27/out/2022
Concedida pela CIDH, a audiência também contou a participação de representantes da COIAB, Univaja e do povo Pataxó
Na última quarta-feira (26/10) a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) participou de uma audiência pública da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que tinha como objetivo apresentar informações atualizadas sobre a situação dos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil. A audiência também contou com a presença de representantes da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) e da liderança Rodrigo Pataxó, que também expressaram a importância da Comissão realizar uma visita de monitoramento no país.
Na ocasião, as organizações brasileiras falaram sobre a escalada de violências que os povos originários do Brasil estão enfrentando em decorrência das eleições gerais e dos projetos de lei da agenda anti-indígena do Governo Bolsonaro que tramitam no Congresso Nacional.
Um exemplo disso é o PL 191/2020 que se aprovado autoriza a mineração e construção de hidrelétricas em terras indígenas, inclusive naquelas que há grupos isolados. Além do PL 2159/2021 que incentiva atividades que destroem o meio ambiente e a tese do Marco Temporal que ameaça a demarcação de terras ancestrais. O julgamento da tese no Supremo Tribunal Federal (STF) estava marcado para o mês de junho, mas foi suspenso e permanece sem uma nova data.
Durante a audiência, membros da Fundação Nacional do Índio (Funai) afirmaram que o Estado do Brasil está defendendo as comunidades indígenas do país. A fala foi contestada pela própria CIDH, visto que os povos indígenas tiveram que assumir a responsabilidade do poder público de proteger os seus territórios e florestas. Com isso, a Comissão ressaltou seu compromisso com os indígenas brasileiros e o desejo de visitar o país em 2023.
Assista a audiência pública aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=aROdUyqoL1o
24/out/2022
Centenas de corações, nomes e mensagens foram desenhados num painel de 20 metros de comprimento, em memória às vítimas da pandemia. O ato foi realizado neste domingo, 23, na Avenida Paulista, pela Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico) e pelo projeto de produção audiovisual “Eles poderiam estar vivos”. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e as Organizações Indígenas da Região Sudeste do Brasil (Arpin-Sudeste) participaram com a presença de indígenas Terena e Guarani.
Entre as lágrimas e a saudade, foram feitas críticas ao governo Bolsonaro, que se aproveitou da crise de saúde pública durante a pandemia para cobrar propina de 1 dólar por dose de vacina. A demora do atual governo em garantir a vacinação e a campanha feita por Bolsonaro em favor de medicamentos ineficientes no tratamento da doença, como a Cloroquina, custou a vida de milhares de pessoas. Entre os indígenas, a doença afetou 162 povos do Brasil, matando 1324.
“Não podemos esquecer que enquanto chorávamos a perda das nossas pessoas mais amadas – eu, por exemplo, perdi minha mãe -, o presidente zombava de quem estava morrendo com falta de ar porque não havia respiradores suficientes para atender a todos os internados, duvidava da ciência, espalhava informações falsas, incentivava a aglomeração de pessoas e desaconselhava o uso de máscara”, diz Paola Falceta, presidente da Avico.
24/out/2022
Foto: Tiago Miotto/Cimi
Entidade pede que todas as medidas de apoio logístico necessárias sejam tomadas para o exercício do voto no 2º turno
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) solicitou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que os Tribunais Regionais Eleitorais dos estados, zonas e cartórios eleitorais dos municípios seja notificados quanto à providência de medidas de apoio logístico necessárias para garantir a segurança e o transporte “para o exercício do voto pela população indígena em todo o território nacional durante o segundo turno das Eleições 2022”.
A entidade vem recebendo diversas denúncias e relatos de comunidades que sofreram o cerceamento do direito ao voto pela falta de transporte e ameaças que, e em alguns casos, chegou ao ponto de isolar aldeias em um cerco armado.
No ofício n° 169/2022, com data do dia 21 de outubro, a organização lista os principais casos de violação do direito constitucional em localidades com índice de abstenção semelhante à média nacional de 20,91%,o equivalente a 32,7 milhões de eleitores.
De acordo com a ação do partido Rede Sustentabilidade, que motivou a manifestação do Superior Tribunal Federal (STF) a respeito do fornecimento de transporte durante o pleito, o elevado índice de abstenção no primeiro turno se deve à crise econômica e à pobreza, o que impacta diretamente no direito do voto dos mais vulneráveis.
“O transporte insuficiente e, na maioria dos casos, inexistente, contribuiu para o alto índice de abstenção no 1º turno. Os povos indígenas já declararam apoio ao candidato Lula e enfrentam o descaso de algumas administrações municipais por isso”, afirma o coordenador executivo da Apib, Kleber Karipuna.
No último dia 22 de Outubro, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, decidiu que os estados também podem oferecer, voluntariamente e de forma gratuita, serviço de transporte público no dia da votação do segundo turno, dia 30. O STF já havia autorizado os municípios a conceder o transporte gratuito no dia da eleição.
Segundo o ministro, a oferta pode ser feita por qualquer meio de transporte. Ele também afirmou que os serviços podem atender eleitores que não moram no local onde votam e precisam se deslocar entre municípios.
No Amazonas, mais de 400 indígenas do povo Yanomami, que se deslocaram de barco à sede de Barcelos (a 400 quilômetros de Manaus) estão sem combustível para retornar às aldeias, desde o dia 02.10.
Os Yanomami solicitaram o funcionamento de seções eleitorais dentro do território, no rio Demeni, mas o pedido foi negado e os indígenas afirmam que esperavam receber o apoio de órgãos públicos, especialmente da Prefeitura, para retornarem às aldeias. Alguns enfrentaram cinco dias de viagem para exercer o direito ao voto.
No município de Prado (BA), onde vivem seis mil indígenas, cidade com maior número proporcional de indígenas da Bahia, a abstenção foi de 27,84%. Várias comunidades ficaram isoladas e impedidas de sair, algumas, por cerco armado de pistoleiros e fazendeiros da região, de acordo com denúncia registrada pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Houve fechamento de passagens em estradas para impedir a votação de indígenas.
Confira o documento na íntegra: Ofício N 169_2022.docx
21/out/2022
Na noite da ultima terça-feira (18) parentas e parentes Kaingang e Laklãno Xokleng retomaram a área no Morro do Santana, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. O local estava abandonado, e na mira das construtoras da cidade que pretende construir condomínios.
O Local trata-se de um território ancestral Kaingang, que agora está em processo de retomada, para que os parentes e parentas possam proteger esse espaço da ganancia do não indígena. Chega de derrubar arvores, chegar de tirar vidas!
Dona Iracema, segura em suas mãos, mudas de Fág (araucária) que é sagrada para o povo Kaingang e que serão plantadas no Morro do Santana, dona Iracema é Kujá, e conta que naquele espaço estão enterrados muitos umbigos Kaingang e fala que um dos principais objetivos da retomada é preservar a mata e sua diversidade.
Nossos encantados nos acompanham e estão conosco em tudo que existe ao nosso redor, as arvores, os animais, o ar, a água, e a cada arvore que plantamos, também estamos plantando esperança, esperança de vida, não só a quem planta, mas para todos e também precisamos cuidar das matas que já existem e resistem.
Resista como um Fág! Resista como nós indígenas!
O Futuro é indígena! O futuro é agora!
Foto @danihuberty/Comin
21/out/2022
Foto: Hellen Loures/Cimi
Apib denuncia contexto crítico e de violação do direito constitucional que envolve, em alguns casos, até cerco armado
A falta de segurança nos territórios aliada à falta de transporte gratuito durante o primeiro turno das Eleições 2022 impediu o exercício do direito ao voto a muitas comunidades indígenas distantes dos respectivos colégios eleitorais. Diversas denúncias e relatos vêm sendo recebidos pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) após avaliação sobre a votação do último dia 02 de Outubro.
Ameaças relacionadas à disputa de território, anteriores ao período eleitoral, culminaram em intimidações ao ponto de algumas comunidades evitarem sair de suas terras para votar. O transporte insuficiente e, na maioria dos casos, inexistente, também contribuiu para o alto índice de abstenção no 1º turno, nessas localidades.
Na última quarta-feira, 20.10, o Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para confirmar a decisão do ministro Roberto Barroso que autoriza a administração municipal a fornecer transporte público gratuito no dia das eleições, sem que isto configure crime eleitoral. Conforme a decisão, será possível também oferecer linhas especiais para regiões mais distantes dos locais de votação. Prefeitos poderão usar ônibus escolares para essa finalidade.
No entanto, a decisão não torna o ato obrigatório, ficando a critério do gestor público, conforme as condições orçamentárias. Em alguns casos, essa prerrogativa abre margem para decisões de cunho ideológico. A Apib declarou apoio ao candidato Luiz Inácio Lula da Silva nessas eleições.
“Estamos solicitando providências junto aos órgãos responsáveis para que haja maior fiscalização quanto a tentativas de coação e de impedimento ao exercício legal do voto, diminuindo assim o número de abstenção e fazendo prevalecer o direito dos povos indígenas de participar, com dignidade, do processo democrático do País”, afirmou o coordenador executivo da Apib, Kleber Karipuna.
A organização está oficiando o Tribunal Superior Eleitoral, bem como os Tribunais Regionais Eleitorais sobre a necessidade da garantia de transporte para localidades distantes, bem como denunciando crimes eleitorais.
No município de Guajará-mirim (RO), região com maior número de indígenas do Estado, uma população de 4.721 indígenas que vive em 32 aldeias, muitos indígenas foram cooptados a votar no candidato que ofereceu transporte aos que tinham dificuldades de deslocamento. A denúncia foi confirmada pelo advogado Ramires Andrade, que atuou na Campanha Indígena no Estado.
“Infelizmente é bastante comum e nessa eleição em Rondônia não foi diferente. Aliás, bem mais agravada, principalmente para os indígenas da região do município de Guajará Mirim. Além de elevar bastante o número de abstenções, existe essa situação de transporte ilegal”, afirmou.
A falta de transporte comprometeu, segundo ele, principalmente os povos Wari, Canoé, Oro Mon e Jabuti, que vivem em situação de extrema vulnerabilidade. Os povos indígenas de Guajará Mirim representam 10% da população total da cidade, de 46.556 pessoas, segundo o IBGE. O município registrou índice de abstenção de 25,52%, o equivalente 7.225 do total de 28.308 aptos a votar, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Em Tocantínia (TO), boa parte do povo Xerente ficou sem votar por conta da insuficiência de transporte. A comunidade manifestou o desejo de que o transporte fique sob a tutela da Justiça Eleitoral, a fim de que não se repita o ocorrido no primeiro turno.
“Disponibilizaram uns micro-ônibus e acabou que não deu para todo mundo ir votar então agora no segundo turno, isso se torna preocupante para a gente porque a gestão é Bolsonaro E aí a gente tem quase certeza que não vai conseguir”, afirma Vanessa Xerente, candidata a deputada federal pela Bancada Indígena.
A cidade teve um índice de abstenção de 15,70%, o equivalente a 765 do total de 4.874 eleitores aptos a votar.
O nível abstenção em todo o País foi de 20,91%, sendo a região Sudeste (21,96%) com maior índice, seguida do Centro-Oeste (21,34%); Norte (20,93%), Nordeste (19,52%) e Sul (19,34%).
De acordo com a provocação do partido Rede Sustentabilidade junto ao STF, que originou a decisão do último dia 19.10, o elevado índice de abstenção no primeiro turno estava associado à crise econômica e à pobreza, o que impacta no direito do voto dos mais vulneráveis. Por isso, requereu o transporte gratuito e universal no segundo turno.
No Amazonas, mais de 400 indígenas do povo Yanomami, que se deslocaram de barco à sede de Barcelos estão sem combustível para retornar às aldeias, desde o dia 02.10. Eles conseguiram gasolina por conta própria para exercer o direito ao voto, depois de terem solicitado que seções eleitorais voltassem a funcionar no território. O pedido foi negado e os indígenas afirmam que esperavam receber o apoio de órgãos públicos, especialmente da Prefeitura, para retornarem para casa. Em alguns casos, a viagem pode chegar a cinco dias, dependendo do tipo de motor utilizado.
Cerco armado
No oeste do Paraná, onde já existem conflitos territoriais no dia a dia das comunidades indígenas, os ataques e ameaças se intensificaram durante o período eleitoral com a propagação de áudios intimidando as comunidades ao ponto de fazer com que eles sequer cogitassem votar.
“Com os Avá-Guarani, foram muitas ameaças e pressões, muitos tiveram muito receio de sair de suas comunidades para votar. Além disso, a região é muito vulnerável socialmente. Estamos tentando acionar os cartórios eleitorais para o apoio ao deslocamento, que todos os anos teve. Este ano, estamos enfrentando uma retaliação por parte dos municípios porque sabem que o povo indígena está com Lula. A gente sentiu muito isso”, afirma Marciano Rodrigues, coordenador institucional da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul).
A situação dos Avá-Guarani é complexa pelo número de comunidades espalhadas na região em grupos que variam de 100, 50 famílias até acampamentos menores, com dez, todos localizados em pontos distantes, todos improvisados. Eles foram desterritorializados para a construção da hidrelétrica de Itaipu.
No município de Prado (BA), onde vivem seis mil indígenas, cidade com maior número proporcional de indígenas da Bahia, a abstenção foi de 27,84%. De acordo com denúncia registrada pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), além de coação houve fechamento de passagens em estradas para impedir a votação de indígenas. Algumas comunidades registraram cerco armado por pistoleiros e fazendeiros.
A denúncia foi ouvida durante a I Caravana Intercultural Indígena, que passou pela região entre os dias 15 a 17 de outubro. A iniciativa foi idealizada justamente para conter o contexto de violência e violações, por meio da reivindicação de proteção e justiça para os povos originários junto às autoridades.
21/out/2022
Articulação solicita que União disponibilize documentos da perícia e do resultado da autópsia realizada no corpo do indígena
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolou na última quinta-feira (20/10) uma petição no Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo que o Governo Federal dê esclarecimentos sobre a morte do indígena de Tanaru, também conhecido como “Índio do buraco”. Ele vivia em isolamento voluntário e foi encontrado morto na sua maloca, em Rondônia, no dia 23 de agosto de 2022 por um servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Na ação, a Apib relembra que o corpo do indígena foi removido para o Instituto Nacional de Criminalística da Polícia Federal, com sede em Brasília, para perícia e autópsia. Os exames teriam apontado causa natural para o falecimento do indígena, mas os documentos que comprovariam os resultados dos exames não foram disponibilizados pela Funai.
O indígena era o último do seu povo e deve ser sepultado na própria maloca onde vivia na Terra Indígena Tanaru. No dia 14 de outubro, a Fundação afirmou em reunião que o corpo já estava em Rondônia, mas até o momento não foi informado se o procedimento já ocorreu ou por quais razões o sepultamento ainda não foi realizado. A Apib solicita que a União preste informações detalhadas sobre o caso e apresente qual destinação será dada à TI, protegida por uma Portaria de Restrição de Uso.
“Tendo em vista a omissão quanto às informações mencionadas, bem como o fundado receio pela veracidade das irregularidades relatadas, torna-se de extrema urgência que a FUNAI se pronuncie formalmente e por escrito acerca do relatado, bem como que compartilhe os documentos referentes aos procedimentos investigatórios e análises do caso e informe onde encontra-se o corpo de nosso parente e em quais condições”, diz um trecho do documento.
19/out/2022
Eles estão sendo ameaçados devido a mensagens de ódio de bolsonaristas
Fazendeiros e empresários da região do Vale do Guaporé, em Rondônia, estão promovendo ódio contra indígenas dos povos Migueleno, Kujubim e Puruborá. O objetivo é conseguir mais votos para Jair Bolsonaro no segundo turno das Eleições 2022, que acontece no dia 30 de outubro.
Nos últimos dias, um vídeo com um minuto de duração começou a circular no WhatsApp dos moradores locais. Com uma música ao fundo como se fosse um filme de horror, o vídeo mostra um mapa com uma área gigante e anuncia em letras vermelhas. “Você sabia que a maioria de vocês estão [sic] dentro dessa área que é de interesse da Funai que a esquerda promete virar reserva indígena”.
Após o compartilhamento do vídeo, indígenas dos três povos relatam que estão sofrendo com ameaças. “Depois que ele começou a circular, os indígenas começaram a sofrer intimidações, já que o mapa apresentado se refere a territórios reivindicados pelos povos Migueleno e Puruborá”, contou uma vítima em texto publicado no site UOL.
A Articulação dos Povos Indígenas (Apib) se solidariza com os povos originários que estão sofrendo com ameaças após o compartilhamento do conteúdo, que possui informações falsas e se opõe a demarcação de terras indígenas como é previsto na Constituição Federal. A Apib também reforça o pedido das organizações indígenas locais para que o Ministério Público e a Justiça Federal puna os responsáveis e garanta a proteção de lideranças destes povos.
Abaixo, confira nota publicada por organizações indígenas:
Nota de Solidariedade aos Povos Migueleno Kujubim e Purubora
*Texto com informações da Coluna “Vídeo, reunião e ameaça: bolsonarismo ataca indígenas por votos na Amazônia” de Carlos Madeiro: https://noticias.uol.com.br/colunas/carlos-madeiro/2022/10/16/video-reuniao-e-ameaca-bolsonarismo-ataca-indigenas-por-votos-na-amazonia.htm
19/out/2022
Por João Peres, Marcos Hermanson Pomar, Tatiana Merlino
O Joio e o Trigo em parceria com o Intercept.
18 de outubro de 2022.
O COORDENADOR REGIONAL da Funai de Barra do Garças, no Mato Grosso, afirmou em reunião fechada que o presidente do órgão, Marcelo Xavier, pretende legalizar o garimpo e a extração de madeira em terras indígenas. Em gravação obtida com exclusividade pelo O Joio e o Trigo em parceria com o Intercept, o capitão da reserva Álvaro Carvalho Peres diz que Xavier está estudando duas instruções normativas: “Uma que permite o indígena a fazer o manejo florestal, vender a madeira, cultivar a madeira. E a segunda é o garimpo em terra indígena, que já existe hoje de forma irregular”.
As declarações foram dadas em uma reunião realizada em 23 de agosto entre servidores de alto nível da Funai e indígenas ligados ao projeto Independência Indígena – que desenvolvem, junto a fazendeiros vizinhos, plantio de soja, milho e arroz dentro da Terra Indígena Sangradouro, no leste do Mato Grosso.
“E é isso aí que o indígena quer. Indígena não quer mais a roça de toco, não, eles ficarem no sol com a enxada, não”, afirmou Peres, em outro momento. “Ele quer é o maquinário, ele quer a colheitadeira, ele quer a plantadeira, ele quer o trator”.
Marcelo Xavier também defendeu a liberação da mineração nas TIs em entrevista à Rádio Jovem Pan em agosto, dizendo que “a vontade da mineração em terras indígenas” consta na Constituição Federal, que estaria sendo descumprida. O artigo 231 o contradiz. “A lavra das riquezas minerais em terras indígenas só pode ser efetivada com autorização do Congresso Nacional”, afirma o texto constitucional – que dá ainda aos povos indígenas “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.
A Funai foi procurada para comentar as afirmações, mas não se manifestou até o fechamento da reportagem.
Em 2020, o governo federal encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 191, que abre espaço para atividades de mineração em terras indígenas e coloca a Funai na posição de mediadora entre comunidades indígenas e empreendedores – o PL também prevê compensação financeira e participação das comunidades nos lucros.
“Esse projeto não é impositivo”, declarou o presidente Jair Bolsonaro durante visita a uma estação de garimpo ilegal na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, em outubro do ano passado. “Se vocês quiserem plantar, vão plantar. Se vão garimpar, vão garimpar. Se quiserem fazer algumas barragens no vale do rio, vão poder fazer”.
Ouvida sob sigilo, uma fonte que atuou na Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Social da Funai de Brasília durante a gestão Xavier lembrou que a autarquia estava sim trabalhando em uma instrução normativa de liberação da extração de madeira nas terras indígenas, mas que o entendimento geral no órgão era de que a liberação de garimpo dependeria da aprovação de uma lei complementar no Congresso Nacional.
O presidente da ONG Indigenistas Associados, que reúne funcionários da Funai, nos disse que não se surpreenderia caso a cúpula da fundação tentasse editar uma instrução normativa liberando o garimpo em terras indígenas. “Se encaixaria nessa tendência mais geral de infralegalismo autoritário que tem sido a marca do governo Bolsonaro”, afirmou Fernando Vianna.
Para o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário, o Cimi, Antônio Eduardo de Oliveira, a atual administração da Funai tem se excedido na edição de normas infralegais que vão, em sua opinião, contra os direitos dos povos indígenas. “Esse procedimento é ilegal”, criticou. “Permite que os territórios sejam totalmente desprovidos de vida, inviabilizando a existência das gerações presentes e futuras”.
‘Cai em dois tempos’
O encontro de 23 de agosto durou três horas e foi realizado em um galpão da cooperativa Cooigrandesan, criada para viabilizar o projeto de lavoura mecanizada em Sangradouro. O objetivo era discutir a multa e o embargo impostos pelo Ibama, em julho, aos fazendeiros ligados à lavoura, por desmatamento ilegal e construção de empreendimentos potencialmente poluidores em área protegida.
Estavam lá o Capitão Álvaro Carvalho Peres, responsável por coordenar as atividades da Funai em seis terras indígenas da etnia Xavante; o coordenador de Promoção à Cidadania da Funai, Tenente Coronel Jorge Claudio Gomes; o superintendente de Assuntos Indígenas do Governo do Mato Grosso, Agnaldo Santos; o fazendeiro Ary Ferrari; indígenas ligados à Cooigrandesan e o Coronel Fernando Fantazzini.
Nomeado em outubro do ano passado para a chefia da Direção de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, um dos principais cargos do órgão, Fantazzini não tem no currículo, registrado na rede social Linkedin, qualquer experiência com a questão indígena. Durante a reunião, ele afirmou ter ficado “extremamente preocupado” ao receber a autuação do Ibama e ver o embargo.
“Por quê? Porque nós acreditamos no trabalho da cooperativa. Nós acreditamos no trabalho dos parceiros e viemos aqui de perto saber o que está acontecendo. E, no final das contas, eu estou vendo que houve um mal entendido por parte do Ibama”.
Os contratos entre fazendeiros e indígenas foram assinados em março de 2020, mas o projeto, idealizado por Bolsonaro, já era uma promessa desde 2017, quando o então deputado federal esteve em Primavera do Leste. A iniciativa, também conhecida como “Agro Xavante”, é uma das prioridades da presidência da Funai no mandato de Bolsonaro – que, no último dia 7 de outubro, acabou com os comitês regionais da Funai, frentes que tinham participação de indígenas.
Durante a conversa, o presidente da Cooigrandesan, Gerson Wa Raiwe, relatou que o superintendente do Ibama no Mato Grosso, Coronel Gibson Almeida, teria prometido apoio à empreitada. “Ele falou o que podíamos fazer”, disse Wa Raiwe. “Ele até falou para nós que ele está à disposição para quando nós decidirmos, ou agendarmos uma audiência junto à Funai, ao Ibama de Brasília”. O Ibama foi procurado pela reportagem, mas não encaminhou resposta.
Gomes e Fantazzini explicaram que viajaram de Brasília ao Mato Grosso para averiguar se “o que chegava para eles” na sede da Funai era verdadeiro e dizem ter se convencido, depois de conversas com indígenas, que a área de fato já estava antropizada, ou seja, já havia sido desmatada antes da abertura da lavoura – o que é desmentido por imagens de satélite levantadas pela área técnica local da Funai. Como o Joio revelou em setembro, a área técnica da Funai de Barra do Garças mostrou que apenas 20% da área da lavoura sofreu ação humana antes do início do projeto.
Mesmo que a área já fosse antropizada, a cooperativa precisaria ter protocolado junto ao Ibama, antes do início do projeto, uma ficha de caracterização de atividade pedindo dispensa de licenciamento ambiental. É o que determina a Instrução Normativa nº1 Funai/Ibama – criada justamente para facilitar esse tipo de empreendimento. A FCA foi protocolada 11 meses depois da abertura da lavoura.
Fantazzini e Gomes se comprometeram, contudo, a produzir documentos atestando que a área embargada já havia sofrido ação humana por projetos de lavoura mecanizada desenvolvidos durante a ditadura e no fim da década de 1990. Com isso, convenceriam o Ibama a cancelar as sanções. Gomes chega a prometer que, ao chegar em Brasília, vai “pedir para ele [pessoa não identificada] me trazer a situação de que a área já foi antropizada, já foi plantada arroz, já foi trabalhado anteriormente” para que a versão chegue logo à Coordenação Geral de Meio Ambiente e a produção possa recomeçar.
A versão é semelhante à do presidente da Cooigrandesan. Em conversa com a reportagem por telefone no dia anterior, 22 de agosto, Wa Raiwe disse que, em alguns dias, o Ibama retiraria o embargo. “O Xavante é diferente. Quando fica bravo, esquece tudo. Não pensa em outra coisa a não ser partir para cima. Para quem não conhece, é arriscado se arriscar também”, ameaçou.
“Eu vou pegar lá, que tem uma coordenação [da Funai] que cuida justamente dessa parte de licenciamento ambiental, pegar os dados que já foi provado que ela [a área] já foi antropizada, e isso aí cai em dois tempos”, afirmou Gomes antes da chegada de Fantazzini. “Aí esse embargo termina na hora”.
Clima de violência
A gravação também registra uma série de ataques a servidores de carreira da Funai, apontados como responsáveis pelos revezes sofridos pelo Independência Indígena. “O governo entende que a comunidade indígena é a dona da trilha que ela vai abrir”, Fantazzini afirmou. “Estando dentro da legalidade, nós [a Funai] vamos sempre apoiar”.
“Há alguns anos atrás, havia até embate dentro da Funai, porque a maioria não pensava dessa maneira, era coisa de 5%”, ele seguiu. “Os outros 95% querem que os indígenas continuem como há 522 anos”.
Para Fernando Vianna, presidente da INA, a fala de Fantazzini é “absolutamente fantasiosa”. “Eles [direção da Funai] esticaram a corda até o limite e, quando a corda arrebentou, colocaram a culpa nas pessoas que estão fazendo a coisa da maneira correta”, disse ainda o indigenista, em referência aos servidores da Funai que apontaram irregularidades no projeto.
O secretário-executivo do Cimi, Antônio Eduardo de Oliveira, lembrou que a Funai vem retomando a proposta integracionista que marcou a política indigenista até a Constituição de 1988. “Querem retirar os funcionários de carreira mais compromissados com os direitos indígenas e colocar pessoas comprometidas com esse assédio aos povos originários”, diz o missionário. “Muitos [funcionários] tiveram que se aposentar, outros estão fazendo tratamento de saúde. É um clima de pressão e violência”.
Além de Fantazzini, indígenas presentes na reunião também fizeram duras críticas aos servidores de carreira da Funai que atuam na Coordenação Regional Xavante. “A Funai velha, manda para São Paulo, interior. Tem que ficar lá. Para que ficar aqui fazendo confusão? Manda lá [Nome de servidor 1], aqueles outros, [Nome de servidora], anti-indígena. Manda lá no Roraima, São Paulo, para trabalhar, fazer projetinho da roça de toco [roça tradicional]”, criticou Graciano Pronhopa, cacique em Sangradouro e um dos cooperados presentes no encontro.
Em outro momento, o presidente da cooperativa, Gerson Wa Raiwe, afirmou: “Quem nos procurou uma vez foi o [Nome de servidor 2, ex-coordenador local da Funai]. Aquele cara é um baita parasita”. Wa Raiwe ainda afirmou que um servidor, único funcionário de carreira presente na reunião, estava mentindo ao dizer que a Cooperativa não respondeu aos pedidos de informações emitidos pela CR Xavante.
“Se você quiser ver lá os termos, é tudo transparente. Que eu não vejo nesses 12 anos que você está na Funai, nunca vi transparência, nunca vi. Agora você vem me dizer aqui que está faltando transparência. Isso é mentira”, afirmou o presidente da Cooperativa. O Joio já mostrou que sucessivos pedidos de fornecimento de informações foram ignorados pela cooperativa, com a conivência do coordenador regional, capitão da reserva Álvaro Peres – muito elogiado, aliás, durante a reunião.
Procuramos Wa Raiwe por telefone e aplicativo de mensagens, mas ele preferiu não se manifestar.
Durante o encontro, Fantazzini também afirmou que os projetos de lavoura em terra indígena estariam sofrendo perseguição da justiça. “A gente pode ajudar, a gente pode articular, nós podemos fazer várias coisas para ajudar a virar o jogo, porém ela [Funai] sozinha, com a quantidade de pessoas no Judiciário que querem que dê errado, não vai conseguir”, afirmou. “A cooperativa precisa estar com o pé no chão, porque senão vai vir o pessoal da capa preta e lascar em cima”.
14/out/2022
O advogado estará presente na exibição filme “Rio de Ouro” e no painel sobre mineração ilegal de ouro na Amazônia.
No dia 19 de outubro, Luiz Eloy Terena, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas (Apib) e da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), estará presente na exibição do filme “Rio de Ouro” em Harvard, localizada no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos. A universidade é considerada uma das melhores do mundo.
Após o filme, o advogado irá participar de um painel sobre quem lucra com a mineração ilegal de ouro na Amazônia e as consequências da mineração sobre a saúde pública, o meio ambiente e os direitos indígenas.
Junto com Eloy, debaterão sobre o tema os especialistas: Sarah Dupont, fundadora e Presidente da Amazon Aid Foundation; César Diniz, coordenador técnico do MapBiomas; Raoni Rajão, professor associado de gestão ambiental e estudos sociais de ciência e tecnologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); e Marcia Castro, professora andelot de demografia.
Além do painel, o assessor jurídico da Apib também irá participar no dia 18 de uma conversa sobre direitos indígenas no Brasil com estudantes da Faculdade de Direito de Harvard.
14/out/2022
A frase-flecha é disparada pela voz aguda de uma mulher pequena, porém robusta. Maria Leusa Munduruku é uma das mais importantes lideranças indígenas de seu povo. Quando gritou, ela acabara de saber que seu útero e seu leite, antes fontes de vida, tinham se tornado fontes de contaminação e morte para seus filhos. Assim como aconteceu com os peixes do Tapajós, depois que o rio que banha sua aldeia e a de tantos outros povos originários e ribeirinhos da Amazônia foi violado pelo garimpo ilegal. Pelas veias da mulher e do rio hoje corre o mercúrio.
Era final de setembro e a aldeia Sawré Myubu, no Pará, realizava uma Assembleia do Mercúrio. É difícil imaginar por que um povo indígena que vive em plena floresta amazônica faria uma assembleia com esse nome, mas as razões vão se revelando pouco a pouco na medida em que o rio antes de um azul intenso vai mudando de cor. Maria Leusa segue disparando flechas de dor: “Pelo nosso corpo! Pelos nossos filhos!”.
Ela e outras lideranças Munduruku se comunicam entre si chamando umas às outras de “véia”. É estratégia para não serem identificadas em mensagens de texto ou chamadas de celular, já que muitas delas estão grampeadas e/ou ameaçadas de morte. Maria Leusa teve sua casa incendiada em maio de 2021 por um grupo de garimpeiros que trabalha ilegalmente dentro de terras indígenas. Também atearam fogo na casa de seus pais. Meses antes, em abril de 2021, a Associação de Mulheres Munduruku Wakoborũ, cujo nome é uma homenagem a uma mulher mítica que liderou uma guerra contra a aldeia que matou um de seus irmãos, viu sua sede queimar no município de Jacareacanga, no Pará.
São “As Véias” que estão na linha de frente da guerra que contamina de mercúrio as veias do grande rio Tapajós. E também as veias dos corpos de humanos e não humanos. Na penúltima semana de setembro, a equipe de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), liderada pelo pesquisador Paulo Basta, entregou os resultados de uma investigação realizada em 2019 sobre a contaminação de mercúrio da população Munduruku. A pesquisa foi um pedido do próprio povo originário, expresso em uma carta enviada ao cientista anos antes, e foi realizada com amostras dos cabelos de 197 pessoas de idades diversas que habitam as comunidades de Sawré Muybu, Sawré Aboy e Poxo Muybu.
As pessoas que participaram do estudo viviam em 35 casas distribuídas pelas 3 aldeias, e 91,4% relataram consumir água de rios e córregos. As conclusões do estudo foram aterradoras: 57,9% apresentaram uma prevalência de exposição ao mercúrio acima de 6 microgramas. Isso significa que 57,9% carregam no corpo níveis de mercúrio acima dos limites de segurança estabelecidos pelos mais variados órgãos internacionais de saúde, como a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos. Nos rios, uma das mais importantes formas do mercúrio é o monometilmercúrio (MeHg), que é de longe o mais tóxico dos compostos de mercúrio devido à sua capacidade de atravessar membranas biológicas e chegar ao sistema nervoso central. Mesmo a exposição prolongada a baixas concentrações de MeHg pode causar alteração do material genético (genotoxicidade), entre outras graves consequências.
À medida que se aproxima das áreas de garimpo, os níveis se tornam cada vez mais altos. Na comunidade Sawré Aboy, no rio Jamanxim, um dos mais atingidos pela mineração ilegal, a concentração média de mercúrio em crianças de 12 anos é de 11 microgramas por grama, índice considerado extremamente elevado e resumido no resultado do exame pela sentença: “seu risco de adoecer é MUITO ALTO”.
Antes de os resultados individuais serem entregues, o pesquisador fez uma apresentação sobre a situação geral das três comunidades investigadas. Estávamos em uma pequena maloca circular coberta de palha, onde centenas de pessoas esperavam a confirmação científica daquilo que já sentiam em seu corpo, mas que era preciso confirmar na linguagem do branco, para terem alguma chance de serem escutadas. O calor deixava os corpos pegajosos. Uma chuva se anunciava pelos trovões. As mulheres amamentavam seus filhos. As crianças pequenas corriam e brincavam pelo espaço. O cheiro do peixe, preparado na cozinha, invadia a atmosfera com um toque de insanidade: nosso jantar era o principal vetor da contaminação por mercúrio.
A chuva caiu sobre a comunidade reunida enquanto Paulo Basta descrevia os rios voadores, os volumosos cursos de água formados pelo suor da floresta amazônica, rios que voam sobre nossas cabeças levando chuva para o centro-sul. É uma imagem deslumbrante, e ela sempre emociona quem a escuta. Não desta vez. O pesquisador nos contava que essa chuva também continha o mercúrio que evapora do garimpo e poderia estar, naquele exato momento, contaminando o solo, as plantações e os alimentos. Enquanto o cerco aumentava, o vento trazido pela chuva balançava uma faixa pintada e pendurada pelos indígenas: “O futuro é agora”.
É justamente o futuro do povo Munduruku que está sendo mais diretamente ameaçado. A contaminação por mercúrio tem seus efeitos mais graves naqueles que ainda nem nasceram, naqueles que estão por nascer, sendo gestados nos úteros de suas mães, e naqueles que acabaram de nascer e que estão sendo amamentados com o leite materno. É durante a gestação e a amamentação que os efeitos da contaminação se tornam mais graves, podendo causar danos irreparáveis ao sistema nervoso central do feto e dos recém-nascidos.
Outro estudo conduzido pelo grupo de Basta, este liderado pelo pesquisador Rogério de Oliveira, da Universidade de São Paulo (USP), comprovou alterações somatossensoriais, motoras e cognitivas sofridas pela mesma amostra da população Munduruku. Essa pesquisa, com 111 pessoas, verificou que duas delas, com níveis de monometilmercúrio (MeHg) de 11,68 e 15,68 microgramas por grama, tinham coordenação motora prejudicada. Outras, com nível de exposição ao monometilmercúrio maiores do que 10 microgramas por grama, apresentaram cerca de duas vezes mais chances de déficits cognitivos e erros em testes de fluência verbal. A piora nas funções motoras e cognitivas são sugestivas de neurotoxicidade devido à exposição crônica à substância tóxica.
Os cientistas do estudo liderado por Basta propuseram que: 1) seja feita a interrupção imediata das atividades de mineração ilegal e a cessação da invasão de terras tradicionais e protegidas da Amazônia; 2) comece o desenvolvimento de um plano nacional para descontinuar o uso de mercúrio na mineração artesanal; 3) um plano de gestão de risco seja desenvolvido para populações cronicamente expostas ao mercúrio. Mas quem os escuta no governo Bolsonaro, em que o presidente deliberadamente estimula o garimpo em áreas protegidas e apresentou um projeto de lei para liberar a mineração em terra indígena?
É difícil alcançar o sentimento de escutar que seu leite está contaminado por mercúrio ao mesmo tempo que o filho está sendo amamentado, mas essa era a realidade daquelas mulheres com seus bebês colados ao peito. É difícil descobrir que o peixe, a base de alimentação daquela região, assim como de toda a região amazônica, o peixe que alimenta a mãe que amamenta, pode ser a fonte de contaminação do feto que cresce em seu útero.
A tristeza se adensou sobre a maloca, ainda mais pesada que as nuvens de alguns minutos antes. Houve um silêncio longo, e as lágrimas desceram pelos rostos das mulheres e homens Munduruku. Uma liderança chamada Hans Kaba atravessou a atmosfera com sua voz. Ele pegou o microfone e tentou dar palavra ao sentimento, mas a palavra ainda queria ser silêncio: “Eu não tenho pergunta, porque eu estou entendendo. Se eu não entendesse, eu teria pergunta. Só é muito triste porque eu entendo que essa é uma doença que não tem cura. É muito triste”.
Triste foi a palavra da língua portuguesa mais ouvida durante a assembleia. As falas aconteciam ora em português, ora em Munduruku, sempre com traduções para ambas as línguas que faziam com que todos ali pudessem ter acesso ao debate. Quando as pessoas faziam suas falas na língua Munduruku, algumas poucas palavras eram ditas em português. São aquelas que não existem no mundo Munduruku, mas passaram a invadir suas vidas. Palavras também contaminam. Palavras negadas. Palavras inimigas. Palavras intraduzíveis.
A floresta é uma linguagem. O rio é uma linguagem. E na linguagem Tapajós, o povo Munduruku se recusa a acolher em sua língua palavras que barram sua vida e fazem questão de gritá-las alto na língua que os ameaça. Anotei todas as palavras e expressões que apareciam na língua portuguesa: doença, impacto, garimpo, exame, discussão, Estado, pesquisa, fome, projeto de morte, ilegal, malária, ausência, tradução, mercúrio, denunciar, esperar, destruição, traidor, triste e solução.
Solução foi a segunda palavra mais repetida. Triste, a primeira. Triste nomeou o sentimento que atravessou os corpos dos que lá se reuniam após a leitura dos resultados da contaminação. Solução parece nomear a imediata exigência de viver. Foi essa exigência, a de viver, que motivou cada uma das Véias que se levantaram para tomar o microfone e perguntar repetidas vezes: “Qual é a solução?”. As vozes das Véias eram amplificadas por uma imensa caixa de som e se transformavam em flechas certeiras, agudas e em altíssimo volume.
Foi quando a Véia Maria Leusa lançou sua flecha e nos atingiu no coração: “Pelo nosso útero que está doente! Pelo nosso corpo! Pelos nossos filhos! Eu pergunto para as mulheres, vocês querem ver seus filhos doentes?”.
As mães Munduruku respondem em uníssono: “não”. Penso o que as mães de Santarém, as mães de Itaituba, as mães de Jacareacanga, as mães de Alter do Chão responderiam à pergunta da Véia: “Vocês querem ver seus filhos doentes?”. A pergunta precisa ser respondida agora, e em coletivo, para que seus filhos tenham algum futuro. A única ação possível é a imediata interrupção de atividades garimpeiras não só em territórios indígenas, mas em toda a bacia do Tapajós. Não são só os filhos gerados em ventres Munduruku que estão sendo contaminados, mas todos aqueles que vivem às margens do rio, humanos e não humanos.
Como Hans Kaba compreendeu, a doença provocada por contaminação de mercúrio não tem cura. Não há remédio para isso. Tudo ensombrece ao serem informados que o mercúrio depositado nas águas do Tapajós permanecerá no rio até ser diluído em outros locais e absorvido pela fauna, flora e pelos corpos humanos, ao longo dos anos.
Enquanto as Véias gritavam, as crianças habitavam os espaços da assembleia chorando e brincando, alheias às palavras que ameaçavam seu futuro. Um pariwat, como é chamado o homem branco, parecia incomodado com o barulho criado por elas. Ele era o único que parecia incomodado e chegou a tentar controlar um pequeno grupo de meninas e meninos, que não lhe deu qualquer atenção. Sem sucesso, o homem buscou a cumplicidade de um Munduruku, exigindo providências. Uma das Véias, atenta a tudo que era dito à sua volta, devolveu: “Deixa as crianças, quem está incomodando é ele”.
Ainda assim, o homem, funcionário do governo federal, não compreendeu seu lugar naquela assembleia. Interrompeu a fala de uma das Véias quando ela denunciava a atuação da instituição em que ele trabalha e que, no governo Bolsonaro, passou a atuar de modo contrário à sua função. “Você não entendeu o meu pronunciamento”, gritou o pariwat. Com um salto, a Véia largou o microfone e avançou em direção ao homem, imenso, com tapas e chutes enquanto gritava que era ele quem não estava entendendo. “Eu vou embora. Eu saio”, ele balbuciou, parecendo ter encolhido. Não se soube mais dele.
Uma coisa é saber o que significa o conceito de coragem, outra coisa bem diferente é ver a coragem existindo. E a coragem se materializou ali diante de todos em um pequeno corpo de mulher enfurecido. Caso alguém mais ainda tivesse dúvidas sobre o seu lugar, outra Véia explicou: “Pariwat não tem direito de falar, ele tem que ficar calado. Ele tem só que escutar. Nós estamos aqui para defender nosso rio, nossa terra e nossos filhos. Ele não pode querer falar mais alto”.
E então uma mulher muito velha tomou a palavra para fazer uma longa fala em Munduruku. Eu não era capaz de entender, e ela não pronunciou nenhuma palavra em português. Eu não entendia, mas sentia. Sentia não só pelo tom de cada palavra, mas pelo silêncio que foi tomando conta da maloca. De repente, todos que estavam em volta começaram a se aproximar. Velhos, jovens, crianças, todos foram silenciando. Os jovens Munduruku sacaram seus celulares e começaram a gravar aquela fala inacessível a pariwats. No dia seguinte, uma das Véias explicou que o rio está doente, mas que elas vão curar o rio. Perguntei como se cura um rio. A Véia me disse que as mulheres trabalhariam junto com a mãe do rio. “Tudo tem mãe”, ela disse.
Os dias de assembleia teceram uma aliança entre as mães da floresta, humanas e mais–que-humanas. Foi como mães que as Véias se levantaram para afirmar seu papel de cuidar de seus territórios, de seus corpos e de suas filhas e filhos. Uma aliança entre as mães Munduruku e a mãe do rio; a mãe do Pirarucu e Wakoburu; cabelos e sangue; rio cor de leite e leite materno contaminado; úteros e rios, líquido amniótico e águas doentes; peixes e crianças; corpo e território. Os filhos das Véias e as veias do rio.
No último dia, assistimos ao filme Amazônia, a Nova Minamata?, de Jorge Bodansky. O filme mostra a contaminação por mercúrio vivida pela população do vilarejo de Minamata no Japão dos anos 1930 até 1960, produzida pela empresa Chisso, e cria uma relação entre a história desse vilarejo e o que está acontecendo agora na Amazônia. Diante de nós se desenrolava um passado no Japão que pode falar sobre um futuro anunciado na Amazônia. Diante de nós desfilavam imagens de corpos retorcidos por graves efeitos motores e neurológicos causados pela contaminação em Minamata. Ao meu lado, assistindo àquele horror, corpos Munduruku começavam a sentir os primeiros efeitos da contaminação.