02/jun/2025
O PDL nº 717 suspende a demarcação das Terras Indígenas Toldo Imbu e Morro dos Cavalos (SC) e o Art. 2º do Decreto nº 1775/96, gerando insegurança jurídica em todo o país.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) denunciou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e à Organização das Nações Unidas (ONU) a aprovação, no Senado Federal, do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 717/2024, que suspende a demarcação das Terras Indígenas Toldo Imbu e Morro dos Cavalos, localizadas no estado de Santa Catarina.
O projeto foi aprovado no plenário do Senado na última quarta-feira, 28 de maio, com apenas três votos contrários. O texto também susta o Art. 2º do Decreto nº 1775/1996, que detalha o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas. Agora, o projeto segue para a Câmara dos Deputados.
“Vivemos um retrocesso! Vivemos um desrespeito a Constituição Federal de 1988, no que tange o Artigo 231. Não podemos aceitar que cláusulas pétreas sejam desrespeitadas, não podemos aceitar nossos direitos sendo rasgados!”, diz a Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib.
Nos documentos enviados à CIDH e ONU, a Apib alerta que a decisão dos senadores susta atos concretos do Presidente da República, o que é inconstitucional, e compromete a segurança jurídica dos povos indígenas em todo o país. Segundo a organização, o projeto é baseado na Lei 14.701/2023, que transformou em lei a tese do marco temporal, de modo a limitar o direito à demarcação apenas às comunidades que ocupavam seus territórios até 5 de outubro de 1988, e alterou profundamente o rito do procedimento administrativo de demarcação. Sob o argumento de garantir a participação dos ruralistas, a lei criou uma série de entraves à demarcação das terras indígenas.
A Lei 14.701 é nomeada pelo movimento indígena como Lei do Genocídio Indígena e do marco temporal. A Apib destaca que a legislação é alvo de questionamentos no Supremo Tribunal Federal (STF), que chegou a declarar a tese inconstitucional em setembro de 2023.
A organização recorda ainda declarações do secretário-geral da ONU, António Guterres, que em abril reafirmou a não negociabilidade dos direitos indígenas. No mesmo contexto, o relator especial da ONU, Bernard Duhaime, apontou que o marco temporal ignora o histórico de remoções forçadas de comunidades indígenas, especialmente durante o regime militar.
A Apib reforça que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já decidiu que a perda de território por expulsão não pode impedir o reconhecimento da posse tradicional. Para a entidade, a aprovação do projeto e a vigência do marco temporal representam sérias ameaças aos direitos indígenas, à preservação ambiental e à luta contra as mudanças climáticas. Por isso, a Articulação dos Povos Indígenas solicita que a ONU cobre esclarecimentos do Estado brasileiro, monitore o processo legislativo e inclua o caso como exemplo de ameaça sistêmica aos direitos indígenas.
30/maio/2025
Manifestação enviada ao STF aponta omissões do Governo Federal em ações nas TIs Apyterewa, Trincheira Bacajá e Karipuna e cobra mudanças estruturais para garantir a segurança e os direitos dos povos indígenas.
O departamento jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolou, nesta sexta-feira (30/05), manifestação nos autos da ADPF 709 apontando as falhas observadas na condução dos processos de pós-desintrusão das terras indígenas Apyterewa, Trincheira Bacajá e Karipuna por parte do Governo Federal, de forma a sugerir alterações estruturais nos planos atuais e futuros no intuito de garantir a voz dos povos indígenas em tais ações.
A Apib, igualmente, informou ao Supremo Tribunal Federal sobre os recentes episódios de violência na Terra Indígena Apyterewa, a qual, recentemente, sofreu 6 (seis) ataques por pistoleiros com inteterreses de manter a prática da pecuária ilegal dentro do território tradicional, ainda que sob a égide do plano de sustentabilidade pós-desintrusão. A situação é semelhante na Terra Indígena Karipuna, a qual, mesmo com a elaboração de plano para idênticos fins, padece com a abertura de trechos para possibilitar a invasão com fins de extração ilegal de madeira.
A Apib considera as atividades de desintrusão e sustentabilidade pós-desintrusão como essenciais para a proteção da vida, segurança e a manutenção da tradição dos povos indígenas. Entretanto, alerta que para a realização de um plano de pós-desintrusão eficaz e que, de fato, proteja os territórios e povos indígenas neles residentes, é preciso a permanência constante de equipes da Funai, Ibama e ICMBio nas terras indígenas, além de uma melhoria nos procedimentos de monitoramento (remoto e presencial), maior vigilância e fiscalização, bem como a obrigatória elaboração de planos de recuperação ambiental e reocupação territorial das comunidades.
A ADPF 709 foi ajuizada pela Apib em 2020 em vista à omissão do Estado Brasileiro na proteção dos direitos fundamentais dos povos indígenas, especialmente diante da pandemia da Covid-19, para fins de adoção de medidas emergenciais para proteger a saúde e a vida das comunidades indígenas, com foco particular nos povos indígenas isolados e de recente contato. Ao longo do processo, houve a determinação para elaboração de 7 planos de desintrusão referentes a 8 terras indígenas: Yanomami, Apyterewa, Trincheira Bacajá, Munduruku, Karipuna, Araribóia, Kaypó e Uru-Eu-Wau-Wau.
30/maio/2025
Documento propõe mecanismos concretos de integração entre os tratados da Rio-92 com protagonismo de povos indígenas e comunidades locais
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em parceria com a Plataforma CIPÓ e a World-Transforming Technologies (WTT), submeteu uma contribuição oficial à Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), em resposta à solicitação da COP16 (decisão 16/22), que busca opiniões sobre formas de fortalecer a coerência política entre as três convenções criadas na Rio-92: a CDB, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) e a Convenção de Combate à Desertificação (UNCCD).
O documento apresenta recomendações concretas para fortalecer a articulação entre os tratados, colocando os Povos Indígenas e Comunidades Locais (IPLCs) como elos fundamentais para a implementação coordenada e efetiva dos compromissos internacionais. A proposta se organiza em torno de três eixos estratégicos:
- Integração dos sistemas de conhecimentos tradicionais e locais (ILK);
- Participação digna e efetiva de Povos Indígenas e Comunidades Locais;
- Mecanismos de financiamento e monitoramento transparentes e participativos.
Entre as recomendações está o fortalecimento da coordenação entre órgãos científicos como IPBES, IPCC e SPI, para incorporar saberes indígenas nos processos de produção e comunicação de conhecimento. O texto também defende a criação de um mecanismo permanente e coordenado entre as convenções que assegure a presença qualificada de lideranças indígenas nos fóruns decisórios, com infraestrutura adequada, financiamento desburocratizado e segurança em seus deslocamentos.
Além disso, o documento propõe o alinhamento dos sistemas de financiamento e monitoramento das convenções e a criação de linhas de financiamento direto para povos indígenas, com ênfase em fundos comunitários autogeridos, como Jaguatá, Nusantara, Podáali e FIRN. A ideia é garantir que os recursos cheguem diretamente às comunidades que atuam na linha de frente das soluções para as crises do clima, biodiversidade e degradação da terra.
A submissão reafirma que não é possível construir respostas justas e eficazes para os desafios ambientais globais sem considerar os sistemas de conhecimento e os direitos dos povos indígenas e comunidades locais.
Para saber mais, leia a recomendação na íntegra em:
Português
Inglês
28/maio/2025
Foto: Conselho Indígena Missionário
O PDL 717 segue para votação no plenário do Senado em caráter de urgência
A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal aprovou, na manhã desta quarta-feira, 28 de maio, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 717/2024, que suspende a demarcação das Terras Indígenas Toldo Imbu e Morro dos Cavalos, localizadas no estado de Santa Catarina.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) considera a decisão grave e afirma que ela representa um ataque aos direitos dos povos indígenas. A organização repudia a medida e alerta que ela abre um perigoso precedente, podendo levar à revogação de outras demarcações ou impedir a homologação de territórios ainda não regularizados.
“O Senado, mais uma vez, afronta o texto constitucional, a divisão e a competência dos poderes ao tentar sustar os efeitos da homologação dos territórios indígenas Morro dos Cavalos e Toldo Imbu. Esse é mais um episódio que evidencia como as bancadas com interesses sobre terras indígenas têm atuado, articulando e fazendo lobby dentro da política brasileira, especialmente no Congresso Nacional”, ressalta Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib.
O coordenador esteve no Senado e acompanhou as articulações. Dinamam também critica a posição do Governo Federal no processo: “A Presidência da República precisa atuar de forma mais incisiva. O que vimos hoje foi o esvaziamento da bancada governista na defesa de um decreto que homologou duas terras indígenas, assinado pelo presidente Lula. Hoje ficou ainda mais evidente que não há uma orientação clara do governo para que seus senadores aliados atuem de forma firme. Mas seguiremos vigilantes. Não vamos aceitar retrocessos!”, disse ele.
Agora, o PDL 717 segue para votação no plenário do Senado em caráter de urgência. O departamento jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil aponta quatro riscos com aprovação do projeto:
- Violência e Conflitos Fundiários: A suspensão das demarcações pode aumentar a violência no campo, favorecendo invasões ilegais e agravando os conflitos entre indígenas e setores do agronegócio.
- Retrocesso Jurídico e Político: A sustação da demarcação das TIs Toldo Imbu e Morro dos Cavalos cria um precedente para a revisão de outras demarcações já consolidadas, ameaçando o direito dos povos indígenas em todo o Brasil.
- Descumprimento da Constituição e Tratados Internacionais: O PDL afronta o artigo 231 da Constituição Federal, que reconhece os direitos indígenas sobre suas terras tradicionais, e também desrespeita a Convenção 169 da OIT, que obriga consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas em decisões que os afetam.
- Ameaça ao Meio Ambiente: As Terras Indígenas cumprem um papel fundamental na preservação ambiental. A revogação de suas demarcações pode levar ao desmatamento, degradação dos biomas e perda da biodiversidade.
O que diz o PDL 717
Apresentado pelo Senador Esperidião Amin, o projeto suspende os decretos que homologaram a demarcação das Terras Indígenas Toldo Imbu e Morro dos Cavalos, além do Art. 2º do Decreto nº 1775/1996, que orienta o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas.
O texto alega que os decretos não observaram as novas regras impostas pela Lei nº 14.701/2023, apontada pelo movimento indígena como Lei do Genocídio Indígena. A legislação transformou o marco temporal e diversos crimes contra os povos originários em lei.
O PDL afirma que o Decreto nº 1775/1996 e a demarcação dessas terras devem ser suspensas por suposta falta de participação de estados, municípios e terceiros interessados. Entretanto, a Apib ressalta que a medida desconsidera que tais terras foram reconhecidas por meio de amplos estudos técnicos e consultas às comunidades indígenas e populações afetadas.
“A demarcação das Terras Indígenas Toldo Imbu e Morro dos Cavalos é resultado de um processo histórico e legalmente embasado. O PDL em questão representa uma afronta aos direitos indígenas, ao meio ambiente e à segurança jurídica. Por isso, é fundamental que o Congresso Nacional rejeite essa medida e garanta a proteção dos territórios tradicionais”, diz nota da Apib.
Leia a nota completa aqui.
23/maio/2025
Foto: Yago Kaingang/Apib
Em Londres e Bruxelas, Apib pressiona por políticas que protejam os povos indígenas e o meio ambiente
Entre os dias 12 e 16 de maio, as lideranças indígenas Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e Alessandra Korap Munduruku, coordenadora da Associação Indígena Pariri, participaram de reuniões com deputados do Grupo dos Socialistas e Democratas do Parlamento Europeu em Bruxelas, na Bélgica, e também com Parlamentares e autoridades britânicas, em Londres, Reino Unido. O objetivo da agenda foi tratar dos impactos do acordo União Europeia-Mercosul, que pode aumentar o desmatamento e a violência contra os povos indígenas no Brasil, além de reivindicar metas mais ambiciosas na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que ocorrerá em novembro, em Belém (PA).
Entre os impactos negativos do acordo entre a UE e o Mercosul, a Apib alerta que ele aumenta a cota de importação de carne bovina para a UE (com tarifas reduzidas) em 99 mil toneladas por ano, o que representa um aumento de 50% em comparação com as atuais exportações de carne bovina do Mercosul para o bloco europeu. Estimativas sugerem que essa cota poderia acelerar as taxas de desmatamento na região do Mercosul em pelo menos 5% ao ano. Outras projeções apontam que o impacto da cota de carne bovina pode resultar em um desmatamento adicional entre 620 mil e 1,35 milhão de hectares em cinco anos.
Em relação à soja, as autoridades consideram que o Acordo não promoveria uma expansão de sua produção dado que a soja brasileira já conta com isenção de alíquota de importação para o bloco europeu. Entretanto, a Apib aponta que o aumento da produção de gado promovida pelo Acordo, levará a um aumento indireto da produção de soja para produção de ração para a expansão da pecuária. Além disso, as lideranças destacaram impactos indiretos do Acordo a partir da demanda pela expansão da infraestrutura para o escoamento da produção de commodities, como a construção da Ferrogrão e de portos que já estão promovendo desmatamento e invasão de territórios indígenas.
Sobre os direitos indígenas, o texto do acordo UE-Mercosul menciona apenas o “consentimento prévio e informado”, em oposição ao direito internacionalmente reconhecido de “consentimento livre, prévio e informado” — ou seja, omite o elemento crucial de que o consentimento deve ser obtido sem coerção ou intimidação. Além disso, o texto limita a obrigação de obter o consentimento dos povos indígenas a um cenário muito restrito: a inclusão nas cadeias de suprimentos, em vez de proteger seus direitos frente às ameaças das atividades econômicas facilitadas pelo acordo.
“Pedimos que todos eles, na maioria parlamentares social-democratas, que votem contra este acordo. O projeto não pode ser mais modificado, então este é um momento decisivo de articulação com o parlamento europeu”, contou Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib.
O parlamento europeu deve votar o acordo UE-Mercosul entre outubro de 2025 e fevereiro de 2026.
Financiamento direto para os povos indígenas
Outro tema da agenda internacional foi a COP30. Dinamam e Alessandra explicaram aos parlamentares que esperam que o legado da conferência seja o avanço na demarcação de terras indígenas.
Eles também denunciaram a contradição do Estado do Pará, que sediará a conferência, mas tem permitido o garimpo ilegal e firmado acordos de crédito de carbono sem a consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas. Além disso, criticaram o pacote de leis anti-indígenas do Congresso Brasileiro, como a Lei 14.701/2023, que legalizou o marco temporal e diversos crimes contra os povos indígenas.
Com isso, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil pediu que os parlamentares europeus se comprometessem com metas mais ambiciosas na COP30, como o anúncio da ampliação do financiamento direto aos povos indígenas e o reconhecimento territorial em nível global.
Lei Antidesmatamento
Além do acordo UE-Mercosul e da COP30, a Apib destacou a importância da Lei Antidesmatamento (EUDR) e da criação de legislações que promovam a fiscalização de commodities.
O Regulamento da União Europeia sobre Produtos Livres de Desmatamento (EUDR), também conhecida como Lei Antidesmatamento, é uma legislação que visa garantir que algumas commodities importadas pela União Europeia não estejam associadas ao desmatamento e à degradação florestal. Assim, o EUDR exige que empresas comprovem que os produtos que importam e vendem na UE não vêm de áreas desmatadas ou degradadas. A lei entra em vigor em dezembro de 2025.
“O Brasil sempre se opôs à EUDR, mas nós, povos indígenas, sempre fomos a favor. Estamos cansados de compromissos sem implementações. Queremos mais legislações, como a Lei Antidesmatamento, que visem a rastreabilidade das commodities. Dessa forma iremos impedir o desmatamento e invasão dos territórios indígenas”, diz Dinamam Tuxá.
O coordenador executivo da Apib também afirma que é necessário incluir nestas regulações todos os biomas brasileiros e mais commodities. “O desmatamento na Amazônia diminuiu, mas no Cerrado aumentou quase na mesma proporção. É preciso incluir fiscalização em todos os biomas, não só nas florestas. Temos que considerar também mais commodities e minérios, como o ouro”, ressalta ele.
22/maio/2025
Introdução
As Terras Indígenas Toldo Imbu e Morro dos Cavalos estão sob grave ameaça com a tramitação do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 717/2024 que busca sustar a demarcação dessas áreas. Caso aprovado, o PDL representará um ataque frontal aos direitos territoriais dos povos indígenas garantidos pela Constituição Federal e consolidará um perigoso precedente de violação dos direitos originários.
Contexto do PDL
O PDL apresentado pelo Senador Esperidião Amin visa sustar o Art. 2º do Decreto nº 1775/1996, que rege o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, bem como os decretos que homologaram a demarcação das Terras Indígenas Toldo Imbu – Decreto nº 12.289/2024 – e Morro dos Cavalos – Decreto nº 12.290/2024 -, alegando que os procedimentos administrativos não observaram as novas regras impostas pela Lei nº 14.701/2023, que regula o art. 231 da Constituição Federal.
O projeto argumenta que o Decreto nº 1775/1996 e a demarcação dessas terras devem ser sustados por suposta falta de participação de estados, municípios e terceiros interessados, desconsiderando que tais terras foram reconhecidas por meio de amplos estudos técnicos, além de consultas às comunidades indígenas e populações afetadas.
Ademais, insta salientar que, durante os dias 26 de março e 02 de abril de 2025, o Supremo Tribunal Federal encaminhará a finalização da Câmara de Conciliação sobre Direitos dos Povos Indígenas e de Particulares. Em seu bojo, foram realizadas discussões sobre aprimoramentos na participação de entes federados e particulares no procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas. No âmbito dos consensos obtidos, a proposta apresentada pelo Ministro Gilmar Mendes, especialmente no artigo 89, que trata da Revisão e Reanálise de Procedimentos Administrativos Demarcatórios, aponta que os procedimentos administrativos que já contam com portaria declaratória publicada pelo Ministério da Justiça e decreto de homologação expedido pela Presidência da República permanecerão resguardadas e não terão que ser readequados ao que rege a nova legislação, a fim de resguardar a segurança jurídica.
A Situação Jurídica das Terras Indígenas Toldo Imbu e Morro dos Cavalos no STF
A demarcação da Terra Indígena Toldo Imbu está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), no Recurso Extraordinário 971228. Recentemente, o Ministro André Mendonça suspendeu os efeitos da demarcação até o julgamento final do caso, baseando-se no Tema 1031, que trata do marco temporal. Contudo, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Procuradoria-Geral da República demonstraram que a decisão monocrática foi equivocada, pois a suspensão do julgamento do marco temporal não impede a continuidade de processos administrativos de demarcação. Além disso, há provas concretas do esbulho renitente, ou seja, da expulsão forçada dos Kaingang de suas terras, invalidando a tese do marco temporal em relação a essa TI.
A decisão liminar concedida monocraticamente pelo Ministro André Mendonça, para suspender o ato administrativo de homologação da TI Toldo Imbu, contudo, está em processo de referendo da liminar pelo Plenário virtual do STF. Contudo, insta salientar que o Ministro Gilmar Mendes solicitou vistas do feito, postergando o referendo em 90 (noventa) dias e que o Ministro Edson Fachin já apresentou seu voto em que aduz que o STF suspendeu os processos judiciais sobre a constitucionalidade da Lei 14.701/2023 em instâncias inferiores, não tendo de forma alguma encaminhado a suspensão de processos administrativos de demarcação em curso.
O Mandado de Segurança (MS) 40.107, por sua vez, questiona a homologação da Terra Indígena Morro dos Cavalos pelo Presidente da República, argumentando que o ato desconsiderou os critérios estabelecidos pela Lei 14.701/2023. A fundamentação do MS baseia-se na alegação de que a terra não era ocupada por indígenas na data do marco temporal (5 de outubro de 1988), tampouco estava sob renitente esbulho. Os impetrantes sustentam que possuem título formal de propriedade, registrado antes da Portaria de Declaração da terra indígena, e que a Lei 14.701/2023 exige que esses critérios sejam observados para garantir a legalidade da demarcação.
Sob a ótica da defesa dos direitos indígenas, a crítica ao MS se fundamenta na inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, que busca restringir o direito originário dos povos indígenas às suas terras tradicionais, contrariando o artigo 231 da Constituição Federal. A exigência do marco temporal ignora a violência histórica que forçou a remoção de diversas comunidades indígenas de seus territórios e pode inviabilizar processos de demarcação legítimos. O argumento dos impetrantes reforça a noção de propriedade privada em detrimento do direito indígena, desconsiderando a relação ancestral dos povos indígenas com a terra. Assim, a fundamentação do MS ameaça o reconhecimento e a proteção dos territórios indígenas, perpetuando injustiças históricas e colocando em risco a sobrevivência cultural e física desses povos
Da Irretroatividade da Lei nº 14.701/2023
No tocante ao tema da retroatividade da Lei nº 14.701/2023 aos atos administrativos produzidos em processos administrativos findos ou em curso, há de se considerar que a Constituição Federal, em seu Art. 5º, inciso XXXVI, prevê que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, o que no entendimento da APIB respalda a atuação da União em dar seguimento a publicação de Portarias Declaratórias e Decretos de Homologação de Terras Indígenas nos quais o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação, elaborado pelo grupo técnico da Funai, já tenha sido exposto ao contraditório, com abertura de prazo para contestações, e tenha sido objeto de decisão administrativa do Ministério da Justiça.
Em mesmo sentido do dispositivo constitucional mencionado, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), em seu Art. 6º, prevê expressamente que “lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitando o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.
O disposto na CF e na LINDB prima pela segurança jurídica. De partida, o direito dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas, inscrito no Art. 231 da Constituição Federal, foi reconhecido juridicamente como anterior ao próprio Estado. De tal forma que o direito dos povos indígenas às suas terras tradicionais é mais do que um direito adquirido, haja vista ser um direito originário, e o processo administrativo de demarcação se reveste de natureza meramente declaratória. O que restou expresso no Item 01 do Tema 1031:
I – A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;
Nos termos do Decreto nº 1.775/1996, que já teve sua constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, aprovação e posterior publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação constitui ato jurídico perfeito. Tendo em vista que faculta a participação dos Estados, Municípios e dos interessados e estipula prazo para sua impugnação, possibilitando o contraditório e a ampla defesa, bem como é elaborado por antropólogo de qualificação reconhecida, senão vejamos:
Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação.
§ 1° O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado, composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação.
§ 2º O levantamento fundiário de que trata o parágrafo anterior, será realizado, quando necessário, conjuntamente com o órgão federal ou estadual específico, cujos técnicos serão designados no prazo de vinte dias contados da data do recebimento da solicitação do órgão federal de assistência ao índio.
§ 3° O grupo indígena envolvido, representado segundo suas formas próprias, participará do procedimento em todas as suas fases.
§ 4° O grupo técnico solicitará, quando for o caso, a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos de que trata este artigo.
§ 5º No prazo de trinta dias contados da data da publicação do ato que constituir o grupo técnico, os órgãos públicos devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis é facultado, prestar-lhe informações sobre a área objeto da identificação.
§ 6° Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra indígena a ser demarcada.
§ 7° Aprovado o relatório pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, este fará publicar, no prazo de quinze dias contados da data que o receber, resumo do mesmo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área sob demarcação, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, devendo a publicação ser afixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel.
§ 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior.
Não é de se olvidar ainda que, em que pese não tenha ocorrido o julgamento dos embargos de declaração opostos em face do RE Xokleng (caso paradigma da repercussão geral), a decisão colegiada do Supremo Tribunal Federal no Tema 1031 fez coisa julgada material, pois estabeleceu as balizas do “estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional”.
Por fim, a aplicação retroativa da Lei nº 14.701/2023 aos procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas em curso iria na contramão dos princípios constitucionais da eficiência e da celeridade processual, que regem a administração pública, nos termos dispostos no Art. 5º, inciso LXXVIII e 37, caput, da CRFB/1988.
Por todo o exposto, esta Articulação dos Povos Indígenas do Brasil aduz que a retroatividade da Lei nº 14.701/2023 é inconstitucional, por afronta aos Arts. 5º, incisos incisos XXXVI, LXXVIII e Art. 37, caput pois lei nova não pode atingir direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, tampouco a Administração Pública poderia inobservar a eficiência e a celeridade processual de seus atos administrativos.
Os Riscos do PDL
Caso seja aprovado, o PDL trará uma série de conseqüências negativas, tais como:
1. Violência e Conflitos Fundiários: A suspensão das demarcações pode aumentar a violência no campo, favorecendo invasões ilegais e agravando os conflitos entre indígenas e setores do agronegócio.
2. Retrocesso Jurídico e Político: A sustação da demarcação das TIs Toldo Imbu e Morro dos Cavalos cria um precedente para a revisão de outras demarcações já consolidadas, ameaçando o direito dos povos indígenas em todo o Brasil.
3. Descumprimento da Constituição e Tratados Internacionais: O PDL afronta o artigo 231 da Constituição Federal, que reconhece os direitos indígenas sobre suas terras tradicionais, e também desrespeita a Convenção 169 da OIT, que obriga consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas em decisões que os afetam.
4. Ameaça ao Meio Ambiente: As Terras Indígenas cumprem um papel fundamental na preservação ambiental. A revogação de suas demarcações pode levar ao desmatamento, degradação dos biomas e perda da biodiversidade.
Conclusão
A demarcação das Terras Indígenas Toldo Imbu e Morro dos Cavalos é resultado de um processo histórico e legalmente embasado. O PDL em questão representa uma afronta aos direitos indígenas, ao meio ambiente e à segurança jurídica. Por isso, é fundamental que o Congresso Nacional rejeite essa medida e garanta a proteção dos territórios tradicionais.
#DefendaOsPovosIndígenas #ToldoImbuResiste #MorroDosCavalosFica
20/maio/2025
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amazonas (APIAM) vêm a público manifestar seu repúdio às decisões judiciais recentemente proferidas pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), no contexto do julgamento de recursos judiciais relacionados ao Projeto Potássio Autazes, que afeta diretamente o povo Mura de Autazes, no estado do Amazonas.
Trata-se de um megaempreendimento de mineração de silvinita, cuja Licença Prévia foi emitida pelo órgão ambiental estadual (IPAAM) em 2015, sem consulta à comunidade indígena Mura do Lago do Soares e sem a devida análise do componente indígena. Desde então, o povo Mura, por meio da OLIMCV e outras organizações, vem denunciando irregularidades no processo e reafirmando sua presença tradicional na região do Lago do Soares/Urucurituba, onde realizaram autodemarcação em 2018.
Em 2016, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou a Ação Civil Pública nº 0019192-92.2016.4.01.3200, obtendo decisão, em 2018, da 1ª Vara Federal do Amazonas, que suspendeu o licenciamento e reconheceu a competência do IBAMA. Essa decisão ficou vigente até 25/04/2023, quando foi suspensa por decisão do TRF1 no âmbito da Suspensão de Liminar nº 1038484-33.2022.4.01.0000.
Desde então, diversas manobras jurídicas têm sido utilizadas pela empresa Potássio do Brasil para reativar o licenciamento via IPAAM, inclusive com o ajuizamento da Reclamação Constitucional nº 1047870-53.2023.4.01.0000. Paralelamente, foram propostas novas ACPs, como a de nº 1014651-18.2024.4.01.3200, pelo Ministério Público Federal, que busca garantir a competência federal do IBAMA para o licenciamento. O MPF inclusive disponibilizapublicamente, em seu site, vasto acervo de documentos comprobatórios das irregularidades e ilegalidades em torno do projeto.
Apesar da existência de provas documentais, relatórios técnicos da UFAM, uma inspeção judicial em 2022 e manifestações da OLIMCV, o TRF1 tem legitimado, por meio de suas decisões, um processo de consulta viciado e excludente, que ignora o Protocolo de Consulta Trincheira Yandé Peara Mura.
Nos dias 7 e 15 de maio de 2025, o Tribunal julgou parcialmente os recursos internos à Suspensão de Liminar nº 1040729-80.2023.4.01.0000, proferindo decisões favoráveis à empresa. Ressaltamos, no entanto, que esses julgamentos não encerram o caso. Ainda há 18 Agravos de Instrumento interpostos pelas organizações indígenas e pelo MPF, com julgamento previsto na 6ª Turma do TRF1 para o dia 04 de junho de 2025.
Durante o julgamento de agravo interno da SLS nº 1040729-80.2023.4.01.0000 pela Turma Especial do TRF1, no dia 15, destacaram-se os votos técnicos, e comprometidos com a Constituição, das desembargadoras Ana Carolina Roman e Maria Maura Martins. A Des. Roman alertou sobre a fragmentação do licenciamento ambiental promovida pela empresa, que tenta licenciar separadamente mina, estrada, porto e linha de transmissão, burlando a análise integrada de impactos. Ressaltou que o empreendimento envolve rio de jurisdição federal, o que, por si só, exigiria competência do IBAMA.
A Des. Maria Maura Martins, por sua vez, destacou que o interesse público primário reside na proteção dos povos indígenas e do meio ambiente, não na defesa de interesses empresariais. Lembrou que é papel do Judiciário exercer o controle de constitucionalidade sobre atos do Executivo e do Legislativo que atentem contra direitos fundamentais.
Tais votos, fundamentados nas provas constantes nos memoriais apresentados pelas comunidades indígenas e organizações parceiras, infelizmente foram vencidos pela maioria dos desembargadores, a qual, por sua vez, acolheu argumentos da divergência que merecem firme contestação.
Afirmaram que o IBAMA teria manifestado desinteresse em conduzir o licenciamento, e que isso justificaria a atuação do órgão estadual. Essa interpretação inverte o fundamento da legalidade administrativa: a competência do IBAMA decorre da Constituição, não de sua vontade institucional. Sua omissão não legitima a atuação de um ente incompetente.
Além disso, sustentou-se que os critérios técnicos entre IBAMA e IPAAM seriam equivalentes, o que tornaria indiferente qual órgão conduz o licenciamento. Tal argumento ignora que o problema não é técnico, mas jurídico: a substituição do IBAMA pelo IPAAM em empreendimentos com impacto sobre terras indígenas e rios federais viola frontalmente a Constituição Federal. Suposta eficiência não autoriza a usurpação de competências definidas por norma constitucional.
Também foi relativizado o papel do Judiciário, sob o argumento de que não lhe caberia interferir na escolha do órgão licenciador. Esse posicionamento contraria frontalmente a função do Judiciário como garantidor da legalidade e dos direitos fundamentais, sobretudo quando se está diante de omissões e manipulações institucionais que atentam contra os povos indígenas.
É importante, ainda, esclarecer que não há ameaça à ordem pública ou à economia nacional. Segundo especialistas da área, como a FEBRAGEO, a jazida de Autazes não resolve o déficit nacional de potássio e existem alternativas previstas no Plano Nacional de Fertilizantes. A decisão judicial que suspendeu a atuação do IBAMA representa, portanto, uma inversão de valores constitucionais.
As organizações signatárias reiteram que nenhum licenciamento pode ser considerado válido sem consulta prévia, livre, informada e de boa-fé às comunidades afetadas, conforme determina a Constituição Federal e a Convenção 169 da OIT. Denunciam também a atuação conivente do Estado com o avanço do extrativismo sobre terras tradicionalmente ocupadas.
Por isso, reafirmamos nossa posição contrária ao Projeto Potássio Autazes, à violação dos direitos do povo Mura e às decisões judiciais que desconsideram o direito originário à terra e à consulta legítima.
Brasília, 19 de maio de 2025.
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amazonas – APIAM
12/maio/2025
Nesta segunda-feira, 12 de maio de 2025, retomam-se os trabalhos da Câmara de Conciliação sobre a Lei nº 14.701/2023, conhecida como “Lei do Marco Temporal. Em abril, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal solicitaram a prorrogação do prazo para a conclusão da análise do anteprojeto de lei complementar, pedido seguido pela Advocacia-Geral da União (AGU). A sessão de hoje dá continuidade à leitura a partir do artigo 19 do texto apresentado pelo gabinete de Gilmar Mendes e, ao mesmo tempo, lê artigos correspondentes (se existirem) na proposta apresentada pela AGU. As audiências estão previstas para se encerrar em 25 de junho de 2025.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil se retirou desse processo por considerá-lo ilegítimo e inconstitucional. O espaço de negociação foi instituído sem a devida consulta aos povos indígenas, em clara violação ao artigo 6º da Convenção 169 da OIT, ignorando recursos e denúncias apresentados ao longo do tempo pela organização, reconhecida por sua legítima representação indígena.
Mais uma vez, reiteramos a preocupação com o andamento das audiências conduzidas pelo ministro Gilmar Mendes. Sob a justificativa de reunir sugestões e buscar alternativas de “meio-termo” entre os interesses dos povos indígenas e do agronegócio, seu gabinete extrapolou os limites do papel de relator, ultrapassando o escopo da Lei nº 14.701/2023 e dos debates travados na Comissão Especial. A iniciativa de apresentar um anteprojeto de lei oriunda de um ministro do Supremo Tribunal Federal é, por si só, inadequada; além disso, o conteúdo da proposta representa graves retrocessos, o chamado relevante interesse público da União nesses territórios (Art. 231, §6º), além de modificar substancialmente o procedimento administrativo de demarcação previsto no Decreto nº 1.775/1996, prevê a criminalização de retomadas indígenas, remoção forçada de indígenas sob justificativa de “Paz Social”, revisão e reanálise de procedimentos administrativos demarcatórios em andamento, fragilizar o direito à consulta livre, prévia e informada, assegurado pela Convenção 169 da OIT.
Diante do exposto, a APIB reafirma sua posição contrária ao prosseguimento dos trabalhos desta Câmara de Conciliação, considerando que os direitos fundamentais dos povos indígenas são inegociáveis.
De modo sucinto, elencamos os principais problemas que seguem em debate na Câmara de Conciliação:
● Proposta de Lei Complementar em detrimento da natureza ordinária da Lei no 14.701/2023 (Art. 1o): A Lei no 14.701/2023 se propôs a regulamentar exclusivamente o Art. 231 da Constituição Federal. Por essa razão, sua inconstitucionalidade formal deveria ter sido declarada, em vez de ser convertida em lei complementar e expandida para temas não originalmente tratados. A transformação da norma e a ampliação de seu escopo avançaram sobre propostas não debatidas previamente e que não deveriam partir de um Ministro do Supremo Tribunal Federal, ferindo a separação dos poderes e o devido processo legislativo. O Art. 1o da proposta de PLC estabelece, que sua finalidade é regulamentar o Art. 231 da Constituição, abrangendo o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão das terras indígenas – em especial, regulamentando a mineração (Art. 231, §3o) e o relevante interesse público da União em Terras Indígenas (Art. 231, §6o), além dos dispositivos constitucionais que tratam da autorização do Congresso Nacional e da concessão da União para pesquisa e lavra mineral (Arts. 49, XVI, e 176, §1o), bem como da competência da Justiça Federal para julgar disputas sobre direitos indígenas (Art. 109, XI);
● Regulamentação do “Relevante Interesse Público da União” em Terras Indígenas (Art. 21): O anteprojeto de Lei Complementar define que obras de infraestrutura, exploração mineral e atividades de defesa nacional podem restringir o usufruto exclusivo indígena. A proposta de Lei Complementar advém do reconhecimento, pelo Gabinete do Ministro Gilmar, de que haveria uma omissão inconstitucional do Congresso em não editar a referida lei. No entanto, trata-se de discricionariedade do Congresso regulamentar a matéria e APIB e União alertam que a medida atende antes a interesses privados do que ao chamado “relevante interesse público”, facilitando a exploração econômica das terras indígenas;
● Fragilização da Consulta Prévia, Livre e Informada (Arts. 27 a 31): A proposta esvazia o direito à consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas, constante na Convenção 169 da OIT, ao transformar o processo em uma mera formalidade, sem garantir sua efetiva influência nas decisões. Apesar de listar diretrizes como respeito à diversidade cultural e transparência, o texto impõe limitações ao estabelecer que, mesmo diante da manifestação contrária das comunidades, atividades e empreendimentos poderão prosseguir com base em critérios vagos de “interesse público” e “proporcionalidade”. Além disso, ao concentrar no Presidente da República o poder de autorizar a continuidade das atividades contra a vontade dos povos indígenas, a proposta enfraquece a autodeterminação dessas comunidades e facilita a imposição de projetos potencialmente prejudiciais a seus territórios e modos de vida;
● Criminalização das Retomadas Indígenas (Arts. 82 a 88): Proíbe retomadas antes da desocupação voluntária por não-indígenas ou da conclusão da demarcação, o que pode levar à criminalização de comunidades indígenas e justificar ações policiais estaduais contra elas. A proposta do Ministro Gilmar Mendes prevê que, para as áreas ocupadas até 23 de abril de 2024 – data em que o mesmo suspendeu as ações judiciais contra a Lei no 14.701/2023 -, Polícia Federal, Força Nacional e Polícia Militar deverão empreender protocolos de negociação para a desocupação em 30 dias. Já para retomadas indígenas posteriores a esta data, será determinada a remoção imediata, sem possibilidade de mediação pelas Comissões de Soluções Fundiárias, criadas pela Resolução CNJ no 510/2023, por determinação do STF na ADPF no 828. Vale lembrar que, no Caso Raposa Serra do Sol, o STF reconheceu a legitimidade das retomadas indígenas diante da inércia do Estado, que deveria ter concluído a demarcação desses territórios em cinco anos após a promulgação da Constituição;
● Remoção Forçada de Indígenas sob justificativa de “Paz Social” (Art. 6o, §13, III): Estabelece que, em casos em que seja “demonstrada a absoluta impossibilidade da demarcação” e “buscando a paz social”, o Ministério da Justiça e Segurança Pública poderá realizar uma “compensação” às comunidades indígenas, concedendo “terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas”, o que remonta às remoções forçadas de indígenas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e é rechaçado pela Constituição Federal de 1988. Não são objeto de definição objetiva, por fim, o que caracterizaria a impossibilidade de demarcação e a quem atenderia a compensação aos indígenas visando a “paz social”.
● Substituição da Demarcação de Terras Indígenas por Desapropriação de Interesse Social (Art. 89, §4o): A partir de um ano após a aprovação da referida Lei Complementar, novos pedidos de demarcação serão considerados apenas para áreas onde houver comprovação da presença de povos indígenas isolados. A minuta estabelece que a FUNAI deverá publicar, em uma “lista pública”, no prazo de até 60 dias após a entrada em vigor da lei, os pedidos de demarcação apresentados pelos indígenas, devendo essa lista ser atualizada mensalmente em caso de novas solicitações. Contudo, o texto prevê que as reivindicações feitas após um ano da divulgação dessa lista serão processadas exclusivamente por meio de desapropriação por interesse social, exceto nos casos em que houver identificação posterior de indígenas isolados, situação em que se aplicará o procedimento regular de demarcação;
● Indenização por Terra Nua a Ocupantes Não Indígenas (Arts. 10 a 12): A proposta prevê que, após a homologação e antes do registro da terra indígena, ocupantes não indígenas com posse direta, contínua e anterior a 5 de outubro de 1988 sejam reassentados ou indenizados pela terra nua e benfeitorias; caso contrário, apenas benfeitorias úteis e necessárias serão compensadas. A terra nua será avaliada conforme a tabela do ITR, que é um valor próximo ao valor de mercado, com pagamento em dinheiro ou permuta de imóvel equivalente. Além de não estar prevista na Constituição, a indenização por terra nua pode inviabilizar demarcações e comprometer políticas indigenistas, como no caso Nhanderu Marangatu, cuja indenização total alcançou metade do orçamento anual da FUNAI em 2024;
● Direito de Retenção de Particulares até Recebimento da Indenização (Art. 11, §2o): A proposta garante o direito de retenção ao não-indígena, permitindo sua permanência na área até o pagamento do valor incontroverso da indenização da terra nua e das benfeitorias em dinheiro ou título da dívida agrária, se for do seu interesse. Ocorre que não se pode admitir que o direito de retenção seja utilizado pelo particular para impedir a realização do dever constitucional da União de demarcar as Terras Indígenas, impondo que a procrastinação na definição do valor da indenização impeça o acesso da comunidade indígena a seu território tradicional, o que é objeto de embargos de declaração da União e do Povo Xokleng no RE 1017365/SC (Tema 1031) pendentes de julgamento;
● Definição de Renitente Esbulho para fins indenizatórios restrita a Conflito Físico ou Controvérsia Judicial (Art. 4o, §1o): Outro ponto da proposta que também deve aguardar o julgamento dos embargos de declaração no RE 1017365/SC é a definição de renitente esbulho. Isso porque, nos termos do Item IV do Tema 1031, caso exista renitente esbulho contemporâneo à promulgação da Constituição, somente serão indenizadas as benfeitorias úteis e necessárias. Uma definição restritiva do renitente esbulho que requer da comunidade indígena a comprovação de conflito físico ou a judicialização de demanda possessória desconsidera a remoção forçada dos povos indígenas de suas terras pelo próprio Estado e o paradigma tutelar que os impedia de acessar a justiça diretamente. Razão pela qual se requer, em sede de embargos, definição mais ampla do renitente esbulho no que diz respeito à sua vinculação à presença indígena na área segundo seus usos, costumes e tradições;
● Ampliação da Participação de Entes Federados e Terceiros no Processo de Demarcação antes da Delimitação da Ocupação Indígena (Art. 6o, II, b e Art. 5o, §§2o e 3o): Estados e municípios poderão participar dos grupos técnicos desde o plano de trabalho, ao indicar técnicos para acompanhar estudos de demarcação, ampliando a influência de interesses econômicos locais. Também é prevista a intimação de proprietários rurais antes mesmo da definição do perímetro da área de ocupação indígena. Esse mecanismo enfraquece o direito indígena ao território ao permitir interferências no processo antes da conclusão dos estudos técnicos e
publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação. A proposta exige, ainda, a gravação de informações orais de indígenas, comprometendo a metodologia antropológica. Além disso, facilita contestações, tornando o processo mais lento;
● Revisão e Reanálise de Procedimentos Administrativos Demarcatórios (Art. 89): Determina que processos de demarcação não finalizados devem seguir novas regras, alterando critérios técnicos já consolidados. Apenas terras já declaradas e homologadas e os RCIDs já aprovados permaneceriam resguardados. Além disso, processos decisórios no Ministério da Justiça e na Presidência da República precisarão se adequar às novas normas, incluindo as regras de indenização. Trata-se de imposição de reanálise arbitrária e protelatória, dado que a retroatividade da lei aos procedimentos administrativos em curso afronta os Arts. 5o, incisos incisos XXXVI, LXXVIII e Art. 37, caput pois lei nova não pode atingir direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, tampouco a Administração Pública poderia inobservar a eficiência e a celeridade processual de seus atos administrativos;
● Redimensionamento de Terras Indígenas (Art. 14): A proposta restringe, ao período de cinco anos contados da demarcação, o direito da comunidade indígena solicitar a revisão da extensão do seu território por descumprimento do Art. 231. Ainda que esteja de acordo com o que o STF decidiu no Tema 1031, há questionamentos sobre o prazo decadencial desse direito constitucional pendentes de julgamento nos embargos ao RE 1017365/SC (Caso Xokleng). Tendo em vista que a imposição desse prazo impediria a correção de demarcações feitas em desacordo com o artigo 231 da Constituição, mesmo quando comprovado erro grave e insanável. Além disso, o STF
já consolidou o entendimento de que atos administrativos flagrantemente inconstitucionais não podem ser protegidos pela decadência legal, garantindo que a revisão de processos demarcatórios possa ocorrer sempre que houver violação dos direitos indígenas assegurados constitucionalmente.
Diante destas considerações, o espaço da câmara de conciliação se tornou um espaço
ilegítimo e inconstitucional
12/maio/2025
As organizações indígenas APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e APIAM (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amazonas) vêm a público manifestar seu veemente repúdio à decisão proferida pela 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), no julgamento do Agravo de Instrumento nº 1037175-40.2023.4.01.0000, ocorrido no dia 07 de maio de 2025. O julgamento, que deveria analisar 19 agravos interpostos no contexto da tentativa de imposição do Projeto Potássio Autazes, que visa instaurar um projeto de mineração sobreposto à Terra Indígena Soares, resultou na análise isolada de apenas um recurso, com decisões parciais e falas inaceitáveis de dois dos três desembargadores que compuseram a sessão.
Contrariamente ao que tem sido difundido por setores da mídia, a decisão não representa vitória para o povo Mura, tampouco reforça o direito à autonomia indígena. Pelo contrário, a decisão válida uma consulta forjada, manipulada e desrespeitosa aos protocolos próprios do povo Mura, ao excluir comunidades diretamente afetadas — como a do Lago do Soares — e suas representações legítimas, como a OLIMCV (Organização de Lideranças Indígenas Mura de Careiro da Várzea). A tentativa de legitimar esse processo de consulta — viciado desde a origem — fere frontalmente os preceitos da Convenção 169 da OIT e do artigo 231 da Constituição Federal.
As provas constantes nos autos demonstram que o projeto da Potássio do Brasil incide sobre a Terra Indígena Soares, reivindicada desde 1997 e com estudos de demarcação em curso pela FUNAI. Análises cartográficas da própria Fundação Nacional dos Povos Indígenas confirmam a sobreposição do empreendimento sobre o território tradicional. Ignorar essas evidências, como fizeram os votos dos desembargadores no julgamento, é abrir precedente gravíssimo para a violação sistemática dos direitos territoriais indígenas em nome do discurso desenvolvimentista.
Reafirmamos que não se trata de debate sobre regularidade procedimental, mas sim da proteção de direitos fundamentais. A tentativa de dividir o povo Mura, criar falsos consensos e deslegitimar lideranças históricas representa manipulação institucional inaceitável. As decisões tomadas no processo em julgamento estão lastreadas em atas adulteradas, denúncias de cooptação e exclusão de comunidades contrárias ao projeto — fatos amplamente documentados no processo.
Ademais, a tentativa dos desembargadores de afirmar que não há terra indígena na área, ao mesmo tempo em que se reconhece uma “consulta indígena” à população local, é contraditória e revela o uso estratégico de retóricas jurídicas para enfraquecer os direitos indígenas. Ao afirmarem que houve consulta às comunidades indígenas, os desembargadores reconhecem a existência das comunidades indígenas e de suas terras. Consequentemente, é necessário que tenha autorização do Congresso Nacional conforme estabelece a Constituição Federal de 1988, matéria que os desembargadores não levaram em consideração.
Por fim, o alerta que trazemos é o de que a forma como este caso venha a ser decidido servirá de paradigma para outros empreendimentos que aguardam a fragilização dos direitos indígenas como porta de entrada para seus projetos. Uma decisão que viole o direito à consulta prévia, livre e informada, que desconsidere aos direitos territoriais do povo Mura e que tolere manipulações internas entre comunidades, é uma autorização velada para o avanço do extrativismo sobre os territórios indígenas de todo o país. Por isso, confiamos que o TRF1 reafirmará o compromisso com a Constituição e com os povos originários, sem legitimar um processo marcado por violações.
Brasília, 09 de maio de 2025.
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amazonas – APIAM
30/abr/2025
Foto: Maiara Dourado/Cimi
Documento coletivo exige que justiça climática comece com o reconhecimento e proteção dos territórios, destacando propostas concretas para a conferência do clima em Belém
Nesta quarta-feira, 30 de abril, representantes dos Povos Indígenas e dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil e da Bacia Amazônica divulgam uma declaração política conjunta durante encontro regional preparatório para a 30ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que será realizada em 2025, em Belém (PA). A carta reafirma a aliança histórica entre os povos e sua centralidade na luta contra a crise climática.
Assinam a declaração a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e o G9 Indígena da Bacia Amazônica. A declaração resultou do Encontro Regional de Povos Indígenas e Povos e Comunidades Tradicionais Rumo à COP 30, que aconteceu em Brasília, nos dias 23 a 25 de abril.
O encontro foi co-organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), com apoio da GIZ, e contou com três dias de intensas discussões e reafirmações de prioridades e solidariedade entre os movimentos presentes, representantes do governo e da filantropia. A ação faz parte da campanha global “A Resposta Somos Nós”, que exige, entre suas demandas, o reconhecimento de direitos territoriais como política climática global
Na declaração política, as organizações denunciam os impactos do desmatamento, da mineração, do agronegócio e de grandes empreendimentos sobre seus corpos, territórios e modos de vida. “Nós não somos os responsáveis pela crise climática, somos a solução”, diz o texto.
Entre as principais demandas apresentadas à presidência brasileira da COP 30 estão: a inclusão dos direitos territoriais como política climática global, a proteção de povos indígenas isolados e defensores ambientais, o financiamento direto e desburocratizado para suas organizações e uma transição energética justa, que respeite suas governanças. A declaração também exige participação efetiva nas negociações climáticas, com credenciais e assentos nos espaços de decisão da conferência.
Leia o documento completo em português, inglês e espanhol.