “Deixamos bem encaminhado [com o secretário do ministério da Justiça] o pedido e eles ficaram de solicitar ao governador essa ida da Força Nacional para região. A secretaria do ministério da justiça se comprometeu também em reunir com o governador e convocar os representantes dos movimentos indígenas para levar essa pauta da Força Nacional em nossa região”.

Um Gabinete de Crise foi criado pelo Ministério dos Povos indígenas, no dia 18 de janeiro, para acompanhar a situação dos conflitos na região. A ministra Sônia Guajajara, representantes da Funai, das secretarias executiva e de direitos territoriais indígenas, do departamento de mediação e conciliação de conflitos indígenas compõe essa equipe. Outros membros convidados são os representantes do Ministério da Justiça e Segurança Pública, do Governo do Estado da Bahia, da Defensoria Pública da União (DPU), do MPF, do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Os Pataxó aguardam ansiosamente a presença da ministra Sônia Guajajara com a delegação do Comitê de Crise na região.

Morosidade do Estado e autodemarcação

Mapa dos territórios, produzido pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

 

“Nós não estamos mais aguentando a morosidade, a demora da conclusão dos processos fundiários nas terras indígenas Pataxó. Com essa morosidade está vindo a prostituição, a droga, a urbanização, a degradação ambiental, a contaminação e a descaracterização do que é terra indígena pela construção imobiliária”, explica um dos caciques.

O acirramento dos conflitos é motivado pela pressão de fazendeiros e pela especulação de empresários do turismo. Por exemplo, no entorno da cobiçada Caraíva, vila de pescadores tomada pelo turismo, se estabeleceu um bairro inteiro de invasores chamado Xandó. Há fortes interesses imobiliários sobre a venda dos lotes que ficam dentro da terra indígena.

“Esse território é nosso”. A fala se refere aos 52,7 mil hectares relativos à área de revisão de limites da TI Barra Velha e aos 28 mil hectares da TI Comexatibá. A autodemarcação desses dois territórios foi a saída encontrada pelo povo para efetivar o direito de viver e habitar suas terras. “Se a gente não fizer a nossa autodemarcação, governo nenhum vai fazer. Porque eles acham que se a gente não entrar para dentro da terra, ela não nos pertence”.

Os conflitos têm tirado a liberdade do povo para circular no próprio território e nas cidades da região. “A gente está oprimido sem poder sair, sem ir na cidade” explica o indígena. “Porque hoje a visão [dos fazendeiros] não é só matar liderança, a visão hoje é matar qualquer indígena que sair do nosso território”.

A brutalidade dos ataques, ameaças e assassinatos promovidos contra o povo Pataxó se agrava à medida que a comunidade avança sobre as áreas invadidas por fazendeiros. As marcas deixadas nas casas e escolas indígenas denotam o alto grau de violência investido contra o povo. “Eles atiram para acertar. Nós temos provas, pegamos as cápsulas de fuzil. Nós estávamos em cinco pessoas lá e eles deram mais de cem tiros na casa. Só não pegou porque corremos”, conta uma das lideranças.

Vitória jurídica

Em 2019 os Pataxó tiveram uma vitória no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e desde então não há nenhum impedimento jurídico para a emissão da portaria declaratória da TI Barra Velha pelo Ministério da Justiça. Uma pequena parte desta TI já foi identificada e demarcada. A TI Comexatibá foi identificada em 2015 e aguarda respostas da Funai às contestações de fazendeiros.

A TI Barra Velha foi reservada com uma área pequena, na década de 1980. A maior parte do território está fora da demarcação. “Esses 8.627 hectares, onde eu moro, que é a área demarcada e homologada, ela é pequenininha. E tem uma parte dela, na orla, que está sendo invadida por grileiros, com venda de terras e [especulação] imobiliária dentro do nosso território”.

Durante o governo Bolsonaro uma normativa publicada pela Funai (IN 09/2020) autorizou a certificação de fazendas aos invasores de terras indígenas não homologadas. É o caso das áreas de retomada que estão no centro dos atuais conflitos.

Meses após essa normativa, 51 fazendas, com um total de 11,4 mil hectares, foram certificadas sobre as TIs Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá, a maioria delas integralmente sobrepostas às terras indígenas. Em abril de 2020 foram mais 10 certificações sobre a TI Comexatibá e 41 sobre Barra Velha.

Com ações do Ministério Público Federal (MPF), a validade da normativa foi suspensa em 13 estados, inclusive na Bahia, no entanto as certificações já concedidas não perderam a validade.

Com esse documento, os invasores podem negociar e buscar financiamento de atividades econômicas nas áreas, o que intensificou ainda mais a pressão e a devastação sobre o território. O movimento de autodemarcação iniciado pelos Pataxó é uma resposta à omissão do Estado, às investidas do bolsonarismo e uma forma de evitar a degradação ainda maior do território pelo agronegócio e por empreendimentos privados.

Confira a carta na íntegra:

Extremo Sul da Bahia, janeiro de 2023.

Ao Ministério dos Povos Indígenas,
Ministério da Justiça e
Fundação Nacional dos Povos Indígenas:
Nós, povo Pataxó do Extremo Sul da Bahia, solicitamos urgentemente ao Gabinete de Crise uma visita aos territórios Pataxó de Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá para reunião presencial com nossas lideranças, para tratar da crescente escalada de violência praticada contra o povo Pataxó por seus inimigos históricos, que têm se articulado contra a demarcação dos nossos territórios, as Terras Indígenas Barra Velha do Monte Pascoal e Comexatibá.
Nos últimos meses, quatro jovens Pataxó já foram assassinados devido à luta pela demarcação territorial. Sofremos, constantemente, ameaças e invasões de nossas aldeias por grupos armados de pistoleiros milicianos contratados por fazendeiros da região.
Precisamos de medidas urgentes que garantam a proteção de nossas comunidades e a demarcação de nossas terras. Só a demarcação é capaz de resolver os conflitos de forma permanente.
O povo Pataxó pede socorro!

 

*Com informações do Cimi. **Os nomes das lideranças foram preservados por motivos de segurança.