25/nov/2021
Foto: Juliana Pesqueira
Por Luiz Eloy Terena
A pandemia da Covid-19 escancarou problemas estruturais relacionados aos povos e comunidades indígenas no Brasil. Demandas sociais ligadas à proteção territorial, atendimento à saúde indígena em diversos contextos territoriais e formulação de políticas públicas identitárias acabaram desaguando no judiciário. Se, por um lado, exigiu-se dos povos indígenas a capacidade política de demandar ações junto às instâncias nacionais e internacionais, a análise situacional nos aponta, de igual modo, para rotinas e práticas administrativas incapazes de lidar com a diversidade indígena, bem como uma indisposição governamental em acatar os preceitos constitucionais de proteção dos povos indígenas.
A presente análise tem por objetivo oferecer subsídios para a elaboração de documento denúncia que aponte as violações ao direito à vida e à saúde dos povos indígenas no Brasil no contexto da pandemia de Covid-19. O enfoque metodológico se pautará a partir de análise documental produzida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), consistente em relatórios compilados a partir de denúncias recebidas de organizações e lideranças locais. Além disso, ter-se-á como fonte de exame os documentos oficiais juntados nos autos da ADPF 709, em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), proposta pela APIB e mais seis partidos políticos, em junho de 2020, bem como as decisões judiciais desencadeadas até o presente momento.
Tais fatos não podem ser examinados de forma estanque; pelo contrário, deve-se conjuntar o exame ao desenvolvimento da atual política indigenista adotada pelo Governo Federal, que, inclusive, é objeto de denúncia no Tribunal Penal Internacional (TPI).
1. Contextualizando os povos indígenas no Brasil
Mesmo que ultrapassados, acreditamos ser importante trazer os dados do IBGE (2010) sobre o “Brasil indígena: são mais de 305 povos indígenas, 274 línguas, além do registro de 114 povos isolados e de recente contato. Segundo o mais recente censo demográfico, realizado em 2010, 896 mil pessoas se declararam ou se consideravam indígenas no Brasil, sendo 572 mil (63,8%) residentes em áreas rurais. Desse total, 517 mil (57,7%) residiam em Terras Indígenas (TIs) oficialmente reconhecidas (IBGE, 2010). Isso demonstra a expressiva diversidade étnica da República Federativa do Brasil, e nos possibilita entender a guinada constitucional do texto de 1988 ao reconhecer a esses povos sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e o direito originários às terras tradicionalmente ocupadas (artigo 231, CF/88). Inaugurou-se uma ordem jurídica consubstanciada num Estado pluriétnico , rompendo com o paradigma tutelar que operava sobre os povos originários e uma política indigenista pautada em ações que visavam a assimilação dos povos indígenas.
Avanços significativos no campo legal foram reconhecidos aos povos indígenas e comunidade tradicionais desde a promulgação da Constituição até as normas infraconstitucionais implementadas nos últimos anos no contexto de governos de caráter relativamente mais progressistas. Porém, o campo político atual no Brasil é muito desfavorável aos povos indígenas, tendo em vista que, nas eleições de 2018, foi eleito para o cargo de Presidente Jair Bolsonaro, primeiro Presidente eleito pós-período de redemocratização declaradamente contrário aos direitos dos povos indígenas.
Desde então, a execução e a implementação da política indigenista brasileira passaram a ser pensadas e normatizadas a partir da lógica do patronato ruralista, na sua perspectiva mais retrógada de todos os tempos. Como bem aponta o documento final do Acampamento Terra Livre (ATL), realizado em abril de 2020, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), “Bolsonaro, logo que assumiu o Governo, editou a medida provisória 870/19, na qual determinava o desmembramento da Fundação Nacional do Índio (Funai) e suas atribuições, repassando a parte de licenciamento ambiental e de demarcação de Terras Indígenas ao Ministério de Agricultura, comandado pela bancada ruralista, inimiga de nossos povos, na pessoa da ministra fazendeira Teresa Cristina, a ‘musa do veneno’.” (APIB, 2020a).
Além de voltar suas ações para os territórios indígenas, como inviabilizar as demarcações de Terras Indígenas e propor a legalização da mineração nesses territórios4 , o Governo atual tem aparelhado o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro – a Funai – aos interesses do agronegócio, nomeando pessoas ligadas à bancada ruralista e militares para cargos estratégicos dentro do órgão.
A partir do momento que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a situação de pandemia da Covid-19, as organizações e comunidades indígenas sabiam que a situação se agravaria sobremaneira, tendo em vista as violações que já estavam em curso, mas, sobretudo, como isso abriria caminho para outras violações que colocariam em risco a atenção a saúde e a vida dos povos indígenas. O cenário de caos se desenhou a partir da posição de um governo marcado pela irracionalidade e descrença na ciência, que priorizou políticas emergências voltadas para o mercado econômico e não para pessoas, especialmente aquelas pertencentes a grupos vulneráveis. Diante disso, o movimento indígena mais uma vez se reinventou e buscou articulações junto à sociedade civil no campo nacional e internacional, e também com agências institucionais do direito público interno com capacidade de incidir, sem necessariamente estar atrelado ao campo governamental.
Considerando a atitude governamental que manipula dados, e definitivamente subnotifica para esconder a dimensão real da pandemia no País, no caso das comunidades indígenas, destaca-se a quase total ausência de registros, dado que a coleta já nasce comprometida pelo aparelhamento da Sesai, que perdeu na sua diretoria técnicos com expertise nas questões indígenas, substituídos por militares sem qualquer noção sobre a questão. Nesse sentido, demonstrando a capacidade de autonomia desse segmento, a APIB, através da organização de uma comissão específica, assumiu a tarefa. Segundo o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), até o dia 3 de junho de 2020, o País registrava 211 indígenas falecidos, 2.178 infectados e 83 povos atingidos pelo vírus. Os estados com maior número de casos de mortes são Amazonas, Pará, Roraima, Pernambuco e Ceará. Nota-se que o vírus se alastrou de forma rápida entre os indígenas. Com base nos dados da APIB, denota-se que o índice de letalidade entre os povos indígenas é de 9,6%, enquanto que entre a população brasileira geral é de 5,6%.
Notou-se, também, uma discrepância entre os números apresentados por APIB e COIAB em relação aos dados oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígenas (Sesai), revelando de forma clarividente a subnotificação nos casos. O relatório “Uma visualização da pandemia da Covid-19 entre os povos indígenas no Brasil a partir dos boletins epidemiológicos da Sesai”, elaborado por Luís Roberto de Paula e Juliana Rosalen, aponta que a “subnotificação também está presente em relação a casos nas aldeias, o que faz com que outras variáveis entrem em jogo, dentre elas, a morosidade na alimentação do sistema de informação da Sesai”, aliado “à falta de autonomia dos distritos que implica uma ‘checagem’ de dados pela Sesai Brasília”.
Este cenário foi alertado pelos pesquisadores que trabalham com a temática indígena desde o início da pandemia. No dia 18 de abril de 2020, o Núcleo de Métodos Analíticos para Vigilância em Saúde Pública, em conjunto com o Grupo de Trabalho sobre Vulnerabilidade Sociodemográfica e Epidemiológica dos Povos Indígenas no Brasil à Pandemia de Covid-197 , ambos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), publicou o relatório “Risco de espalhamento da Covid-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica”. Os resultados já apontavam para as condições de desvantagem dos indígenas em comparação à população não indígena em inúmeros indicadores sociodemográficos e sanitários, com destaque para as populações residentes nas Terras Indígenas (TIs), nas quais se observa, por exemplo, a) menor proporção de escolaridade formal; b) menor cobertura de saneamento; c) elevada mortalidade precoce.
Nesse relatório, alguns achados importantes merecem atenção: já apontava-se, na semana epidemiológica 16 de 2020, que, dos 817 mil indígenas considerados nas análises, 279 mil (34,1%) residiam em municípios com alto risco ( 50%) para epidemia de Covid-19, e 512 mil (62,7%) residiam em municípios com baixo risco ( 25%). Com a interiorização da epidemia, já era esperado um expressivo aumento do montante da população indígena em alto risco. O estudo foi preciso ao apontar que as Terras Indígenas em municípios com alta probabilidade de introdução de Covid-19 ( 50%) são, em sua maioria, próximas a centros urbanos como Manaus, eixo Rio Branco-Porto Velho, Fortaleza, Salvador e capitais do Sul e Sudeste.
O relatório apontou:
• cerca de 22% (89.000) da população indígena rural no Brasil residem em municípios com alto risco (50%) de epidemia no curto prazo, com destaque para a Amazônia Legal, com 21,1% da população rural nessa condição; a população residente em TIs tem padrão muito similar ao da totalidade da população indígena rural;
• a tendência temporal de casos e óbitos confirmados de Covid-19 em municípios localizados em territórios dos DSEIs evidencia um padrão distinto do observado para o conjunto dos municípios brasileiros, em que a Amazônia Legal se destaca em segunda posição no acúmulo de casos e óbitos, concentrando mais de 50% dos casos confirmados na região, ficando abaixo apenas do Sul-Sudeste;
• a hospitalização por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) em populações indígenas apresenta um padrão de aumento em relação à série histórica. Vê-se um aumento na proporção de internações de indígenas na Amazônia Legal e mudança no padrão de internações por idade, o que sugere atividade da doença em indígenas no País.
No mesmo período, foi publicado o relatório “Análise de Vulnerabilidade Demográfica e Infraestrutural das Terras Indígenas à Covid-19”8 , da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP), que analisou 471 Terras Indígenas do Brasil, com base no levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), levando em consideração fatores como a distância de centros com unidades de terapia intensiva (UTI), saneamento e porcentagem de idosos na comunidade. O estudo apontou que 62% das Terras Indígenas do Brasil que se encontravam em situação de alta vulnerabilidade estavam na região norte do País, ou seja, na região Amazônica. Ficou claro que a Amazônia concentrava a maioria das Terras Indígenas (TIs) em situação crítica para a pandemia do coronavírus no Brasil. Além de sete territórios com maior fragilidade, os estados da Amazônia Legal possuem 239 TIs com índices de vulnerabilidade intensos ou altos em relação à Covid-19.
A pesquisa da ABEP (2020) analisou o índice de vulnerabilidade demográfica e infraestrutural das Terras Indígenas à Covid-19 por Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). O DSEI é a unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS). Trata-se de um modelo de organização de serviços – orientado para um espaço etnocultural dinâmico, geográfico, populacional e administrativo bem delimitado – que contempla um conjunto de atividades técnicas fundamentadas em medidas racionalizadas e qualificadas de atenção à saúde. E, ainda, é o DSEI que promove a reordenação da rede de saúde e das práticas sanitárias por meio de atividades administrativo-gerenciais necessárias à prestação da assistência, com base no controle social.
Atualmente, no Brasil, existem 34 (trinta e quatro) DSEIs divididos estrategicamente por critérios territoriais, tendo como base a ocupação geográfica das comunidades indígenas, não obedecendo, assim, os limites dos estados. Sua estrutura de atendimento conta com unidades básicas de saúde indígenas, polos base e as Casas de Apoio à Saúde do Índio (Casai). Neste sentindo, considerando o papel desempenhando pelos DSEIs na prevenção e gestão da pandemia de Covid-19 junto aos povos indígenas, os pesquisadores agregaram à análise as variáveis demográficas e infraestruturais que compõem o IDVIC e que foram calculadas pelas Terras Indígenas para os DSEIs. Assim, os DSEIs que apresentaram um nível crítico de vulnerabilidade foram Alto Rio Negro, Yanomami, Xavante, Xingu, Kaiapó do Pará e Rio Tapajós – todos localizados na Amazônia brasileira.
O levantamento da ABEP mostrou que todas as TIs em situação mais crítica para enfrentar a Covid-19 possuíam um fator em comum: estão distantes dos centros urbanos com UTIs. Para se ter uma ideia, a TI Acapuri de Cima, habitada pelos Kokama, está a quase 700 km em linha reta da cidade de Manaus, o único município do estado que possui leitos de UTIs para tratamento dos casos mais graves da Covid-19. E alertava que mesmo Manaus já estava com o sistema de saúde em colapso: o Hospital Delphina Aziz, unidade de referência para atenção às vítimas do coronavírus, atingiu sua capacidade máxima em 10 de abril de 2020, assim como os outros três hospitais de apoio na cidade. No estado do Amapá, não havia nenhum município com UTI; em Roraima e no Acre, os leitos de tratamento intensivo existem apenas nas regiões metropolitanas das capitais.
Há de se registrar, ainda, que, visando facilitar a legalização da ocupação ilegal das áreas indígenas, a Funai publicou a Instrução Normativa n. 09, de 22 de abril de 2020. A partir dela, o órgão indigenista passou a considerar passível de emissão de Declaração de Reconhecimento de Limites (DRL), documento que atesta que a propriedade não incide em Terra Indígena, toda posse (sem escritura) ou propriedade que não incida apenas sobre Terra Indígena Homologada, Reserva Indígena ou Terras Indígenas Dominiais. Ou seja, libera para compra, venda e ocupação todas as TIs em estudo, as TIs delimitadas pela Funai, as TIs declaradas pelo Ministério da Justiça, além das áreas sob portarias de restrição de uso. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), além de permitir a emissão da DRL em áreas interditadas para estudo sobre a presença de isolados, o texto da referida instrução não traz nenhuma menção aos demais territórios de povos em isolamento voluntários em estudo pela Funai. Essa nova norma abriu a possibilidade para excluir do cadastro no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), o que permite a negociação, regularização junto ao Incra e licenciamento de obras e atividades econômicas, 243 Terras Indígenas ainda não homologadas, além de 8 áreas sob restrição de uso.
2. Impacto da pandemia nos povos e territórios indígenas
O vírus que assolou várias partes do mundo assombrou de igual modo os territórios indígenas e, no caso do Brasil, vemos o resultado catastrófico de um governo negacionista e anticientífico, cujos atos apontam para uma política, isto é, um conjunto de atos intencionais voltados a implementar a sua política de enfrentamento da pandemia, a saber, a criação de uma imunidade natural coletiva contra o vírus ou “imunidade de rebanho”. Tais atos consistiram principalmente em i) desacreditar a necessidade de medidas sanitárias para evitar a propagação do vírus; ii) produzir narrativas falsas sobre tratamento da doença, incentivando a desobediência às medidas sanitárias preventivas; iii) espalhar desinformação e tornar equívoca a comunicação; iv) não prover insumos a hospitais para o tratamento de doentes; v) não prover imunizantes aos brasileiros – entre os quais, indígenas e outros grupos sociais têm-se mostrado particularmente afetados pela Covid-19.
O Presidente Jair Bolsonaro criou deliberadamente um ambiente de insegurança pandêmica, posicionando-se reiteradamente contra as medidas de isolamento social, adotando medicamentos sem eficácia para a Covid-19 e retardando a aquisição de vacinas. Como resultado, o Brasil tem reconhecidamente o pior desempenho no combate à pandemia de Covid-19, e se tornou um risco sanitário global.
Como o ataque aos povos indígenas, através de uma política anti-indígena, é um objetivo central do Presidente Jair Bolsonaro, não foi diferente em relação às ações, omissões e discursos sobre Covid-19 e sua incidência sobre os povos indígenas. A fragilização dos órgãos e da política de atenção à saúde indígena – iniciada ainda em 2019 – mostrou seus efeitos concretos durante a pandemia.
Sobre o tema, importantes elementos podem ser verificados em extensa pesquisa realizada pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) da Universidade de São Paulo (USP). O estudo revelou, a partir de uma minuciosa cronologia das ações discursivas e medidas adotadas pelo Governo Federal ao longo da pandemia, a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo Federal sob a liderança do Presidente da República.9 Em síntese, a pesquisa mostra que há um sentido comum no conjunto discursivo e normativo da Presidência da República para a propagação da Covid-19.10 A disseminação intencional do vírus pelo Presidente Jair Bolsonaro e pelo Governo Federal brasileiro se deu a partir da defesa da tese de imunidade de rebanho por contágio ou transmissão; incitação constante à exposição; banalização das mortes e das sequelas causadas pela doença; obstrução sistemática de medidas de contenção da pandemia por governos locais; consciência da irregularidade epidemiológica, sanitária e jurídica das condutas. O Presidente Jair Bolsonaro implementou uma política deliberada de contágio por Covid-19, um ataque sistemático contra todos os brasileiros, afetando desproporcionalmente membros de alguns grupos específicos, como os indígenas.
Como resultado desta política de propagação do vírus, o Brasil se tornou o país com piores índices de mortalidade no mundo, tendo mais de 500 mil mortos pela pandemia em junho de 2021. Entre os indígenas, a letalidade da Covid-19 é 50% maior se comparada à da população não indígena. O avanço da pandemia sobre as comunidades dos 305 povos indígenas é brutal. Segundo dados do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), até o dia 30 de junho de 2021, o País registrava 1.126 indígenas falecidos, 56.174 infectados e 163 povos atingidos pelo vírus. Os estados com maior número de casos de mortes são Amazonas, Pará, Roraima, Maranhão, Mato Grosso, Pernambuco e Ceará.
A pandemia expôs as fragilidades que as equipes de atenção primária à saúde (APS) do Sistema Único de Saúde (SUS) e, mais intensamente, as do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS) enfrentam cotidianamente há anos. Entre elas, enumeramos falta de infraestrutura adequada; insuficiência de equipamentos de proteção individual (EPI); reduzido estoque de insumos e medicamentos; alta rotatividade de profissionais; dificuldades de garantir formação adequada e implementar educação permanente com as equipes; problemas de integração com a rede de saúde; a situação de precariedade e insalubridade das Casas de Apoio à Saúde do Índio (Casai).
Assim como ocorreu em relação às invasões, ao desmatamento e ao garimpo, a propagação da pandemia de Covid-19 entre povos indígenas é resultado do desmantelamento das políticas de proteção aos indígenas e da instrumentalização dos órgãos do Estado brasileiro para a promoção de ataques aos povos indígenas, sob comando do Presidente Jair Bolsonaro. Na consecução da política anti-indígena do Presidente Jair Bolsonaro, a Sesai expôs indígenas ao vírus (ao, por exemplo, recomendar a permanência de indígenas contaminados em quarentena domiciliar, em contato com outros indígenas, negar atendimento a indígenas que vivem nas cidades, ignorar a importância na testagem) e a Funai facilitou a contaminação, ao se omitir na retirada de invasores das Terras Indígenas.
2.1. Omissão governamental: ausência de plano de enfrentamento e monitoramento
Ao tempo que o vírus se alastrava pelas comunidades e territórios indígenas, em diversas regiões do País, o Governo Federal ficou inerte na adoção de medidas de proteção aos povos indígenas, mesmo depois de todos os indicadores e alertas que apontavam para o impacto extremamente nefasto nos territórios. O Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 709, proposta pela APIB e por partidos políticos, reconheceu a omissão do Governo Federal no combate à pandemia nas Terras Indígenas.
Ao reconhecer a omissão estatal, o STF determinou:
1º) A instalação da Sala de Situação para tratar das barreiras sanitárias: o STF determinou a instalação de barreiras sanitárias nas Terras Indígenas com presença de povos isolados e de recente contato: dos povos isolados, Alto Tarauacá, Arariboia, Caru, Himerimã, Igarapé Taboca, Kampa e Isolados do Rio Envira, Kulina do Rio Envira, Riozinho do Alto Envira, Kaxinauá do Rio Humaitá, Kawahiva do Rio Pardo, Mamoadate, Massaco, Piripkura, Pirititi, Rio Branco, Uru-Eu-Wau-Wau, Tanaru, Vale do Javari, Waimiri-Atroari, e Yanomami; dos povos de recente contato, Zo’é, Awa, Caru, Alto Turiaçu, Avá Canoeiro, Omerê, Vale do Javari, Kampa e Isolados do Alto Envira e Alto Tarauacá, Waimiri-Atroari, Arara da TI Cachoeira Seca, Araweté, Suruwahá, Yanomami, Alto Rio Negro, Pirahã, Enawenê-Nawê, Juma e Apyterewa.
2º) Prestação de assistência à Saúde de Povos Indígenas localizados em Área Urbana (não aldeados): em relação aos indígenas em contexto urbano, a decisão foi parcial. Vejamos ponto da decisão:
No mesmo sentido, povos indígenas localizados em zona urbana também constituem povos indígenas e, nessas condições, gozam dos mesmos direitos que todo e qualquer povo indígena. O fato de se localizarem em área urbana pode-se dever: (i) ao avanço das cidades, (ii) à necessidade de deslocamento de lideranças, (iii) à busca de escolas ou de empregos, entre outros. A mera residência em área urbana não torna o indígena aculturado, tampouco implica a inexistência de necessidades, cultura e costumes particulares.
Neste sentido, o STF decidiu que indígenas em contexto urbano que, por qualquer razão, não tenham condições de acesso ao SUS fazem igualmente jus ao atendimento pelo Subsistema Indígena de Saúde ou a medidas que assegurem o acesso ao SUS geral, ao menos provisoriamente. Com base nesse entendimento, foi deferida parcialmente a cautelar para estender o Sistema Indígena de Saúde apenas aos indígenas não aldeados (urbanos) sem condições de acesso ao SUS geral. Na mesma decisão, o ministro indeferiu, por ora, a extensão à totalidade dos povos indígenas urbanos.
3º) Prestação de assistência à Saúde de Povos Indígenas Aldeados localizados em Terras Indígenas não homologadas: neste ponto, a decisão foi clara no sentido de determinar a imediata extensão dos serviços do Subsistema Indígena de Saúde aos povos aldeados situados em terras não homologadas. Em sua decisão, o STF apontou:
É inaceitável a postura da União com relação aos povos indígenas aldeados localizados em Terras Indígenas não homologadas. A identidade de um grupo como povo indígena é, em primeiro lugar, uma questão sujeita ao autorreconhecimento pelos membros do próprio grupo. Ela não depende da homologação do direito à terra.
4º) Retirada de Invasores: sobre a retirada dos invasores das Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu- Wau-Wau, Kayapó, Arariboia, Munduruku e Trincheira Bacajá, decidiu o ministro:
Indefiro, por ora, o pedido de retirada dos invasores diante do risco que pode oferecer à vida, à saúde e à segurança das comunidades. Observo, porém, que é dever da União equacionar o problema das invasões e desenvolver um plano de desintrusão. Portanto, se nenhum plano for desenvolvido a respeito da desintrusão, voltarei ao tema.
Neste sentido, a decisão aponta para a elaboração de um plano de retirada de invasores, que deverá ser implementado pelo Governo brasileiro. A APIB e demais entidades atuantes no processo têm levado petições ao ministro chamando a atenção para a necessidade de enfrentar este aspecto, mas, até o momento, não foi abordado novamente.
2.2. O impacto do vírus nos povos indígenas isolados e de recente contato
Povos indígenas isolados são povos ou segmentos de povos indígenas que não mantêm contatos intensos e/ou constantes com a população majoritária, evitando encontros com pessoas exógenas a seu coletivo. Já povos indígenas de recente contato, ainda segundo o Estado brasileiro, são povos ou agrupamentos indígenas que mantêm relações de contato ocasional, intermitente ou permanente com segmentos da sociedade nacional, com reduzido conhecimento dos códigos ou incorporação dos usos e costumes da sociedade envolvente, e que conservam significativa autonomia sociocultural.
Os atos do Presidente Jair Bolsonaro se revestem de particular gravidade quando se trata dos Povos Indígenas isolados e de recente contato, pois, em que pese toda a população indígena se encontrar mais vulnerável à Covid-19 do que a média da população brasileira, a vulnerabilidade socioepidemiológica a que tais povos estão sujeitos faz com que a situação seja ainda mais crítica. Isso porque os povos indígenas isolados e de recente contato estão submetidos, de forma peculiar, a um grande leque de vetores de vulnerabilidade, que podem se concretizar em diferentes perspectivas:
• vulnerabilidade imunológica, que decorre da carência de defesas imunológicas em seus organismos para combater doenças externas corriqueiras;
• vulnerabilidade sociocultural, que decorre da morte dos mais frágeis (como crianças e anciãos) em virtude de epidemias, muitas vezes contraídas no contato com não indígenas; com a morte de anciãos, o grupo perde líderes políticos, conselheiros, guias espirituais; já com a morte de crianças compromete-se, no médio prazo, a capacidade da renovação da sociedade, podendo, inclusive, vir a alterar os padrões culturais para a formação de casais;
• vulnerabilidade territorial, que decorre da contínua pressão feita pela sociedade não indígena sobre seus territórios e as ameaças aos importantes elementos presentes nesses territórios para as cosmologias dos indígenas de recente contato;
• vulnerabilidade política, que decorre da impossibilidade desses povos de se manifestarem por meio dos mecanismos de representação comumente aceitos pelo Estado, bem como pela falta de difusão e implementação das leis que lhes dizem respeito;
• vulnerabilidade demográfica, uma vez que os atuais agrupamentos dos indígenas de recente contato, via de regra, já passaram por processos de massacre.
Importa recordar que o Brasil é o país com a maior quantidade de povos isolados do Planeta. Atualmente, o Estado reconhece a existência de 114 registros de povos isolados, sendo 28 confirmados14 e outros 86 com vistas a qualificar as informações a respeito da presença dessas populações. Há, ainda, o reconhecimento de ao menos 18 povos indígenas de recente contato15. Dos 86 registros de povos isolados ainda não confirmados, 17 encontram-se desprotegidos, fora de terras demarcadas, em regiões com grandes taxas de desmatamento, segundo o último levantamento feito para o Conselho Nacional de Direitos Humanos que fundamentou a Resolução n. 44/2020.
Com efeito, são diversos – e dramáticos – os relatos de povos indígenas isolados ou de recente contato dizimados por epidemias de doenças infectocontagiosas causadas por contatos com grupos externos. É consenso na historiografia que as doenças foram mais fatais e rápidas no desaparecimento das populações autóctones do continente americano do que as armas dos europeus.
Os atos do Presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia de Covid-19 intencionalmente ameaçam a existência dos povos indígenas isolados. Eles foram praticados tendo em vista aproveitar a oportunidade que a pandemia oferecia de implementar sua política anti-indígena, por concentrar a atenção pública no problema sanitário, e podem ser organizados identificados em três frentes: a) a abertura das terras de povos isolados para entrada de terceiros; b) o desmonte dos órgãos especializados de proteção os povos isolados; c) o ataque governamental ao território dos povos indígenas isolados.
2.2.1. Abertura das terras de povos isolados para entrada de terceiros
O distanciamento manifestado por esses povos é a forma como expressam o seu desejo de ter maior controle sobre as relações que estabelecem com grupos ou pessoas que os rodeiam17. Por essa razão, o não ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados é diretriz da política indigenista do Estado brasileiro desde 1987, como forma de garantir sua autonomia e sua integridade física.
Recentemente, contudo, o Presidente Jair Bolsonaro alterou essa política e passou a permitir a entrada de terceiros nas terras habitadas por esses povos, em plena pandemia de Covid-19.
A Portaria n. 419/2020, da Fundação Nacional do Índio (Funai), possibilitou que as unidades administrativas regionais do órgão autorizassem o contato com índios isolados, alterando a prerrogativa exclusiva da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), unidade desenvolvida, criada e aperfeiçoada ao longo de 33 anos para avaliar situações dessa natureza. Diante da gravidade da medida e da ampla oposição das organizações indígenas, ou seja, após forte rejeição da sociedade civil, a Funai recuou nessa proposta. Logo após, o Presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei n. 14.021/20 para permitir a entrada de missões de cunho religioso nas Terras Indígenas habitadas por povos isolados.
Do ponto de vista epidemiológico, quando ocorre um processo de contato e, também, no período pós-contato, essas populações estão sujeitas a um conjunto de fatores, individuais e coletivos, que fazem com que elas sejam mais suscetíveis a adoecer e morrer em função, principalmente de doenças infecciosas, pelo fato de não terem memória imunológica para os agentes infecciosos corriqueiros na população brasileira e não terem acesso à imunização ativa por vacinas.
2.2.2. Desmonte do órgão especializado na política de proteção de povos isolados
O Presidente Jair Bolsonaro desenvolve a sua política indigenista alinhado com grupos interessados em explorar os territórios indígenas e catequizar seus habitantes. Veja-se, por exemplo, a nomeação de Ricardo Lopes Dias, um missionário ligado à Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), missão religiosa que busca o contato com povos isolados, para a chefia da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC).
São inúmeros os casos de assédio de missionários religiosos nas Terras Indígenas com presença de povos indígenas isolados, como no Vale do Javari, no estado do Amazonas. Desde setembro de 2019, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) vem denunciando a atuação de missionários junto a povos indígenas isolados. Naquela ocasião, três missionários – dentre eles, Andrew Tonkin, que já havia tentado invadir a Terra Indígena em outras ocasiões – realizaram uma expedição em Igarapé, onde vive um povo isolado. No final de março de 2020, lideranças relataram que Andrew Tonkin e Josiah Mcintyre estavam realizando reuniões na cidade de Atalaia do Norte, aliciando jovens indígenas e comprando equipamentos para invadir a TI Vale do Javari em busca de isolados. Ante a recusa da Univaja a permitir a entrada dos missionários no território, o pastor Josiash Mcintyre invadiu a associação e ameaçou colocar fogo na sede.
Em 2019, técnicos da Funai, servidores de carreira do serviço público que não fazem parte das indicações políticas do Presidente Jair Bolsonaro, publicaram um documento23 em que está registrada a escalada de violência contra povos indígenas isolados ou de contato recente:
Ressaltar especial preocupação com a crescente escalada de violência contra os servidores, sobretudo na região do Vale do Javari, onde constantes ataques à Base de Proteção Etnoambiental Ituí-Itaquaí sofreu 05 ataques por invasores desde dezembro de 2018, igualmente, o assassinato do colaborador Maxciel Pereira dos Santos, coloca em risco todo o trabalho desenvolvido há mais de três décadas pelo Estado brasileiro através da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari (FPEVJ). E mais recentemente o ataque de madeireiros que resultou na morte do indígena Paulo Paulino Guajajara na T.I. Arariboia, dentro da área de índios isolados no Maranhão. Devido a esta situação diversos servidores já vêm pedindo afastamento por questão de segurança.
Portanto, não faltaram alertas e avisos por parte dos servidores, cientistas e dos próprios povos indígenas a respeito da gravíssima situação vivenciada pelos povos isolados e os danos ocasionados pela política anti-indígena promovida pelo Presidente Jair Bolsonaro a partir de 2019.
2.2.3. Ataque aos territórios dos povos indígenas isolados
Denúncia feita pelo Observatório dos Direitos Humanos (OPI) dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato, em 27 de novembro de 2020, mostra que o Presidente Jair Bolsonaro, através do ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República, sem qualquer justificativa técnica, decidiu diminuir os limites da Terra Indígena Ituna-Itatá, no estado do Pará, habitada por povos indígenas isolados.
A Terra Indígena Ituna Itatá foi a TI mais desmatada em 2019 no Brasil, com 13% do total de devastação registrado nas áreas indígenas brasileiras pelo sistema Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Somente no último ano, 23% da floresta foram devastados. Nesse mesmo ano, registrou-se aumento de 656% no desmatamento em relação a 2018, pela invasão sistemática de posseiros e grileiros.
Em uma fiscalização do Ibama realizada em agosto de 2019, com apoio da Polícia Federal e da Força Nacional, em um garimpo nas proximidades da Terra Indígena Ituna/ Itatá, os agentes foram recebidos a tiros e houve a queima de máquinas dos garimpeiros ilegais. Em operação de fiscalização realizada em janeiro de 2020, o Ibama encontrou cerca de cinco mil litros de combustível, os quais seriam usados para queimadas ilegais nos municípios próximos à Terra Indígena Ituna/Itatá.
Após permitir toda essa devastação e absurdos, a Terra Indígena Ituna/Itatá teve sua proteção alterada “considerando que as demais áreas do polígono se encontram muito degradadas, sendo pouco provável a presença de índios isolados nessas regiões: ‘é bastante improvável encontrar vestígios recentes de habitação de indígenas isolados na região centro-norte da Terra Indígena”.
De acordo com o OPI, a redução da terra poderá causar aos índios isolados “a destruição física total ou de uma parte da população”, expô-los “a ataques violentos com vistas a desaparecer forçadamente com sua existência”, acarretar “danos à integridade mental de membros do grupo”, além de provocar, “por expulsão ou outro ato coercitivo, o deslocamento forçado da zona em que se encontram legalmente”.
A presença de invasores nas Terras Indígenas de povos isolados é extremamente grave neste contexto de pandemia. Ademais, o Presidente Jair Bolsonaro promove o aumento acelerado do desmatamento na Amazônia brasileira, inclusive nas Terras Indígenas, o que tem peculiar impacto em povos isolados.
Conforme dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento na Amazônia Legal em 2019 aumentou 30% em relação a 2018. O levantamento do Inpe apontou as terras mais desmatadas: Ituna/Itatá (Pará), Apyterewa (Pará), Cachoeira Seca (Pará), Trincheira Bacajá (Pará), Kayapó (Pará), Munduruku (Amazonas e Pará), Karipuna (Rondônia), Uru-Eu-Wau-Wau (Rondônia), Manoki (Mato Grosso), Yanomami (Roraima e Amazonas), Menkü (Mato Grosso), Zoró (Mato Grosso) e Sete de Setembro (Rondônia e Mato Grosso).
Nota-se que, dentre essas, Ituna/Itatá (restrição de uso), Munduruku (homologada), Kayapó (homologada) e Zoró (homologada) possuem evidências de povos isolados em estudo pela Funai, enquanto Uru-Eu-Wau-Wau (homologada) e Yanomami (homologada), além das evidências, também possuem povos isolados confirmados.
O movimento indígena tem denunciado sistematicamente a situação da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, que vem sofrendo invasões por grileiros e madeireiros ilegais, e da Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, que abriga o povo isolado Awá-Guajá. Em ambas, os próprios indígenas se organizaram para fazer a vigilância e proteção do território, denunciar a invasão e extração de madeira nas Terras Indígenas, o que acirrou os conflitos com os invasores
Essas tensões resultaram, somente nos últimos seis meses, no assassinato de três membros dos grupos de proteção indígenas e lideranças: Ari Uru-Eu-Wau-Wau, em 18 de abril de 2020; Paulinho Guajarara, em 1º de novembro de 2019; Zezico Guajajara, em 31 de março de 2020.
Em relação às TIs Yanomami e Munduruku, os indígenas vêm relatando há anos a escalada da atividade garimpeira ilegal de ouro. Como dito antes, nesta comunicação, somente na Terra Indígena Yanomami são estimados mais de 20 mil garimpeiros em atividade ilegal dentro do território e em plena expansão. Em 2020, foi identificada uma nova área de garimpo distante apenas 5 km de um roçado dos isolados Moxihatetea.
Além da preocupação com a violência dos invasores e o risco de contaminação por Covid-19 que esses atos trazem no contexto da pandemia, estudos têm mostrado alta contaminação por mercúrio nas zonas invadidas31. Na Terra Indígena Munduruku, no Pará, os indígenas vêm se organizando para coibir o garimpo e a mineração ilegal (realizada com máquinas pesadas, como retroescavadeiras) e denunciado o aumento paulatino da invasão e destruição causada no território em uma série de comunicados.
Em 2019, a região das cabeceiras do rio Cabitutu foi invadida e destruída pelas máquinas de garimpo em um território reconhecido como de presença de um povo em isolamento voluntário pelos Munduruku.
No início de março de 2020, o Ibama lançou outra série de ações de fiscalização em Terras Indígenas nas proximidades da TI Ituna/Itatá. A ação tinha em vista reprimir a invasão das TIs Apyterewa, Trincheira-Bacaja e Arawaté por garimpeiros e posseiros com o propósito primordial de impedir o contágio dos indígenas pela Covid-19. Na semana seguinte, o diretor de Proteção Ambiental do órgão, em Brasília, Olivaldi Borges Azevedo, foi exonerado do cargo, e outros servidores em cargos de chefia também estão sendo pressionados.
Essa série de ações e omissões perpetradas ou autorizadas pelo Presidente Jair Bolsonaro nos últimos dois anos causou danos irreversíveis nos territórios habitados por esses povos e tem impossibilitado a manutenção das suas formas de vida.
O guerreiro Aruká Juma, que faleceu em Porto Velho (RO), em 17 de fevereiro de 2021, vitimado pela Covid-19, é exemplo do extermínio estimulado pelo Presidente Jair Bolsonaro. Ele era o último homem do povo Juma, etnia que já teve entre 12.000 e 15.000 membros. A morte de Aruká Juma é extremamente grave e, “com ele, todos morremos um pouco”. Ela simboliza os efeitos devastadores da política em curso no Brasil, instituída pelo Presidente Jair Bolsonaro desde 1º de janeiro de 2019, que destruiu a política de não contato e adotou, no plano discursivo, legislativo e no âmbito administrativo, diversas medidas omissivas ou comissivas que agravaram significativamente as possibilidades de continuidade das formas de vida indígena em seus territórios.
2.3. Alguns casos
2.3.1. Contaminação e invasão nos Munduruku
O garimpo é uma forma de invasão e destruição ambiental das Terras Indígenas. Trata-se, portanto, de uma violação patente dos direitos territoriais dos povos indígenas. Para se obter acesso a zonas de garimpo, muitas vezes, são construídos ramais e estradas que contribuem para o desmatamento, facilitando inclusive a extração de madeira e o loteamento das áreas afetadas.
A contaminação por mercúrio decorrente do garimpo produz graves impactos no meio ambiente e afeta sobremaneira a saúde indígena. O metal pesado é amplamente utilizado na extração de ouro, com o objetivo de separar o metal precioso dos sedimentos. Após sua liberação no ambiente, o mercúrio sofre diversas transformações químicas e é incorporado na cadeia alimentar, atingindo os seres humanos e podendo causar problemas neurológicos sensitivos e motores, bem como outras enfermidades graves. Na Amazônia, onde o garimpo tem avançado de forma pronunciada, a contaminação por mercúrio provoca danos diretos à saúde dos povos indígenas, que têm nos peixes um elemento indispensável de sua dieta.
Os Munduruku34, povo indígena com mais de 16.000 habitantes que vive na região do Rio Tapajós, no sudoeste do estado do Pará, é um dos mais impactados pelo garimpo no Brasil. A ausência de fiscalização e, mais recentemente, os incentivos ao garimpo dentro e ao redor de suas terras têm levado a uma situação de calamidade ambiental e de saúde pública nesse povo.
Pesquisa realizada entre 2019 e 2020 pela Fiocruz, em parceria com a WWF, avaliou os impactos da contaminação por mercúrio em habitantes de três terras Munduruku: Sawré Muybu, Poxo Muybu e Sawré Aboy. Os resultados da pesquisa revelam a severidade da contaminação por mercúrio nessas aldeias e as graves doenças neurológicas que já estão se manifestando. É inquestionável que a atividade garimpeira está, aos poucos, levando ao adoecimento e à morte dos Munduruku. Trata-se de uma população inteira contaminada por um metal pesado que está presente em seus rios, seus alimentos e seus corpos. O estudo concluiu que os níveis de contaminação por mercúrio no rio Tapajós têm aumentado de forma significativa ao longo dos últimos anos, uma vez que pesquisas realizadas anteriormente, na mesma região, apontavam para níveis de mercúrio 2,6 vezes menor e 26,3% inferior aos observados nas amostras aqui estudadas. Tal estudo propôs uma série de recomendações claras para as autoridades públicas, dentre elas, a interrupção imediata das atividades garimpeiras e a completa desintrusão das Terras Indígenas afetadas pela mineração ilegal.
Em dezembro de 2020, provocada a se pronunciar pelo movimento indígena, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) reconheceu que o garimpo era o principal vetor levando a Covid-19 para dentro das terras Munduruku e solicitou que o Governo brasileiro tomasse as providências necessárias para proteger os direitos à saúde, à vida e à integridade pessoal dos membros do Povo Indígena Munduruku.35 A decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi descumprida. Como se vê, há um estreito nexo entre a destruição intencional da política socioambiental e indigenista que se conformou nas décadas de democracia no Brasil, o ataque às Terras Indígenas e estímulo às invasões, a destruição ambiental caracterizada pelo desmatamento e incêndios, o adoecimento e a morte de povos indígenas. Está em curso uma política composta por atos deliberados, extensa e disseminada, implementada diretamente pelo Presidente Jair Bolsonaro através de vários órgãos governamentais sob seu comando.
O garimpo também destrói vidas indígenas de outra maneira: alimentando conflitos por territórios, que se traduzem em ataques às vidas das defensoras e defensores dos direitos territoriais indígenas, e principalmente dos que estão na linha de frente. A partir do final de 2020, as invasões e tensões envolvendo garimpeiros na TI Munduruku se intensificaram de forma inédita. A escalada dos conflitos foi amplamente registrada e divulgada, seja em cartas e notas assinadas pelas associações do povo Munduruku, seja pelas notas públicas de órgãos nacionais solicitando que o governo Jair Bolsonaro tomasse providências para conter a situação. A escalada dos conflitos chegou aos principais veículos da imprensa internacional, que trouxe notícias de um iminente conflito armado na TI Munduruku e da omissão do poder público brasileiro. Mesmo diante de tudo isso, o Presidente Jair Bolsonaro não tomou nenhuma providência.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Escritório Regional do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos emitiram um comunicado à imprensa, em 19 de maio de 2021, demonstrando preocupação com os recentes conflitos nas Terras Indígenas Munduruku e Yanomami, onde garimpeiros armados, incentivados pelo Presidente Jair Bolsonaro, vitimaram crianças indígenas. A relação entre os atos e discursos do Presidente Jair Bolsonaro no incentivo aos ataques às Terras Indígenas através do desmatamento, da mineração e do garimpo e as graves violações a direitos humanos dos povos indígenas foi reconhecida pela CIDH e ACNUDH.
Os conflitos foram levados a conhecimento do Supremo Tribunal Federal, e a APIB demandou que o judiciário brasileiro fornecesse medidas de proteção à saúde e à terra dos povos indígenas, coibindo invasões, encerrando as atividades de garimpo ilegal e promovendo a desintrusão dos invasores – medidas que seriam capazes de amenizar a contaminação por mercúrio e por Covid-19. O judiciário aceitou apenas o primeiro pedido e determinou a atuação de forças policiais, com reforço do Exército brasileiro, para evitar conflitos e novas invasões.
A decisão foi descumprida pelas forças policiais e pelo Exército, subordinados ao Presidente Jair Bolsonaro. O ministro relator de ação judicial movida pela APIB, ao saber do descumprimento da decisão, “registrou com desalento o fato de que as Forças Armadas brasileiras não tenham recursos para apoiar uma operação determinada pelo Poder Judiciário para impedir o massacre de populações indígenas”.
Os indígenas do Povo Munduruku emitiram novo comunicado em 9 de junho de 2021, denunciando a interdição de vias de acesso e a ausência de proteção policial aos indígenas e a suas terras. Não obstante a existência de medidas cautelares concedidas ao povo Munduruku, a manifestação do ACNUDH e de decisões judiciais nacionais, a atuação da Polícia Federal para proteger os indígenas foi cancelada e permanece a violência crescente: crimes contra a humanidade e genocídio estão em curso contra o povo Munduruku.
2.3.2. Garimpo, morte e destruição na Terra Indígena Yanomami
O garimpo também está inviabilizando a vida dos povos indígenas que vivem na TI Yanomami, situada nos estados de Roraima e do Amazonas, na fronteira com a Venezuela. A TI Yanomami é coabitada pelos Yanomami39, Yek’wana40 e pelos indígenas Moxihatetea, que são considerados indígenas isolados. Há, ainda, evidências de grupos em isolamento voluntário em estudo. A população estimada é de 27.398 indígenas, que vivem em cerca de 331 comunidades. A TI Yanomami possui 9,6 milhões de hectares e foi homologada pelo Decreto s/n de 26 de maio de 1992.
As políticas de destruição implementadas por Jair Bolsonaro levaram a uma intensificação da invasão e exploração ilegal do garimpo dentro da TI Yanomami. Segundo o Prodes, 2019 foi o ano de maior taxa de desmatamento na TI Yanomami nos últimos 13 anos, totalizando 3.463 hectares. A TI já acumulou mais de 30 mil hectares em desmatamentos. Nos dois últimos anos, o desmatamento total (3.679 hectares) representou 12,2% do desmatamento acumulado no território. De acordo com o Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal na TI Yanomami (SMGI), o somatório da área degradada pelo garimpo dentro dessa TI observada até dezembro de 2020 é da ordem de 2.400 hectares, sendo que, somente de janeiro a dezembro de 2020, foram degradados 500 hectares de território. Novos garimpos foram abertos e houve um influxo intenso de pessoas não indígenas para participar da exploração, tudo protegido pela inércia dos órgãos públicos.
A expansão do garimpo tem levado à destruição do território, dos corpos e das vidas dos Yanomami. Conforme apontado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)41, estamos voltando a uma situação semelhante à dos anos 1980, configurada pelo abandono do território pelo poder público, pelo enfraquecimento de políticas territoriais e sanitárias, por pandemias e pela violência levada pelo garimpo.
Assim como os Munduruku, os Yanomami também estão seriamente contaminados pelo mercúrio. Em estudo realizado em colaboração de diversas entidades [ENSP/ Fiocruz; PUC-RJ; Instituto Socioambiental (ISA); Hutukara Associação Yanomami (HAY); Associação do Povo Ye’kwana do Brasil (APYB)], no qual se avaliaram os níveis de contaminação por mercúrio (considerando índices ≥ 6,0 μg.g-1) em 19 aldeias distribuídas na Terra Indígena Yanomami e agrupadas em 3 regiões (Paapiú, Waikás Ye’kwana e Waikás Aracaçá), no estado de Roraima, em 2014, os autores revelaram que as prevalências de contaminação foram distintas, variando de 6,7% em Paapiú, passando por 27,7% na região Waikás Ye’kwana, atingindo 92,3% das pessoas na região de Waikás Aracaçá.
Vale lembrar que Paapiú sofreu impactos do garimpo na primeira corrida do ouro na década de 1980 e, hoje em dia, aproximadamente 30 anos mais tarde, quase 7% das pessoas ainda apresentam elevados níveis de contaminação. Por sua vez, as áreas de Waikás Ye’kwana e Waikas Aracaçá, na ocasião da coleta de dados, encontravam-se sob pressão atual do garimpo.
O aumento dos casos de malária está intimamente associado às invasões, garimpo e degradação ambiental, já que áreas abertas facilitam a proliferação dos mosquitos vetores da doença. Não é à toa que a TI Yanomami enfrenta altíssima incidência da doença. De acordo com o Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) Yanomami, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, de 1º de janeiro a 12 de agosto de 2020, foram notificados 13.733 casos de malária no território e nove mortes.
Ao longo de 2020 e 2021, as associações Yanomami têm relatado uma escalada contínua de intimidações e violência praticadas por garimpeiros contra indígenas e pedido providências das autoridades públicas. Porém, nada foi feito. Na data de 14 de junho de 2020, duas lideranças Yanomami foram assassinadas na comunidade Xaruna, na Serra do Parima (Alto Alegre), devido a conflito com garimpeiros.43 O ataque foi denunciado pela Hutukara Associação Yanomami. Em resposta, o Ministro da Defesa minimizou a tensão entre indígenas e garimpeiros na Terra Yanomami e disse que os conflitos “não são corriqueiros”.
Diversas instituições internacionais e nacionais se posicionaram ao longo dos últimos meses exigindo que o governo do Presidente Bolsonaro tome medidas para resguardar a vida e a saúde dos Yanomami. Em 20 de julho de 2020, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) deferiu o pedido de medidas cautelares enviado pela Hutukara Associação Yanomami em conjunto com o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), reconhecendo que existe um grave risco de dano irreparável à saúde, vida e integridade pessoal dos povos indígenas da Terra Yanomami e exigiu medidas urgentes a serem tomadas pela Estado brasileiro, como a retirada dos garimpeiros45. Em Ação Civil Pública, promovida pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Hutukara Associação Yanomami, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) deferiu uma liminar para que a União, o Ibama, a Funai, o ICMBIO e a Polícia Federal apresentassem um plano e executassem a retirada dos garimpeiros da Terra Yanomami como medida eficaz para prevenir a disseminação da doença Covid-19 nas aldeias.46 As decisões vêm sendo sistematicamente descumpridas
Em dezembro de 2020, uma adolescente Yanomami foi sequestrada por garimpeiros em Surucuru, revelando a escalada de violência na comunidade. Casos como esses expõem a tensão e a violência que a presença garimpeira em área indígena gera.
O povo Yanomami, mesmo beneficiário de medidas cautelares concedidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, segue em risco. As medidas vêm sendo descumpridas pelo governo de Jair Bolsonaro. E, assim como nas terras Munduruku, os ataques contra indígenas escalaram nos primeiros meses de 2021.
Em março de 2021, garimpeiros atacaram a comunidade de Helepe, dando início a um tiroteio que resultou em um óbito e um ferido. Em ofício enviado pela HAY, os órgãos competentes foram alertados para a escalada dos conflitos entre garimpeiros e indígenas, bem como para possíveis retaliações por parte dos garimpeiros, que tomavam controle do acesso e da circulação de pessoas no rio Uraricoera. Na ocasião, nenhuma medida foi tomada para retomar a segurança no local e garantir a livre circulação para os indígenas, em sua própria terra.
Diante da completa omissão do governo Jair Bolsonaro, o conflito escalou desde então. Em 30 de abril de 2021, houve um tiroteio na comunidade de Palimiu, após desentendimentos com garimpeiros que trafegavam no rio Uraricoera. Temendo retaliações, a comunidade pediu apoio do poder público para a manutenção de sua segurança. Em 18 de fevereiro, lideranças da comunidade já haviam protocolado ofício à Polícia Federal alertando para a ameaça à sua saúde e vida representada pela intensa atividade garimpeira que vinha se impondo sobre as comunidades da região, solicitando apoio para a sua retirada.
No dia 10 de maio de 2021, a HAY recebeu denúncias de um ataque de garimpeiros à comunidade de Palimiu, deixando quatro garimpeiros baleados e um ferido. Nesse dia, os indígenas foram ameaçados de novas retaliações. No final do dia, o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami fez visita à comunidade e retornou confirmando o conflito, com quatro mortes.
Já em 11 de maio de 2021, a Polícia Federal realizou diligência na comunidade do Palimiu e foi recebida a tiros por garimpeiros, dando início a novo conflito na comunidade. Ao fim da diligência, o órgão se retirou do local, deixando os Yanomami vulneráveis a novas retaliações. Em 12 de maio de 2021, a equipe do Exército se deslocou para a comunidade do Palimiu, onde permaneceu por duas horas somente. Mais uma vez, o poder público se retirou deixando os Yanomami vulneráveis a novos ataques: às 22h45 do mesmo dia, os garimpeiros novamente atiraram contra a comunidade.
Mediante a inércia dos órgãos públicos locais responsáveis por manter sua segurança e deixados sozinhos para se defenderem dessa sequência de ataques armados, os Yanomami e Ye’kwana seguem pedindo a todas as instâncias que seu pedido de socorro seja escutado. Assim como ocorreu com o povo Munduruku, a CIDH e o ACNUDH se manifestaram em comunicado de imprensa, conclamando o Brasil a cumprir com seus compromissos internacionais. Até o momento, no entanto, a resposta do governo deJair Bolsonaro a essas decisões, e à reivindicação contínua do povo Yanomami, é inexistente. O Presidente Jair Bolsonaro segue incentivando a atividade minerária e a invasão de Terras Indígenas, não assumiu o compromisso de desintrusão da TI Yanomami, nem tomou medidas concretas para tanto. Segue, assim, promovendo e apoiando, de forma sistemática e contínua, a destruição da vida e formas de vida do povo Yanomami e dos demais povos indígenas que vivem dentro da TI Yanomami. Ainda em maio de 2021, no dia 16, houve novo ataque a tiros e bombas contra comunidade do Palimiu48, realizado por garimpeiros, com uso de mais de uma dezena de barcos.
Ao trazer adoecimento, morte e violência, o garimpo inviabiliza as formas de vida indígenas. Em decorrência da destruição ambiental, não se pode mais tomar água dos igarapés, tomar banho nos rios, comer pescado. Elementos fundacionais da forma de vida indígena na floresta, da organização social indígena e da sua cultura vão sendo violentamente aniquilados.
2.3.3. Adoecimento e contaminações no Povo Terena
Situações semelhantes, também, foram denunciadas por outros povos indígenas de diversas regiões do País. Um caso sintomático desse tipo de ações pode ser verificado dos relatos recebidos pela APIB em relação ao povo Terena49, sobretudo no que se refere ao ano de 2020. O povo Terena é hoje o terceiro povo indígena com o maior número de mortes por Covid-19 no Brasil, com mais de 60 óbitos confirmados.
Desde o início da crise sanitária, o Conselho Terena vem monitorando os casos de Covid-19 em seus territórios, fato que evitou uma expansão vertiginosa do vírus nos seus territórios até junho de 2020. Além do acompanhamento dos casos, a entidade realizou a instalação e manutenção de barreiras sanitárias, pois o poder público não tomou qualquer medida nesse sentido. Apesar dos esforços de se controlar possíveis vetores da doença, o primeiro caso de óbito do povo Terena aconteceu no dia 14 de julho de 2020 e, a partir daí, a Covid-19 se espalhou pelo território. Nem a Sesai ou qualquer outro órgão do Governo Federal apoiou ou instruiu o Conselho sobre como evitar a propagação do vírus, nem forneceu estruturas para isolamento dos doentes ou disponibilizou informações sobre protocolos de isolamento e cuidados. Ou seja, os órgãos públicos simplesmente se omitiram e deixaram de tomar as medidas sanitárias necessárias para a proteção da população indígena.
Diante do colapso sanitário e da falta de atendimento, o Conselho Terena acionou a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) como forma de enfrentar a pandemia em seus territórios. O grupo Médicos Sem Fronteiras já se encontrava no município de Aquidauana com profissionais de várias partes do País e do mundo, com experiência global em ações de emergência e em situações extremas de colapso sanitário. O apoio à organização médica foi solicitado desde o dia 24 de julho de 2020 pelo Conselho Terena, junto com a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul.
No entanto, em agosto de 2020, a Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) chegou a proibir tal ajuda humanitária ao povo Terena, na Terra Indígena Taunay Ipegue, no município de Aquidauana (MS), em um momento no qual as aldeias encontravam-se em colapso sanitário e os casos de mortes aumentaram mais de 500%.
À época, as onze aldeias da cidade contavam com apenas dois médicos da Sesai, três médicos da Secretaria Municipal de Saúde, ou seja, cinco médicos para todas as comunidades de Aquidauana.51 A proibição veio do secretário nacional da Sesai, Robson Santos da Silva. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) acionou o Ministério Público Federal (MPF) em 24 de agosto de 2020 para que o secretário fosse investigado por improbidade administrativa pela proibição da ajuda humanitária ao povo Terena.
Somente em setembro de 2020, após muito tempo perdido, a organização Médicos Sem Fronteiras recebeu autorização para começar a atender indígenas em Mato Grosso do Sul. O Ministério da Saúde voltou atrás e aprovou o plano de trabalho da ONG, que prevê atendimento nas onze aldeias de Aquidauana e Anastácio.53 A autorização de atendimento dada aos Médicos sem Fronteiras, portanto, só foi viabilizada após forte mobilização indígena.
Quanto à vacinação de indígenas no Mato Grosso do Sul, de acordo com dados do Ministério da Saúde, o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do referido estado vacinou 23.881 indígenas, de um total de 45.693 indígenas previstos pelo programa de vacinação. A Sesai excluiu do plano de vacinação contra Covid-19 os indígenas que vivem em terras não homologadas, como é o caso da Terra Indígena Taunay, a qual se encontra em estado avançado de demarcação, mas não entrou na cobertura de imunização.
Diante disso, a APIB e o Conselho Terena pediram ao Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul que seja instaurado inquérito civil para apurar os motivos da não inclusão dos indígenas do povo Terena, residentes no distrito de Taunay, na prioridade de vacinação contra Covid-19. Essa diferenciação entre indígenas aldeados e não aldeados não encontra qualquer amparo legal e se caracteriza por uma lógica assimilacionista vedada no ordenamento jurídico brasileiro e nos tratados internacionais de direitos humanos.
Entretanto, como já mencionado, as decisões judiciais têm sido descumpridas.
2.3.4. Conflitos, ataques e mortes no Povo Guarani-Kaiowá
Desde maio de 2020, a APIB tem recebido, sistematizado e analisado denúncias sobre os impactos da política anti-indígena do Presidente Jair Bolsonaro em diferentes comunidades. São relatos feitos diretamente por lideranças indígenas e membros das comunidades, com informações sobre episódios de violência, adoecimento, mortes e perseguições promovidas e incentivadas pelo Presidente Jair Bolsonaro. São relatos diretos das vítimas dos crimes do Presidente da República. Um desses casos se refere ao povo Guarani Kaiowá57, no Mato Grosso do Sul. A denunciante Adrieli Guarani, residente do município de Dourados (MS), informou que, durante a pandemia de Covid-19, os serviços públicos se negavam a fazer a remoção de doentes da comunidade Jaguapiru, razão pela qual membros da comunidade se viram obrigados a levar doentes em veículos particulares para buscar atendimento hospitalar, fato que ampliou a propagação do vírus entre os membros da comunidade que se viram obrigados a salvar os seus parentes sem o apoio dos órgãos estatais responsáveis pela assistência de saúde para os povos indígenas.
Nessa linha, o Cacique Isael Morales relatou situações graves de omissão de socorro, falta de assistência médica adequada para atender as demandas da comunidade indígena, apontando a prática de racismo institucional em face de indígenas contaminados pela Covid-19 por parte dos órgãos públicos responsáveis pelos serviços de saúde. Esse tipo de situação não ocorre apenas com os Guarani Kaiowá, no Mato Grosso; a APIB recebeu dezenas de denúncias de vários povos indígenas nas diversas regiões do País, confirmando que de forma recorrente os povos indígenas, durante a pandemia de Covid-19, vêm sofrendo pela omissão de socorro, falta de atendimento de saúde adequado, contaminação de indígenas (por contato com servidores públicos contaminados que não cumpriram as medidas quarentenárias adequadas para ingressar nos territórios indígenas), pela falta de medicamentos e por ações discriminatórias que, ademais, são uma constante na relação entre o poder público e os povos indígenas.
Além do contexto específico de violações no âmbito na pandemia de Covid-19, a violação de direitos humanos dos povos indígenas, em especial as decorrentes da sua espoliação territorial, tem acarretado danos irreversíveis e inviabilizado a continuidade dos modos de vida e das suas práticas culturais. Dentre os diversos casos, o do Povo Guarani Kaiowá é paradigmático, uma vez que o avanço da fronteira agrícola e do latifúndio sobre os seus territórios ancestrais tornou os conflitos vivenciados por esse povo extremamente violentos e sangrentos.
Além disso, os Guarani Kaiowá têm sofrido com a contaminação das suas fontes de água e sérios problemas de saúde decorrentes da contaminação pelo uso indiscriminado de agrotóxicos nas fazendas da região. Segundo reportagem do jornal El País58, os fatos ocorreram entre os dias 6 e 11 de maio de 2019, e teriam sido ocasionados pela aplicação de herbicidas a poucos metros da aldeia. Diante disso, vários indígenas — em sua maioria, crianças e idosos— apresentaram sintomas de intoxicação por pesticidas, como irritação da pele, enjoo, diarreia e dores de cabeça. Esses problemas não ocorrem apenas com os Guarani Kaiowá. Na região norte do País, diversos relatos apontam problemas semelhantes.
3 Considerações finais
Diante do exposto, não há dúvida de que o Governo brasileiro, sob gestão do Presidente Jair Bolsonaro, cometeu violações ao direito à vida e à saúde dos povos indígenas. Infringiu não apenas os artigos 196 c/c 231 da Constituição Federal, mas também tratados internacionais que protegem a dignidade humana e a cidadania cultural dos povos indígenas. Além de adotar uma conduta negacionista no enfrentamento da pandemia, deixou à própria sorte os povos e comunidades, pois, à medida que o vírus avançava sobre os territórios, as invasões aumentavam, e a Funai quedou-se inerte.
O Estado brasileiro é o único no mundo que possui uma agência estatal do tamanho e propósito da Funai, pois foi projetada para ser a entidade de defesa desses povos. Os indígenas, razão de ser da Funai, passaram a ser perseguidos e criminalizados. Ao mesmo tempo, o Governo legislou de modo a beneficiar os invasores ilegais dessas terras. São condutas criminosas que custaram a vida de indígenas brasileiros.
Referências
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