Tribunal nega provimento aos recursos apresentados pela Funai e União contra a conclusão da demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos

Tribunal nega provimento aos recursos apresentados pela Funai e União contra a conclusão da demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos

No começo do ano, a Justiça Federal em Santa Catarina, em decisão liminar em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF), reconheceu a obrigação  da Funai e da União de concluir o procedimento demarcatório e de promover políticas adequadas de proteção territorial na Terra Indígena Morro dos Cavalos. A decisão prevê o pagamento de multa de 1 milhão de reais para caso de descumprimento.

Mas, logo em seguida, a União e Funai apresentaram recursos ao TRF-4, que suspendeu os efeitos da decisão liminar sobre a conclusão do procedimento demarcatório e aplicação de multa. Depois disso, a Comunidade Guarani da Terra Indígena Morro dos Cavalos se habilitou no processo, apresentando manifestações em primeira e em segunda instância, buscando a restauração dos efeitos da decisão liminar.

Agora, tivemos uma vitória importante: os recursos da Funai e da União foram desprovidos no TRF-4. 

Ficou decidido que a FUNAI e a União devem dar andamento à finalização do processo demarcatório no prazo máximo já estipulado, o qual passa a contar a partir da intimação da decisão do Tribunal, e também cumprir e promover políticas públicas permanentes para evitar novas invasões, promover ações de reintegração de posse contra os ocupantes irregulares, além de sinalizar a área com placas para indicar a proteção do território indígena. Havendo descumprimento de qualquer das medidas determinadas ocorrerá  aplicação da multa fixada.

Aguyjevete! Homologação Já!

A nossa Identidade Cultural coletiva não é Fantasia

A nossa Identidade Cultural coletiva não é Fantasia

Foto: Matheus Veloso

Por Célia Xakriabá.

E como ousa nos  silenciar quando se referem a nós indígenas mulheres apenas de  corpos exóticos. Não somos as emocionais, queremos dizer aos músicos que, discriminação  mata sem dizer no preconceito institucional e, dependendo do lugar. Vivenciamos cada absurdo que consideramos desumanas que se fosse ao contrário geraria muita revolta, mas são corpos indígenas, que sofrem essa violência.

E nós perguntamos: Porque nós indígenas somos lembrados  apenas na época do carnaval como fantasia? Mais quando estamos manifestando lutando por nossos direitos o noticiário nos silencia e usa distorcidamente que estamos invadindo?  

Porque quando nós indígenas sempre que expressamos nossa cultura/identidade com altivez, temos que escutar repetidamente, vocês são índios? Mas índio mesmo? Índio de verdade? Estão  vestidos assim vão apresentar algum teatro? A cada pessoa que se dirige a nós com esta pergunta tão agressiva é uma tentativa de deslegitimar e silenciar a nossa identidade, pois não sabem o quanto o processo histórico de invasão nos deixou cicatrizes.

Porque na nossa sociedade, pessoas não indígenas, podem se utilizar de elementos ou identidades de outras culturas e isso será visto como “fofo e bonito”, e “exótico.”  Mas, no momento em que um de nós indígena  que é parte da cultura resolve exigir-nos o direito de falar a nossa língua, de praticar nossos rituais, danças e costumes da nossa tradição cultura milenar, de pintar corpo e pintar o rosto, usar vestimentas da nossa cultura que carrega significado para além do  simbólico e sagrado, muitas vezes somos discriminados, temos que aguentar piadinhas estereotipadas, temos de aguentar críticas, como: lugar de índio é no mato é na aldeia, índio? E com celular, índio e viajando de avião. Não é vitimismo, o preconceito que sofremos é real, muitas das vezes somos motivo de gracinha, até sofremos agressões, preconceito e dependendo do lugar e com quem esbarramos, nossos corpos territórios são executadas, trazemos aqui a memória de duas meninas indígenas que sofreram violência.

Daiane Kaingang, Raissa Guarani Kaiowá, meninas jovens brutalmente assassinadas, estupradas neste ano de 2021 meninas que tiveram a vida  interrompida pela Brutal violência…..

E segue a pergunta violenta! São índios? Índio mesmo? De verdade?

  • Nossas lideranças não derramam sangue na luta pelo território de mentira
  • O enfrentamento que fazemos nas ruas, BRs,/Congresso Nacional, e somos atacados violentamente com spray de pimenta, bomba de borracha, esta luta não é de mentira 
  • Crianças, jovens, mulheres são assassinados da beira da estrada não é de mentira
  • O grande índice de suicido nos povos indígenas não é de mentira
  • Sofremos racismo, e não é de mentira.

Se tudo isso não é de mentira somos povos indígenas/originários.

Nossa identidade não é um feitiche,se racismo reproduz aciona o gatilho da violência história cometida a nossos corpos a nossa existência.

Denunciamos a intolerância e o racismo, o racismo é uma forma violenta de delimitar as fronteiras dos lugares que o povo.

A nossa luta é anticolonial e

Anti Racista

Não calarão as nossas vozes coletivas e não silenciarão nosso corpo.

O nosso pertencimento está  na nossa raiz de quem somos.

Nos últimos anos, falamos, ouvimos e defendemos a nossa causa, seja ela contra ou não de racismo de discriminação de gênero contra indígenas mulheres.

Nosso corpo é nosso território, nele existe o sagrado de existir de cada ANMIGA.

Portanto, a música é violenta e mata nossa identidade.

Dizemos não a essa prática

Povos indígenas e as violações do direito humano à saúde no contexto da pandemia da Covid-19: subsídios à denúncia internacional

Povos indígenas e as violações do direito humano à saúde no contexto da pandemia da Covid-19: subsídios à denúncia internacional

Foto: Juliana Pesqueira

Por Luiz Eloy Terena

A pandemia da Covid-19 escancarou problemas estruturais relacionados aos povos e comunidades indígenas no Brasil. Demandas sociais ligadas à proteção territorial, atendimento à saúde indígena em diversos contextos territoriais e formulação de políticas públicas identitárias acabaram desaguando no judiciário. Se, por um lado, exigiu-se dos povos indígenas a capacidade política de demandar ações junto às instâncias nacionais e internacionais, a análise situacional nos aponta, de igual modo, para rotinas e práticas administrativas incapazes de lidar com a diversidade indígena, bem como uma indisposição governamental em acatar os preceitos constitucionais de proteção dos povos indígenas.

A presente análise tem por objetivo oferecer subsídios para a elaboração de documento denúncia que aponte as violações ao direito à vida e à saúde dos povos indígenas no Brasil no contexto da pandemia de Covid-19. O enfoque metodológico se pautará a partir de análise documental produzida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), consistente em relatórios compilados a partir de denúncias recebidas de organizações e lideranças locais. Além disso, ter-se-á como fonte de exame os documentos oficiais juntados nos autos da ADPF 709, em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), proposta pela APIB e mais seis partidos políticos, em junho de 2020, bem como as decisões judiciais desencadeadas até o presente momento.

Tais fatos não podem ser examinados de forma estanque; pelo contrário, deve-se conjuntar o exame ao desenvolvimento da atual política indigenista adotada pelo Governo Federal, que, inclusive, é objeto de denúncia no Tribunal Penal Internacional (TPI).

1. Contextualizando os povos indígenas no Brasil

Mesmo que ultrapassados, acreditamos ser importante trazer os dados do IBGE (2010) sobre o “Brasil indígena: são mais de 305 povos indígenas, 274 línguas, além do registro de 114 povos isolados e de recente contato. Segundo o mais recente censo demográfico, realizado em 2010, 896 mil pessoas se declararam ou se consideravam indígenas no Brasil, sendo 572 mil (63,8%) residentes em áreas rurais. Desse total, 517 mil (57,7%) residiam em Terras Indígenas (TIs) oficialmente reconhecidas (IBGE, 2010). Isso demonstra a expressiva diversidade étnica da República Federativa do Brasil, e nos possibilita entender a guinada constitucional do texto de 1988 ao reconhecer a esses povos sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e o direito originários às terras tradicionalmente ocupadas (artigo 231, CF/88). Inaugurou-se uma ordem jurídica consubstanciada num Estado pluriétnico , rompendo com o paradigma tutelar que operava sobre os povos originários e uma política indigenista pautada em ações que visavam a assimilação dos povos indígenas.

Avanços significativos no campo legal foram reconhecidos aos povos indígenas e comunidade tradicionais desde a promulgação da Constituição até as normas infraconstitucionais implementadas nos últimos anos no contexto de governos de caráter relativamente mais progressistas. Porém, o campo político atual no Brasil é muito desfavorável aos povos indígenas, tendo em vista que, nas eleições de 2018, foi eleito para o cargo de Presidente Jair Bolsonaro, primeiro Presidente eleito pós-período de redemocratização declaradamente contrário aos direitos dos povos indígenas.

Desde então, a execução e a implementação da política indigenista brasileira passaram a ser pensadas e normatizadas a partir da lógica do patronato ruralista, na sua perspectiva mais retrógada de todos os tempos. Como bem aponta o documento final do Acampamento Terra Livre (ATL), realizado em abril de 2020, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), “Bolsonaro, logo que assumiu o Governo, editou a medida provisória 870/19, na qual determinava o desmembramento da Fundação Nacional do Índio (Funai) e suas atribuições, repassando a parte de licenciamento ambiental e de demarcação de Terras Indígenas ao Ministério de Agricultura, comandado pela bancada ruralista, inimiga de nossos povos, na pessoa da ministra fazendeira Teresa Cristina, a ‘musa do veneno’.” (APIB, 2020a).

Além de voltar suas ações para os territórios indígenas, como inviabilizar as demarcações de Terras Indígenas e propor a legalização da mineração nesses territórios4 , o Governo atual tem aparelhado o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro – a Funai – aos interesses do agronegócio, nomeando pessoas ligadas à bancada ruralista e militares para cargos estratégicos dentro do órgão.

A partir do momento que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a situação de pandemia da Covid-19, as organizações e comunidades indígenas sabiam que a situação se agravaria sobremaneira, tendo em vista as violações que já estavam em curso, mas, sobretudo, como isso abriria caminho para outras violações que colocariam em risco a atenção a saúde e a vida dos povos indígenas. O cenário de caos se desenhou a partir da posição de um governo marcado pela irracionalidade e descrença na ciência, que priorizou políticas emergências voltadas para o mercado econômico e não para pessoas, especialmente aquelas pertencentes a grupos vulneráveis. Diante disso, o movimento indígena mais uma vez se reinventou e buscou articulações junto à sociedade civil no campo nacional e internacional, e também com agências institucionais do direito público interno com capacidade de incidir, sem necessariamente estar atrelado ao campo governamental.

Considerando a atitude governamental que manipula dados, e definitivamente subnotifica para esconder a dimensão real da pandemia no País, no caso das comunidades indígenas, destaca-se a quase total ausência de registros, dado que a coleta já nasce comprometida pelo aparelhamento da Sesai, que perdeu na sua diretoria técnicos com expertise nas questões indígenas, substituídos por militares sem qualquer noção sobre a questão. Nesse sentido, demonstrando a capacidade de autonomia desse segmento, a APIB, através da organização de uma comissão específica, assumiu a tarefa. Segundo o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), até o dia 3 de junho de 2020, o País registrava 211 indígenas falecidos, 2.178 infectados e 83 povos atingidos pelo vírus. Os estados com maior número de casos de mortes são Amazonas, Pará, Roraima, Pernambuco e Ceará. Nota-se que o vírus se alastrou de forma rápida entre os indígenas. Com base nos dados da APIB, denota-se que o índice de letalidade entre os povos indígenas é de 9,6%, enquanto que entre a população brasileira geral é de 5,6%.

Notou-se, também, uma discrepância entre os números apresentados por APIB e COIAB em relação aos dados oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígenas (Sesai), revelando de forma clarividente a subnotificação nos casos. O relatório “Uma visualização da pandemia da Covid-19 entre os povos indígenas no Brasil a partir dos boletins epidemiológicos da Sesai”, elaborado por Luís Roberto de Paula e Juliana Rosalen, aponta que a “subnotificação também está presente em relação a casos nas aldeias, o que faz com que outras variáveis entrem em jogo, dentre elas, a morosidade na alimentação do sistema de informação da Sesai”, aliado “à falta de autonomia dos distritos que implica uma ‘checagem’ de dados pela Sesai Brasília”.

Este cenário foi alertado pelos pesquisadores que trabalham com a temática indígena desde o início da pandemia. No dia 18 de abril de 2020, o Núcleo de Métodos Analíticos para Vigilância em Saúde Pública, em conjunto com o Grupo de Trabalho sobre Vulnerabilidade Sociodemográfica e Epidemiológica dos Povos Indígenas no Brasil à Pandemia de Covid-197 , ambos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), publicou o relatório “Risco de espalhamento da Covid-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica”. Os resultados já apontavam para as condições de desvantagem dos indígenas em comparação à população não indígena em inúmeros indicadores sociodemográficos e sanitários, com destaque para as populações residentes nas Terras Indígenas (TIs), nas quais se observa, por exemplo, a) menor proporção de escolaridade formal; b) menor cobertura de saneamento; c) elevada mortalidade precoce.

Nesse relatório, alguns achados importantes merecem atenção: já apontava-se, na semana epidemiológica 16 de 2020, que, dos 817 mil indígenas considerados nas análises, 279 mil (34,1%) residiam em municípios com alto risco ( 50%) para epidemia de Covid-19, e 512 mil (62,7%) residiam em municípios com baixo risco ( 25%). Com a interiorização da epidemia, já era esperado um expressivo aumento do montante da população indígena em alto risco. O estudo foi preciso ao apontar que as Terras Indígenas em municípios com alta probabilidade de introdução de Covid-19 ( 50%) são, em sua maioria, próximas a centros urbanos como Manaus, eixo Rio Branco-Porto Velho, Fortaleza, Salvador e capitais do Sul e Sudeste.

O relatório apontou:

• cerca de 22% (89.000) da população indígena rural no Brasil residem em municípios com alto risco (50%) de epidemia no curto prazo, com destaque para a Amazônia Legal, com 21,1% da população rural nessa condição; a população residente em TIs tem padrão muito similar ao da totalidade da população indígena rural;

• a tendência temporal de casos e óbitos confirmados de Covid-19 em municípios localizados em territórios dos DSEIs evidencia um padrão distinto do observado para o conjunto dos municípios brasileiros, em que a Amazônia Legal se destaca em segunda posição no acúmulo de casos e óbitos, concentrando mais de 50% dos casos confirmados na região, ficando abaixo apenas do Sul-Sudeste;

• a hospitalização por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) em populações indígenas apresenta um padrão de aumento em relação à série histórica. Vê-se um aumento na proporção de internações de indígenas na Amazônia Legal e mudança no padrão de internações por idade, o que sugere atividade da doença em indígenas no País.

No mesmo período, foi publicado o relatório “Análise de Vulnerabilidade Demográfica e Infraestrutural das Terras Indígenas à Covid-19”8 , da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP), que analisou 471 Terras Indígenas do Brasil, com base no levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), levando em consideração fatores como a distância de centros com unidades de terapia intensiva (UTI), saneamento e porcentagem de idosos na comunidade. O estudo apontou que 62% das Terras Indígenas do Brasil que se encontravam em situação de alta vulnerabilidade estavam na região norte do País, ou seja, na região Amazônica. Ficou claro que a Amazônia concentrava a maioria das Terras Indígenas (TIs) em situação crítica para a pandemia do coronavírus no Brasil. Além de sete territórios com maior fragilidade, os estados da Amazônia Legal possuem 239 TIs com índices de vulnerabilidade intensos ou altos em relação à Covid-19.

A pesquisa da ABEP (2020) analisou o índice de vulnerabilidade demográfica e infraestrutural das Terras Indígenas à Covid-19 por Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). O DSEI é a unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS). Trata-se de um modelo de organização de serviços – orientado para um espaço etnocultural dinâmico, geográfico, populacional e administrativo bem delimitado – que contempla um conjunto de atividades técnicas fundamentadas em medidas racionalizadas e qualificadas de atenção à saúde. E, ainda, é o DSEI que promove a reordenação da rede de saúde e das práticas sanitárias por meio de atividades administrativo-gerenciais necessárias à prestação da assistência, com base no controle social.

Atualmente, no Brasil, existem 34 (trinta e quatro) DSEIs divididos estrategicamente por critérios territoriais, tendo como base a ocupação geográfica das comunidades indígenas, não obedecendo, assim, os limites dos estados. Sua estrutura de atendimento conta com unidades básicas de saúde indígenas, polos base e as Casas de Apoio à Saúde do Índio (Casai). Neste sentindo, considerando o papel desempenhando pelos DSEIs na prevenção e gestão da pandemia de Covid-19 junto aos povos indígenas, os pesquisadores agregaram à análise as variáveis demográficas e infraestruturais que compõem o IDVIC e que foram calculadas pelas Terras Indígenas para os DSEIs. Assim, os DSEIs que apresentaram um nível crítico de vulnerabilidade foram Alto Rio Negro, Yanomami, Xavante, Xingu, Kaiapó do Pará e Rio Tapajós – todos localizados na Amazônia brasileira.

O levantamento da ABEP mostrou que todas as TIs em situação mais crítica para enfrentar a Covid-19 possuíam um fator em comum: estão distantes dos centros urbanos com UTIs. Para se ter uma ideia, a TI Acapuri de Cima, habitada pelos Kokama, está a quase 700 km em linha reta da cidade de Manaus, o único município do estado que possui leitos de UTIs para tratamento dos casos mais graves da Covid-19. E alertava que mesmo Manaus já estava com o sistema de saúde em colapso: o Hospital Delphina Aziz, unidade de referência para atenção às vítimas do coronavírus, atingiu sua capacidade máxima em 10 de abril de 2020, assim como os outros três hospitais de apoio na cidade. No estado do Amapá, não havia nenhum município com UTI; em Roraima e no Acre, os leitos de tratamento intensivo existem apenas nas regiões metropolitanas das capitais.

Há de se registrar, ainda, que, visando facilitar a legalização da ocupação ilegal das áreas indígenas, a Funai publicou a Instrução Normativa n. 09, de 22 de abril de 2020. A partir dela, o órgão indigenista passou a considerar passível de emissão de Declaração de Reconhecimento de Limites (DRL), documento que atesta que a propriedade não incide em Terra Indígena, toda posse (sem escritura) ou propriedade que não incida apenas sobre Terra Indígena Homologada, Reserva Indígena ou Terras Indígenas Dominiais. Ou seja, libera para compra, venda e ocupação todas as TIs em estudo, as TIs delimitadas pela Funai, as TIs declaradas pelo Ministério da Justiça, além das áreas sob portarias de restrição de uso. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), além de permitir a emissão da DRL em áreas interditadas para estudo sobre a presença de isolados, o texto da referida instrução não traz nenhuma menção aos demais territórios de povos em isolamento voluntários em estudo pela Funai. Essa nova norma abriu a possibilidade para excluir do cadastro no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), o que permite a negociação, regularização junto ao Incra e licenciamento de obras e atividades econômicas, 243 Terras Indígenas ainda não homologadas, além de 8 áreas sob restrição de uso.

2. Impacto da pandemia nos povos e territórios indígenas

O vírus que assolou várias partes do mundo assombrou de igual modo os territórios indígenas e, no caso do Brasil, vemos o resultado catastrófico de um governo negacionista e anticientífico, cujos atos apontam para uma política, isto é, um conjunto de atos intencionais voltados a implementar a sua política de enfrentamento da pandemia, a saber, a criação de uma imunidade natural coletiva contra o vírus ou “imunidade de rebanho”. Tais atos consistiram principalmente em i) desacreditar a necessidade de medidas sanitárias para evitar a propagação do vírus; ii) produzir narrativas falsas sobre tratamento da doença, incentivando a desobediência às medidas sanitárias preventivas; iii) espalhar desinformação e tornar equívoca a comunicação; iv) não prover insumos a hospitais para o tratamento de doentes; v) não prover imunizantes aos brasileiros – entre os quais, indígenas e outros grupos sociais têm-se mostrado particularmente afetados pela Covid-19.

O Presidente Jair Bolsonaro criou deliberadamente um ambiente de insegurança pandêmica, posicionando-se reiteradamente contra as medidas de isolamento social, adotando medicamentos sem eficácia para a Covid-19 e retardando a aquisição de vacinas. Como resultado, o Brasil tem reconhecidamente o pior desempenho no combate à pandemia de Covid-19, e se tornou um risco sanitário global.

Como o ataque aos povos indígenas, através de uma política anti-indígena, é um objetivo central do Presidente Jair Bolsonaro, não foi diferente em relação às ações, omissões e discursos sobre Covid-19 e sua incidência sobre os povos indígenas. A fragilização dos órgãos e da política de atenção à saúde indígena – iniciada ainda em 2019 – mostrou seus efeitos concretos durante a pandemia.

Sobre o tema, importantes elementos podem ser verificados em extensa pesquisa realizada pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) da Universidade de São Paulo (USP). O estudo revelou, a partir de uma minuciosa cronologia das ações discursivas e medidas adotadas pelo Governo Federal ao longo da pandemia, a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo Federal sob a liderança do Presidente da República.9 Em síntese, a pesquisa mostra que há um sentido comum no conjunto discursivo e normativo da Presidência da República para a propagação da Covid-19.10 A disseminação intencional do vírus pelo Presidente Jair Bolsonaro e pelo Governo Federal brasileiro se deu a partir da defesa da tese de imunidade de rebanho por contágio ou transmissão; incitação constante à exposição; banalização das mortes e das sequelas causadas pela doença; obstrução sistemática de medidas de contenção da pandemia por governos locais; consciência da irregularidade epidemiológica, sanitária e jurídica das condutas. O Presidente Jair Bolsonaro implementou uma política deliberada de contágio por Covid-19, um ataque sistemático contra todos os brasileiros, afetando desproporcionalmente membros de alguns grupos específicos, como os indígenas.

Como resultado desta política de propagação do vírus, o Brasil se tornou o país com piores índices de mortalidade no mundo, tendo mais de 500 mil mortos pela pandemia em junho de 2021. Entre os indígenas, a letalidade da Covid-19 é 50% maior se comparada à da população não indígena. O avanço da pandemia sobre as comunidades dos 305 povos indígenas é brutal. Segundo dados do Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), até o dia 30 de junho de 2021, o País registrava 1.126 indígenas falecidos, 56.174 infectados e 163 povos atingidos pelo vírus. Os estados com maior número de casos de mortes são Amazonas, Pará, Roraima, Maranhão, Mato Grosso, Pernambuco e Ceará.

A pandemia expôs as fragilidades que as equipes de atenção primária à saúde (APS) do Sistema Único de Saúde (SUS) e, mais intensamente, as do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASISUS) enfrentam cotidianamente há anos. Entre elas, enumeramos falta de infraestrutura adequada; insuficiência de equipamentos de proteção individual (EPI); reduzido estoque de insumos e medicamentos; alta rotatividade de profissionais; dificuldades de garantir formação adequada e implementar educação permanente com as equipes; problemas de integração com a rede de saúde; a situação de precariedade e insalubridade das Casas de Apoio à Saúde do Índio (Casai).

Assim como ocorreu em relação às invasões, ao desmatamento e ao garimpo, a propagação da pandemia de Covid-19 entre povos indígenas é resultado do desmantelamento das políticas de proteção aos indígenas e da instrumentalização dos órgãos do Estado brasileiro para a promoção de ataques aos povos indígenas, sob comando do Presidente Jair Bolsonaro. Na consecução da política anti-indígena do Presidente Jair Bolsonaro, a Sesai expôs indígenas ao vírus (ao, por exemplo, recomendar a permanência de indígenas contaminados em quarentena domiciliar, em contato com outros indígenas, negar atendimento a indígenas que vivem nas cidades, ignorar a importância na testagem) e a Funai facilitou a contaminação, ao se omitir na retirada de invasores das Terras Indígenas.

2.1. Omissão governamental: ausência de plano de enfrentamento e monitoramento

Ao tempo que o vírus se alastrava pelas comunidades e territórios indígenas, em diversas regiões do País, o Governo Federal ficou inerte na adoção de medidas de proteção aos povos indígenas, mesmo depois de todos os indicadores e alertas que apontavam para o impacto extremamente nefasto nos territórios. O Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 709, proposta pela APIB e por partidos políticos, reconheceu a omissão do Governo Federal no combate à pandemia nas Terras Indígenas.

Ao reconhecer a omissão estatal, o STF determinou:

1º) A instalação da Sala de Situação para tratar das barreiras sanitárias: o STF determinou a instalação de barreiras sanitárias nas Terras Indígenas com presença de povos isolados e de recente contato: dos povos isolados, Alto Tarauacá, Arariboia, Caru, Himerimã, Igarapé Taboca, Kampa e Isolados do Rio Envira, Kulina do Rio Envira, Riozinho do Alto Envira, Kaxinauá do Rio Humaitá, Kawahiva do Rio Pardo, Mamoadate, Massaco, Piripkura, Pirititi, Rio Branco, Uru-Eu-Wau-Wau, Tanaru, Vale do Javari, Waimiri-Atroari, e Yanomami; dos povos de recente contato, Zo’é, Awa, Caru, Alto Turiaçu, Avá Canoeiro, Omerê, Vale do Javari, Kampa e Isolados do Alto Envira e Alto Tarauacá, Waimiri-Atroari, Arara da TI Cachoeira Seca, Araweté, Suruwahá, Yanomami, Alto Rio Negro, Pirahã, Enawenê-Nawê, Juma e Apyterewa.

2º) Prestação de assistência à Saúde de Povos Indígenas localizados em Área Urbana (não aldeados): em relação aos indígenas em contexto urbano, a decisão foi parcial. Vejamos ponto da decisão:

No mesmo sentido, povos indígenas localizados em zona urbana também constituem povos indígenas e, nessas condições, gozam dos mesmos direitos que todo e qualquer povo indígena. O fato de se localizarem em área urbana pode-se dever: (i) ao avanço das cidades, (ii) à necessidade de deslocamento de lideranças, (iii) à busca de escolas ou de empregos, entre outros. A mera residência em área urbana não torna o indígena aculturado, tampouco implica a inexistência de necessidades, cultura e costumes particulares.

Neste sentido, o STF decidiu que indígenas em contexto urbano que, por qualquer razão, não tenham condições de acesso ao SUS fazem igualmente jus ao atendimento pelo Subsistema Indígena de Saúde ou a medidas que assegurem o acesso ao SUS geral, ao menos provisoriamente. Com base nesse entendimento, foi deferida parcialmente a cautelar para estender o Sistema Indígena de Saúde apenas aos indígenas não aldeados (urbanos) sem condições de acesso ao SUS geral. Na mesma decisão, o ministro indeferiu, por ora, a extensão à totalidade dos povos indígenas urbanos.

3º) Prestação de assistência à Saúde de Povos Indígenas Aldeados localizados em Terras Indígenas não homologadas: neste ponto, a decisão foi clara no sentido de determinar a imediata extensão dos serviços do Subsistema Indígena de Saúde aos povos aldeados situados em terras não homologadas. Em sua decisão, o STF apontou:

É inaceitável a postura da União com relação aos povos indígenas aldeados localizados em Terras Indígenas não homologadas. A identidade de um grupo como povo indígena é, em primeiro lugar, uma questão sujeita ao autorreconhecimento pelos membros do próprio grupo. Ela não depende da homologação do direito à terra.

4º) Retirada de Invasores: sobre a retirada dos invasores das Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu- Wau-Wau, Kayapó, Arariboia, Munduruku e Trincheira Bacajá, decidiu o ministro:

Indefiro, por ora, o pedido de retirada dos invasores diante do risco que pode oferecer à vida, à saúde e à segurança das comunidades. Observo, porém, que é dever da União equacionar o problema das invasões e desenvolver um plano de desintrusão. Portanto, se nenhum plano for desenvolvido a respeito da desintrusão, voltarei ao tema.

Neste sentido, a decisão aponta para a elaboração de um plano de retirada de invasores, que deverá ser implementado pelo Governo brasileiro. A APIB e demais entidades atuantes no processo têm levado petições ao ministro chamando a atenção para a necessidade de enfrentar este aspecto, mas, até o momento, não foi abordado novamente.

2.2. O impacto do vírus nos povos indígenas isolados e de recente contato

Povos indígenas isolados são povos ou segmentos de povos indígenas que não mantêm contatos intensos e/ou constantes com a população majoritária, evitando encontros com pessoas exógenas a seu coletivo. Já povos indígenas de recente contato, ainda segundo o Estado brasileiro, são povos ou agrupamentos indígenas que mantêm relações de contato ocasional, intermitente ou permanente com segmentos da sociedade nacional, com reduzido conhecimento dos códigos ou incorporação dos usos e costumes da sociedade envolvente, e que conservam significativa autonomia sociocultural.

Os atos do Presidente Jair Bolsonaro se revestem de particular gravidade quando se trata dos Povos Indígenas isolados e de recente contato, pois, em que pese toda a população indígena se encontrar mais vulnerável à Covid-19 do que a média da população brasileira, a vulnerabilidade socioepidemiológica a que tais povos estão sujeitos faz com que a situação seja ainda mais crítica. Isso porque os povos indígenas isolados e de recente contato estão submetidos, de forma peculiar, a um grande leque de vetores de vulnerabilidade, que podem se concretizar em diferentes perspectivas:

• vulnerabilidade imunológica, que decorre da carência de defesas imunológicas em seus organismos para combater doenças externas corriqueiras;

• vulnerabilidade sociocultural, que decorre da morte dos mais frágeis (como crianças e anciãos) em virtude de epidemias, muitas vezes contraídas no contato com não indígenas; com a morte de anciãos, o grupo perde líderes políticos, conselheiros, guias espirituais; já com a morte de crianças compromete-se, no médio prazo, a capacidade da renovação da sociedade, podendo, inclusive, vir a alterar os padrões culturais para a formação de casais;

• vulnerabilidade territorial, que decorre da contínua pressão feita pela sociedade não indígena sobre seus territórios e as ameaças aos importantes elementos presentes nesses territórios para as cosmologias dos indígenas de recente contato;

• vulnerabilidade política, que decorre da impossibilidade desses povos de se manifestarem por meio dos mecanismos de representação comumente aceitos pelo Estado, bem como pela falta de difusão e implementação das leis que lhes dizem respeito;

• vulnerabilidade demográfica, uma vez que os atuais agrupamentos dos indígenas de recente contato, via de regra, já passaram por processos de massacre.

Importa recordar que o Brasil é o país com a maior quantidade de povos isolados do Planeta. Atualmente, o Estado reconhece a existência de 114 registros de povos isolados, sendo 28 confirmados14 e outros 86 com vistas a qualificar as informações a respeito da presença dessas populações. Há, ainda, o reconhecimento de ao menos 18 povos indígenas de recente contato15. Dos 86 registros de povos isolados ainda não confirmados, 17 encontram-se desprotegidos, fora de terras demarcadas, em regiões com grandes taxas de desmatamento, segundo o último levantamento feito para o Conselho Nacional de Direitos Humanos que fundamentou a Resolução n. 44/2020.

Com efeito, são diversos – e dramáticos – os relatos de povos indígenas isolados ou de recente contato dizimados por epidemias de doenças infectocontagiosas causadas por contatos com grupos externos. É consenso na historiografia que as doenças foram mais fatais e rápidas no desaparecimento das populações autóctones do continente americano do que as armas dos europeus.

Os atos do Presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia de Covid-19 intencionalmente ameaçam a existência dos povos indígenas isolados. Eles foram praticados tendo em vista aproveitar a oportunidade que a pandemia oferecia de implementar sua política anti-indígena, por concentrar a atenção pública no problema sanitário, e podem ser organizados identificados em três frentes: a) a abertura das terras de povos isolados para entrada de terceiros; b) o desmonte dos órgãos especializados de proteção os povos isolados; c) o ataque governamental ao território dos povos indígenas isolados.

2.2.1. Abertura das terras de povos isolados para entrada de terceiros

O distanciamento manifestado por esses povos é a forma como expressam o seu desejo de ter maior controle sobre as relações que estabelecem com grupos ou pessoas que os rodeiam17. Por essa razão, o não ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados é diretriz da política indigenista do Estado brasileiro desde 1987, como forma de garantir sua autonomia e sua integridade física.

Recentemente, contudo, o Presidente Jair Bolsonaro alterou essa política e passou a permitir a entrada de terceiros nas terras habitadas por esses povos, em plena pandemia de Covid-19.

A Portaria n. 419/2020, da Fundação Nacional do Índio (Funai), possibilitou que as unidades administrativas regionais do órgão autorizassem o contato com índios isolados, alterando a prerrogativa exclusiva da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), unidade desenvolvida, criada e aperfeiçoada ao longo de 33 anos para avaliar situações dessa natureza. Diante da gravidade da medida e da ampla oposição das organizações indígenas, ou seja, após forte rejeição da sociedade civil, a Funai recuou nessa proposta. Logo após, o Presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei n. 14.021/20 para permitir a entrada de missões de cunho religioso nas Terras Indígenas habitadas por povos isolados.

Do ponto de vista epidemiológico, quando ocorre um processo de contato e, também, no período pós-contato, essas populações estão sujeitas a um conjunto de fatores, individuais e coletivos, que fazem com que elas sejam mais suscetíveis a adoecer e morrer em função, principalmente de doenças infecciosas, pelo fato de não terem memória imunológica para os agentes infecciosos corriqueiros na população brasileira e não terem acesso à imunização ativa por vacinas.

2.2.2. Desmonte do órgão especializado na política de proteção de povos isolados

O Presidente Jair Bolsonaro desenvolve a sua política indigenista alinhado com grupos interessados em explorar os territórios indígenas e catequizar seus habitantes. Veja-se, por exemplo, a nomeação de Ricardo Lopes Dias, um missionário ligado à Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), missão religiosa que busca o contato com povos isolados, para a chefia da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC).

São inúmeros os casos de assédio de missionários religiosos nas Terras Indígenas com presença de povos indígenas isolados, como no Vale do Javari, no estado do Amazonas. Desde setembro de 2019, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) vem denunciando a atuação de missionários junto a povos indígenas isolados. Naquela ocasião, três missionários – dentre eles, Andrew Tonkin, que já havia tentado invadir a Terra Indígena em outras ocasiões – realizaram uma expedição em Igarapé, onde vive um povo isolado. No final de março de 2020, lideranças relataram que Andrew Tonkin e Josiah Mcintyre estavam realizando reuniões na cidade de Atalaia do Norte, aliciando jovens indígenas e comprando equipamentos para invadir a TI Vale do Javari em busca de isolados. Ante a recusa da Univaja a permitir a entrada dos missionários no território, o pastor Josiash Mcintyre invadiu a associação e ameaçou colocar fogo na sede.

Em 2019, técnicos da Funai, servidores de carreira do serviço público que não fazem parte das indicações políticas do Presidente Jair Bolsonaro, publicaram um documento23 em que está registrada a escalada de violência contra povos indígenas isolados ou de contato recente:

Ressaltar especial preocupação com a crescente escalada de violência contra os servidores, sobretudo na região do Vale do Javari, onde constantes ataques à Base de Proteção Etnoambiental Ituí-Itaquaí sofreu 05 ataques por invasores desde dezembro de 2018, igualmente, o assassinato do colaborador Maxciel Pereira dos Santos, coloca em risco todo o trabalho desenvolvido há mais de três décadas pelo Estado brasileiro através da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari (FPEVJ). E mais recentemente o ataque de madeireiros que resultou na morte do indígena Paulo Paulino Guajajara na T.I. Arariboia, dentro da área de índios isolados no Maranhão. Devido a esta situação diversos servidores já vêm pedindo afastamento por questão de segurança.

Portanto, não faltaram alertas e avisos por parte dos servidores, cientistas e dos próprios povos indígenas a respeito da gravíssima situação vivenciada pelos povos isolados e os danos ocasionados pela política anti-indígena promovida pelo Presidente Jair Bolsonaro a partir de 2019.

2.2.3. Ataque aos territórios dos povos indígenas isolados

Denúncia feita pelo Observatório dos Direitos Humanos (OPI) dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato, em 27 de novembro de 2020, mostra que o Presidente Jair Bolsonaro, através do ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República, sem qualquer justificativa técnica, decidiu diminuir os limites da Terra Indígena Ituna-Itatá, no estado do Pará, habitada por povos indígenas isolados.

A Terra Indígena Ituna Itatá foi a TI mais desmatada em 2019 no Brasil, com 13% do total de devastação registrado nas áreas indígenas brasileiras pelo sistema Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Somente no último ano, 23% da floresta foram devastados. Nesse mesmo ano, registrou-se aumento de 656% no desmatamento em relação a 2018, pela invasão sistemática de posseiros e grileiros.

Em uma fiscalização do Ibama realizada em agosto de 2019, com apoio da Polícia Federal e da Força Nacional, em um garimpo nas proximidades da Terra Indígena Ituna/ Itatá, os agentes foram recebidos a tiros e houve a queima de máquinas dos garimpeiros ilegais. Em operação de fiscalização realizada em janeiro de 2020, o Ibama encontrou cerca de cinco mil litros de combustível, os quais seriam usados para queimadas ilegais nos municípios próximos à Terra Indígena Ituna/Itatá.

Após permitir toda essa devastação e absurdos, a Terra Indígena Ituna/Itatá teve sua proteção alterada “considerando que as demais áreas do polígono se encontram muito degradadas, sendo pouco provável a presença de índios isolados nessas regiões: ‘é bastante improvável encontrar vestígios recentes de habitação de indígenas isolados na região centro-norte da Terra Indígena”.

De acordo com o OPI, a redução da terra poderá causar aos índios isolados “a destruição física total ou de uma parte da população”, expô-los “a ataques violentos com vistas a desaparecer forçadamente com sua existência”, acarretar “danos à integridade mental de membros do grupo”, além de provocar, “por expulsão ou outro ato coercitivo, o deslocamento forçado da zona em que se encontram legalmente”.

A presença de invasores nas Terras Indígenas de povos isolados é extremamente grave neste contexto de pandemia. Ademais, o Presidente Jair Bolsonaro promove o aumento acelerado do desmatamento na Amazônia brasileira, inclusive nas Terras Indígenas, o que tem peculiar impacto em povos isolados.

Conforme dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento na Amazônia Legal em 2019 aumentou 30% em relação a 2018. O levantamento do Inpe apontou as terras mais desmatadas: Ituna/Itatá (Pará), Apyterewa (Pará), Cachoeira Seca (Pará), Trincheira Bacajá (Pará), Kayapó (Pará), Munduruku (Amazonas e Pará), Karipuna (Rondônia), Uru-Eu-Wau-Wau (Rondônia), Manoki (Mato Grosso), Yanomami (Roraima e Amazonas), Menkü (Mato Grosso), Zoró (Mato Grosso) e Sete de Setembro (Rondônia e Mato Grosso).

Nota-se que, dentre essas, Ituna/Itatá (restrição de uso), Munduruku (homologada), Kayapó (homologada) e Zoró (homologada) possuem evidências de povos isolados em estudo pela Funai, enquanto Uru-Eu-Wau-Wau (homologada) e Yanomami (homologada), além das evidências, também possuem povos isolados confirmados.

O movimento indígena tem denunciado sistematicamente a situação da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, que vem sofrendo invasões por grileiros e madeireiros ilegais, e da Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, que abriga o povo isolado Awá-Guajá. Em ambas, os próprios indígenas se organizaram para fazer a vigilância e proteção do território, denunciar a invasão e extração de madeira nas Terras Indígenas, o que acirrou os conflitos com os invasores

Essas tensões resultaram, somente nos últimos seis meses, no assassinato de três membros dos grupos de proteção indígenas e lideranças: Ari Uru-Eu-Wau-Wau, em 18 de abril de 2020; Paulinho Guajarara, em 1º de novembro de 2019; Zezico Guajajara, em 31 de março de 2020.

Em relação às TIs Yanomami e Munduruku, os indígenas vêm relatando há anos a escalada da atividade garimpeira ilegal de ouro. Como dito antes, nesta comunicação, somente na Terra Indígena Yanomami são estimados mais de 20 mil garimpeiros em atividade ilegal dentro do território e em plena expansão. Em 2020, foi identificada uma nova área de garimpo distante apenas 5 km de um roçado dos isolados Moxihatetea.

Além da preocupação com a violência dos invasores e o risco de contaminação por Covid-19 que esses atos trazem no contexto da pandemia, estudos têm mostrado alta contaminação por mercúrio nas zonas invadidas31. Na Terra Indígena Munduruku, no Pará, os indígenas vêm se organizando para coibir o garimpo e a mineração ilegal (realizada com máquinas pesadas, como retroescavadeiras) e denunciado o aumento paulatino da invasão e destruição causada no território em uma série de comunicados.

Em 2019, a região das cabeceiras do rio Cabitutu foi invadida e destruída pelas máquinas de garimpo em um território reconhecido como de presença de um povo em isolamento voluntário pelos Munduruku.

No início de março de 2020, o Ibama lançou outra série de ações de fiscalização em Terras Indígenas nas proximidades da TI Ituna/Itatá. A ação tinha em vista reprimir a invasão das TIs Apyterewa, Trincheira-Bacaja e Arawaté por garimpeiros e posseiros com o propósito primordial de impedir o contágio dos indígenas pela Covid-19. Na semana seguinte, o diretor de Proteção Ambiental do órgão, em Brasília, Olivaldi Borges Azevedo, foi exonerado do cargo, e outros servidores em cargos de chefia também estão sendo pressionados.

Essa série de ações e omissões perpetradas ou autorizadas pelo Presidente Jair Bolsonaro nos últimos dois anos causou danos irreversíveis nos territórios habitados por esses povos e tem impossibilitado a manutenção das suas formas de vida.

O guerreiro Aruká Juma, que faleceu em Porto Velho (RO), em 17 de fevereiro de 2021, vitimado pela Covid-19, é exemplo do extermínio estimulado pelo Presidente Jair Bolsonaro. Ele era o último homem do povo Juma, etnia que já teve entre 12.000 e 15.000 membros. A morte de Aruká Juma é extremamente grave e, “com ele, todos morremos um pouco”. Ela simboliza os efeitos devastadores da política em curso no Brasil, instituída pelo Presidente Jair Bolsonaro desde 1º de janeiro de 2019, que destruiu a política de não contato e adotou, no plano discursivo, legislativo e no âmbito administrativo, diversas medidas omissivas ou comissivas que agravaram significativamente as possibilidades de continuidade das formas de vida indígena em seus territórios.

2.3. Alguns casos

2.3.1. Contaminação e invasão nos Munduruku

O garimpo é uma forma de invasão e destruição ambiental das Terras Indígenas. Trata-se, portanto, de uma violação patente dos direitos territoriais dos povos indígenas. Para se obter acesso a zonas de garimpo, muitas vezes, são construídos ramais e estradas que contribuem para o desmatamento, facilitando inclusive a extração de madeira e o loteamento das áreas afetadas.

A contaminação por mercúrio decorrente do garimpo produz graves impactos no meio ambiente e afeta sobremaneira a saúde indígena. O metal pesado é amplamente utilizado na extração de ouro, com o objetivo de separar o metal precioso dos sedimentos. Após sua liberação no ambiente, o mercúrio sofre diversas transformações químicas e é incorporado na cadeia alimentar, atingindo os seres humanos e podendo causar problemas neurológicos sensitivos e motores, bem como outras enfermidades graves. Na Amazônia, onde o garimpo tem avançado de forma pronunciada, a contaminação por mercúrio provoca danos diretos à saúde dos povos indígenas, que têm nos peixes um elemento indispensável de sua dieta.

Os Munduruku34, povo indígena com mais de 16.000 habitantes que vive na região do Rio Tapajós, no sudoeste do estado do Pará, é um dos mais impactados pelo garimpo no Brasil. A ausência de fiscalização e, mais recentemente, os incentivos ao garimpo dentro e ao redor de suas terras têm levado a uma situação de calamidade ambiental e de saúde pública nesse povo.

Pesquisa realizada entre 2019 e 2020 pela Fiocruz, em parceria com a WWF, avaliou os impactos da contaminação por mercúrio em habitantes de três terras Munduruku: Sawré Muybu, Poxo Muybu e Sawré Aboy. Os resultados da pesquisa revelam a severidade da contaminação por mercúrio nessas aldeias e as graves doenças neurológicas que já estão se manifestando. É inquestionável que a atividade garimpeira está, aos poucos, levando ao adoecimento e à morte dos Munduruku. Trata-se de uma população inteira contaminada por um metal pesado que está presente em seus rios, seus alimentos e seus corpos. O estudo concluiu que os níveis de contaminação por mercúrio no rio Tapajós têm aumentado de forma significativa ao longo dos últimos anos, uma vez que pesquisas realizadas anteriormente, na mesma região, apontavam para níveis de mercúrio 2,6 vezes menor e 26,3% inferior aos observados nas amostras aqui estudadas. Tal estudo propôs uma série de recomendações claras para as autoridades públicas, dentre elas, a interrupção imediata das atividades garimpeiras e a completa desintrusão das Terras Indígenas afetadas pela mineração ilegal.

Em dezembro de 2020, provocada a se pronunciar pelo movimento indígena, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) reconheceu que o garimpo era o principal vetor levando a Covid-19 para dentro das terras Munduruku e solicitou que o Governo brasileiro tomasse as providências necessárias para proteger os direitos à saúde, à vida e à integridade pessoal dos membros do Povo Indígena Munduruku.35 A decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi descumprida. Como se vê, há um estreito nexo entre a destruição intencional da política socioambiental e indigenista que se conformou nas décadas de democracia no Brasil, o ataque às Terras Indígenas e estímulo às invasões, a destruição ambiental caracterizada pelo desmatamento e incêndios, o adoecimento e a morte de povos indígenas. Está em curso uma política composta por atos deliberados, extensa e disseminada, implementada diretamente pelo Presidente Jair Bolsonaro através de vários órgãos governamentais sob seu comando.

O garimpo também destrói vidas indígenas de outra maneira: alimentando conflitos por territórios, que se traduzem em ataques às vidas das defensoras e defensores dos direitos territoriais indígenas, e principalmente dos que estão na linha de frente. A partir do final de 2020, as invasões e tensões envolvendo garimpeiros na TI Munduruku se intensificaram de forma inédita. A escalada dos conflitos foi amplamente registrada e divulgada, seja em cartas e notas assinadas pelas associações do povo Munduruku, seja pelas notas públicas de órgãos nacionais solicitando que o governo Jair Bolsonaro tomasse providências para conter a situação. A escalada dos conflitos chegou aos principais veículos da imprensa internacional, que trouxe notícias de um iminente conflito armado na TI Munduruku e da omissão do poder público brasileiro. Mesmo diante de tudo isso, o Presidente Jair Bolsonaro não tomou nenhuma providência.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Escritório Regional do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos emitiram um comunicado à imprensa, em 19 de maio de 2021, demonstrando preocupação com os recentes conflitos nas Terras Indígenas Munduruku e Yanomami, onde garimpeiros armados, incentivados pelo Presidente Jair Bolsonaro, vitimaram crianças indígenas. A relação entre os atos e discursos do Presidente Jair Bolsonaro no incentivo aos ataques às Terras Indígenas através do desmatamento, da mineração e do garimpo e as graves violações a direitos humanos dos povos indígenas foi reconhecida pela CIDH e ACNUDH.

Os conflitos foram levados a conhecimento do Supremo Tribunal Federal, e a APIB demandou que o judiciário brasileiro fornecesse medidas de proteção à saúde e à terra dos povos indígenas, coibindo invasões, encerrando as atividades de garimpo ilegal e promovendo a desintrusão dos invasores – medidas que seriam capazes de amenizar a contaminação por mercúrio e por Covid-19. O judiciário aceitou apenas o primeiro pedido e determinou a atuação de forças policiais, com reforço do Exército brasileiro, para evitar conflitos e novas invasões.

A decisão foi descumprida pelas forças policiais e pelo Exército, subordinados ao Presidente Jair Bolsonaro. O ministro relator de ação judicial movida pela APIB, ao saber do descumprimento da decisão, “registrou com desalento o fato de que as Forças Armadas brasileiras não tenham recursos para apoiar uma operação determinada pelo Poder Judiciário para impedir o massacre de populações indígenas”.

Os indígenas do Povo Munduruku emitiram novo comunicado em 9 de junho de 2021, denunciando a interdição de vias de acesso e a ausência de proteção policial aos indígenas e a suas terras. Não obstante a existência de medidas cautelares concedidas ao povo Munduruku, a manifestação do ACNUDH e de decisões judiciais nacionais, a atuação da Polícia Federal para proteger os indígenas foi cancelada e permanece a violência crescente: crimes contra a humanidade e genocídio estão em curso contra o povo Munduruku.

2.3.2. Garimpo, morte e destruição na Terra Indígena Yanomami

O garimpo também está inviabilizando a vida dos povos indígenas que vivem na TI Yanomami, situada nos estados de Roraima e do Amazonas, na fronteira com a Venezuela. A TI Yanomami é coabitada pelos Yanomami39, Yek’wana40 e pelos indígenas Moxihatetea, que são considerados indígenas isolados. Há, ainda, evidências de grupos em isolamento voluntário em estudo. A população estimada é de 27.398 indígenas, que vivem em cerca de 331 comunidades. A TI Yanomami possui 9,6 milhões de hectares e foi homologada pelo Decreto s/n de 26 de maio de 1992.

As políticas de destruição implementadas por Jair Bolsonaro levaram a uma intensificação da invasão e exploração ilegal do garimpo dentro da TI Yanomami. Segundo o Prodes, 2019 foi o ano de maior taxa de desmatamento na TI Yanomami nos últimos 13 anos, totalizando 3.463 hectares. A TI já acumulou mais de 30 mil hectares em desmatamentos. Nos dois últimos anos, o desmatamento total (3.679 hectares) representou 12,2% do desmatamento acumulado no território. De acordo com o Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal na TI Yanomami (SMGI), o somatório da área degradada pelo garimpo dentro dessa TI observada até dezembro de 2020 é da ordem de 2.400 hectares, sendo que, somente de janeiro a dezembro de 2020, foram degradados 500 hectares de território. Novos garimpos foram abertos e houve um influxo intenso de pessoas não indígenas para participar da exploração, tudo protegido pela inércia dos órgãos públicos.

A expansão do garimpo tem levado à destruição do território, dos corpos e das vidas dos Yanomami. Conforme apontado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)41, estamos voltando a uma situação semelhante à dos anos 1980, configurada pelo abandono do território pelo poder público, pelo enfraquecimento de políticas territoriais e sanitárias, por pandemias e pela violência levada pelo garimpo.

Assim como os Munduruku, os Yanomami também estão seriamente contaminados pelo mercúrio. Em estudo realizado em colaboração de diversas entidades [ENSP/ Fiocruz; PUC-RJ; Instituto Socioambiental (ISA); Hutukara Associação Yanomami (HAY); Associação do Povo Ye’kwana do Brasil (APYB)], no qual se avaliaram os níveis de contaminação por mercúrio (considerando índices ≥ 6,0 μg.g-1) em 19 aldeias distribuídas na Terra Indígena Yanomami e agrupadas em 3 regiões (Paapiú, Waikás Ye’kwana e Waikás Aracaçá), no estado de Roraima, em 2014, os autores revelaram que as prevalências de contaminação foram distintas, variando de 6,7% em Paapiú, passando por 27,7% na região Waikás Ye’kwana, atingindo 92,3% das pessoas na região de Waikás Aracaçá.

Vale lembrar que Paapiú sofreu impactos do garimpo na primeira corrida do ouro na década de 1980 e, hoje em dia, aproximadamente 30 anos mais tarde, quase 7% das pessoas ainda apresentam elevados níveis de contaminação. Por sua vez, as áreas de Waikás Ye’kwana e Waikas Aracaçá, na ocasião da coleta de dados, encontravam-se sob pressão atual do garimpo.

O aumento dos casos de malária está intimamente associado às invasões, garimpo e degradação ambiental, já que áreas abertas facilitam a proliferação dos mosquitos vetores da doença. Não é à toa que a TI Yanomami enfrenta altíssima incidência da doença. De acordo com o Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) Yanomami, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, de 1º de janeiro a 12 de agosto de 2020, foram notificados 13.733 casos de malária no território e nove mortes.

Ao longo de 2020 e 2021, as associações Yanomami têm relatado uma escalada contínua de intimidações e violência praticadas por garimpeiros contra indígenas e pedido providências das autoridades públicas. Porém, nada foi feito. Na data de 14 de junho de 2020, duas lideranças Yanomami foram assassinadas na comunidade Xaruna, na Serra do Parima (Alto Alegre), devido a conflito com garimpeiros.43 O ataque foi denunciado pela Hutukara Associação Yanomami. Em resposta, o Ministro da Defesa minimizou a tensão entre indígenas e garimpeiros na Terra Yanomami e disse que os conflitos “não são corriqueiros”.

Diversas instituições internacionais e nacionais se posicionaram ao longo dos últimos meses exigindo que o governo do Presidente Bolsonaro tome medidas para resguardar a vida e a saúde dos Yanomami. Em 20 de julho de 2020, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) deferiu o pedido de medidas cautelares enviado pela Hutukara Associação Yanomami em conjunto com o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), reconhecendo que existe um grave risco de dano irreparável à saúde, vida e integridade pessoal dos povos indígenas da Terra Yanomami e exigiu medidas urgentes a serem tomadas pela Estado brasileiro, como a retirada dos garimpeiros45. Em Ação Civil Pública, promovida pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Hutukara Associação Yanomami, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) deferiu uma liminar para que a União, o Ibama, a Funai, o ICMBIO e a Polícia Federal apresentassem um plano e executassem a retirada dos garimpeiros da Terra Yanomami como medida eficaz para prevenir a disseminação da doença Covid-19 nas aldeias.46 As decisões vêm sendo sistematicamente descumpridas

Em dezembro de 2020, uma adolescente Yanomami foi sequestrada por garimpeiros em Surucuru, revelando a escalada de violência na comunidade. Casos como esses expõem a tensão e a violência que a presença garimpeira em área indígena gera.

O povo Yanomami, mesmo beneficiário de medidas cautelares concedidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, segue em risco. As medidas vêm sendo descumpridas pelo governo de Jair Bolsonaro. E, assim como nas terras Munduruku, os ataques contra indígenas escalaram nos primeiros meses de 2021.

Em março de 2021, garimpeiros atacaram a comunidade de Helepe, dando início a um tiroteio que resultou em um óbito e um ferido. Em ofício enviado pela HAY, os órgãos competentes foram alertados para a escalada dos conflitos entre garimpeiros e indígenas, bem como para possíveis retaliações por parte dos garimpeiros, que tomavam controle do acesso e da circulação de pessoas no rio Uraricoera. Na ocasião, nenhuma medida foi tomada para retomar a segurança no local e garantir a livre circulação para os indígenas, em sua própria terra.

Diante da completa omissão do governo Jair Bolsonaro, o conflito escalou desde então. Em 30 de abril de 2021, houve um tiroteio na comunidade de Palimiu, após desentendimentos com garimpeiros que trafegavam no rio Uraricoera. Temendo retaliações, a comunidade pediu apoio do poder público para a manutenção de sua segurança. Em 18 de fevereiro, lideranças da comunidade já haviam protocolado ofício à Polícia Federal alertando para a ameaça à sua saúde e vida representada pela intensa atividade garimpeira que vinha se impondo sobre as comunidades da região, solicitando apoio para a sua retirada.

No dia 10 de maio de 2021, a HAY recebeu denúncias de um ataque de garimpeiros à comunidade de Palimiu, deixando quatro garimpeiros baleados e um ferido. Nesse dia, os indígenas foram ameaçados de novas retaliações. No final do dia, o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami fez visita à comunidade e retornou confirmando o conflito, com quatro mortes.

Já em 11 de maio de 2021, a Polícia Federal realizou diligência na comunidade do Palimiu e foi recebida a tiros por garimpeiros, dando início a novo conflito na comunidade. Ao fim da diligência, o órgão se retirou do local, deixando os Yanomami vulneráveis a novas retaliações. Em 12 de maio de 2021, a equipe do Exército se deslocou para a comunidade do Palimiu, onde permaneceu por duas horas somente. Mais uma vez, o poder público se retirou deixando os Yanomami vulneráveis a novos ataques: às 22h45 do mesmo dia, os garimpeiros novamente atiraram contra a comunidade.

Mediante a inércia dos órgãos públicos locais responsáveis por manter sua segurança e deixados sozinhos para se defenderem dessa sequência de ataques armados, os Yanomami e Ye’kwana seguem pedindo a todas as instâncias que seu pedido de socorro seja escutado. Assim como ocorreu com o povo Munduruku, a CIDH e o ACNUDH se manifestaram em comunicado de imprensa, conclamando o Brasil a cumprir com seus compromissos internacionais. Até o momento, no entanto, a resposta do governo deJair Bolsonaro a essas decisões, e à reivindicação contínua do povo Yanomami, é inexistente. O Presidente Jair Bolsonaro segue incentivando a atividade minerária e a invasão de Terras Indígenas, não assumiu o compromisso de desintrusão da TI Yanomami, nem tomou medidas concretas para tanto. Segue, assim, promovendo e apoiando, de forma sistemática e contínua, a destruição da vida e formas de vida do povo Yanomami e dos demais povos indígenas que vivem dentro da TI Yanomami. Ainda em maio de 2021, no dia 16, houve novo ataque a tiros e bombas contra comunidade do Palimiu48, realizado por garimpeiros, com uso de mais de uma dezena de barcos.

Ao trazer adoecimento, morte e violência, o garimpo inviabiliza as formas de vida indígenas. Em decorrência da destruição ambiental, não se pode mais tomar água dos igarapés, tomar banho nos rios, comer pescado. Elementos fundacionais da forma de vida indígena na floresta, da organização social indígena e da sua cultura vão sendo violentamente aniquilados.

2.3.3. Adoecimento e contaminações no Povo Terena

Situações semelhantes, também, foram denunciadas por outros povos indígenas de diversas regiões do País. Um caso sintomático desse tipo de ações pode ser verificado dos relatos recebidos pela APIB em relação ao povo Terena49, sobretudo no que se refere ao ano de 2020. O povo Terena é hoje o terceiro povo indígena com o maior número de mortes por Covid-19 no Brasil, com mais de 60 óbitos confirmados.

Desde o início da crise sanitária, o Conselho Terena vem monitorando os casos de Covid-19 em seus territórios, fato que evitou uma expansão vertiginosa do vírus nos seus territórios até junho de 2020. Além do acompanhamento dos casos, a entidade realizou a instalação e manutenção de barreiras sanitárias, pois o poder público não tomou qualquer medida nesse sentido. Apesar dos esforços de se controlar possíveis vetores da doença, o primeiro caso de óbito do povo Terena aconteceu no dia 14 de julho de 2020 e, a partir daí, a Covid-19 se espalhou pelo território. Nem a Sesai ou qualquer outro órgão do Governo Federal apoiou ou instruiu o Conselho sobre como evitar a propagação do vírus, nem forneceu estruturas para isolamento dos doentes ou disponibilizou informações sobre protocolos de isolamento e cuidados. Ou seja, os órgãos públicos simplesmente se omitiram e deixaram de tomar as medidas sanitárias necessárias para a proteção da população indígena.

Diante do colapso sanitário e da falta de atendimento, o Conselho Terena acionou a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) como forma de enfrentar a pandemia em seus territórios. O grupo Médicos Sem Fronteiras já se encontrava no município de Aquidauana com profissionais de várias partes do País e do mundo, com experiência global em ações de emergência e em situações extremas de colapso sanitário. O apoio à organização médica foi solicitado desde o dia 24 de julho de 2020 pelo Conselho Terena, junto com a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul.

No entanto, em agosto de 2020, a Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai) chegou a proibir tal ajuda humanitária ao povo Terena, na Terra Indígena Taunay Ipegue, no município de Aquidauana (MS), em um momento no qual as aldeias encontravam-se em colapso sanitário e os casos de mortes aumentaram mais de 500%.

À época, as onze aldeias da cidade contavam com apenas dois médicos da Sesai, três médicos da Secretaria Municipal de Saúde, ou seja, cinco médicos para todas as comunidades de Aquidauana.51 A proibição veio do secretário nacional da Sesai, Robson Santos da Silva. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) acionou o Ministério Público Federal (MPF) em 24 de agosto de 2020 para que o secretário fosse investigado por improbidade administrativa pela proibição da ajuda humanitária ao povo Terena.

Somente em setembro de 2020, após muito tempo perdido, a organização Médicos Sem Fronteiras recebeu autorização para começar a atender indígenas em Mato Grosso do Sul. O Ministério da Saúde voltou atrás e aprovou o plano de trabalho da ONG, que prevê atendimento nas onze aldeias de Aquidauana e Anastácio.53 A autorização de atendimento dada aos Médicos sem Fronteiras, portanto, só foi viabilizada após forte mobilização indígena.

Quanto à vacinação de indígenas no Mato Grosso do Sul, de acordo com dados do Ministério da Saúde, o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do referido estado vacinou 23.881 indígenas, de um total de 45.693 indígenas previstos pelo programa de vacinação. A Sesai excluiu do plano de vacinação contra Covid-19 os indígenas que vivem em terras não homologadas, como é o caso da Terra Indígena Taunay, a qual se encontra em estado avançado de demarcação, mas não entrou na cobertura de imunização.

Diante disso, a APIB e o Conselho Terena pediram ao Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul que seja instaurado inquérito civil para apurar os motivos da não inclusão dos indígenas do povo Terena, residentes no distrito de Taunay, na prioridade de vacinação contra Covid-19. Essa diferenciação entre indígenas aldeados e não aldeados não encontra qualquer amparo legal e se caracteriza por uma lógica assimilacionista vedada no ordenamento jurídico brasileiro e nos tratados internacionais de direitos humanos.

Entretanto, como já mencionado, as decisões judiciais têm sido descumpridas.

2.3.4. Conflitos, ataques e mortes no Povo Guarani-Kaiowá

Desde maio de 2020, a APIB tem recebido, sistematizado e analisado denúncias sobre os impactos da política anti-indígena do Presidente Jair Bolsonaro em diferentes comunidades. São relatos feitos diretamente por lideranças indígenas e membros das comunidades, com informações sobre episódios de violência, adoecimento, mortes e perseguições promovidas e incentivadas pelo Presidente Jair Bolsonaro. São relatos diretos das vítimas dos crimes do Presidente da República. Um desses casos se refere ao povo Guarani Kaiowá57, no Mato Grosso do Sul. A denunciante Adrieli Guarani, residente do município de Dourados (MS), informou que, durante a pandemia de Covid-19, os serviços públicos se negavam a fazer a remoção de doentes da comunidade Jaguapiru, razão pela qual membros da comunidade se viram obrigados a levar doentes em veículos particulares para buscar atendimento hospitalar, fato que ampliou a propagação do vírus entre os membros da comunidade que se viram obrigados a salvar os seus parentes sem o apoio dos órgãos estatais responsáveis pela assistência de saúde para os povos indígenas.

Nessa linha, o Cacique Isael Morales relatou situações graves de omissão de socorro, falta de assistência médica adequada para atender as demandas da comunidade indígena, apontando a prática de racismo institucional em face de indígenas contaminados pela Covid-19 por parte dos órgãos públicos responsáveis pelos serviços de saúde. Esse tipo de situação não ocorre apenas com os Guarani Kaiowá, no Mato Grosso; a APIB recebeu dezenas de denúncias de vários povos indígenas nas diversas regiões do País, confirmando que de forma recorrente os povos indígenas, durante a pandemia de Covid-19, vêm sofrendo pela omissão de socorro, falta de atendimento de saúde adequado, contaminação de indígenas (por contato com servidores públicos contaminados que não cumpriram as medidas quarentenárias adequadas para ingressar nos territórios indígenas), pela falta de medicamentos e por ações discriminatórias que, ademais, são uma constante na relação entre o poder público e os povos indígenas.

Além do contexto específico de violações no âmbito na pandemia de Covid-19, a violação de direitos humanos dos povos indígenas, em especial as decorrentes da sua espoliação territorial, tem acarretado danos irreversíveis e inviabilizado a continuidade dos modos de vida e das suas práticas culturais. Dentre os diversos casos, o do Povo Guarani Kaiowá é paradigmático, uma vez que o avanço da fronteira agrícola e do latifúndio sobre os seus territórios ancestrais tornou os conflitos vivenciados por esse povo extremamente violentos e sangrentos.

Além disso, os Guarani Kaiowá têm sofrido com a contaminação das suas fontes de água e sérios problemas de saúde decorrentes da contaminação pelo uso indiscriminado de agrotóxicos nas fazendas da região. Segundo reportagem do jornal El País58, os fatos ocorreram entre os dias 6 e 11 de maio de 2019, e teriam sido ocasionados pela aplicação de herbicidas a poucos metros da aldeia. Diante disso, vários indígenas — em sua maioria, crianças e idosos— apresentaram sintomas de intoxicação por pesticidas, como irritação da pele, enjoo, diarreia e dores de cabeça. Esses problemas não ocorrem apenas com os Guarani Kaiowá. Na região norte do País, diversos relatos apontam problemas semelhantes.

3 Considerações finais

Diante do exposto, não há dúvida de que o Governo brasileiro, sob gestão do Presidente Jair Bolsonaro, cometeu violações ao direito à vida e à saúde dos povos indígenas. Infringiu não apenas os artigos 196 c/c 231 da Constituição Federal, mas também tratados internacionais que protegem a dignidade humana e a cidadania cultural dos povos indígenas. Além de adotar uma conduta negacionista no enfrentamento da pandemia, deixou à própria sorte os povos e comunidades, pois, à medida que o vírus avançava sobre os territórios, as invasões aumentavam, e a Funai quedou-se inerte.

O Estado brasileiro é o único no mundo que possui uma agência estatal do tamanho e propósito da Funai, pois foi projetada para ser a entidade de defesa desses povos. Os indígenas, razão de ser da Funai, passaram a ser perseguidos e criminalizados. Ao mesmo tempo, o Governo legislou de modo a beneficiar os invasores ilegais dessas terras. São condutas criminosas que custaram a vida de indígenas brasileiros.

Referências

ABEP. Análise de Vulnerabilidade Demográfica e Infraestrutural das Terras Indígenas à Covid-19. Disponível em: https://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/ Caderno-Demografia-Indigena-e-COVID19.pdf. Acesso em: 2 jun. 2020.

APIB. Documento final do Acampamento Terra Livre 2020a. Disponível em: www. apib.info. Acesso em: 19 out. 2021.

APIB. Lideranças indígenas organizam assembleia para construir plano de enfrentamento à pandemia. Disponível em: http://apib.info/2020/05/07/assembleiaresistencia-indigena/. Acesso em: 2 jun. 2020b.

APIB. Plano de enfrentamento da Covid-19 no Brasil. Brasília, 2020c. No prelo.

APIB. Regimento Interno da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB. Disponível em: www.apib.info. Acesso em: 19 out. 2021.

APIB. Relatório do Acampamento Terra Livre 2020. 16. ed. on-line. 27-30 abr. 2020. Disponível em: www.apib.info. Acesso em: 2 jun. 2020d.

APUBLICA. Inédito: mais de 200 terras indígenas na Amazônia têm alto risco para Covid-19. Disponível em: https://apublica.org/2020/04/ineditomais-de-200-terrasindigenas-na-amazonia-tem-alto-risco-para-covid-19/#. Acesso em: 15 jun. 2020.

BBC NEWS BRASIL. Em meio à Covid-19, garimpo avança e se aproxima de índios isolados em Roraima. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/ brasil-52225713. Acesso em: 15 jun. 2020.

COIAB. Nota de repúdio contra a tentativa de legalização de missões religiosas em territórios ocupados por indígenas em isolamento voluntário. Disponível em: https://coiab.org.br/conteudo/1590113259203×242154533360238600. Acesso em: 2 jun. 2020.

CONFALONIERI, UEC. Saúde. p. 29-33. In: Yanomami: a todos os povos da terra. 1990.

DUPRAT, Deborah. O Estado pluriétnico. In: LIMA, Antonio Carlos de Souza; BARROSOHOFFMANN, Maria (Orgs.). Além da tutela: bases para uma nova política indigenista, III. Rio de Janeiro: Contra Capa; LACED, 2020. p. 41-47.

EL PAÍS. Assassinato de líder Guajajara abala comunidade indígena e Moro garante que PF vai investigar. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ brasil/2019/11/02/politica/1572726281_632337.html. Acesso em: 19 out. 2021.

FIOCRUZ. Contaminação por mercúrio se alastra na população Yanomami. Disponível em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/ detalhe/46979. Acesso em: 15 jun. 2020.

FIOCRUZ. Risco de espalhamento da Covid-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica. 4º relatório sobre risco de espalhamento da Covid-19 em populações indígenas. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/documento/4orelatorio-sobre-risco-de-espalhamento-da-covid-19-em-populacoes-indigenas. Acesso em: 2 jun. 2020.

INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPECIAIS (INPE). A estimativa da taxa de desmatamento por corte raso para a Amazônia Legal em 2019 é de 9.762 km². Disponível em: http://www.inpe.br/noticias/noticia.php?Cod_Noticia=5294. Acesso em: 15 jun. 2020.

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Em meio a pandemia, indígenas do Javari denunciam ameaça de missionários a isolados. Disponível em: https://www. socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/em-meio-a-pandemia-indigenasdo-javari-denunciam-ameaca-de-missionarios-a-isolados. Acesso em: 15 jun. 2020.

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Relatório do ISA denuncia na ONU risco elevado de genocídio de povos indígenas isolados. Disponível em: https://www. socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/relatorio-do-isa-denuncia-naonu-risco-elevado-de-genocidio-de-povos-indigenas-isolados. Acesso em: 15 jun. 2020.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

PAULA, L. R de; ROSALEN, J. Uma visualização da pandemia da Covid-19 entre os povos indígenas no Brasil a partir dos boletins epidemiológicos da Sesai (01.04.20 a 29.05.2020). São Paulo, 2020.

PITHAN, Oneron A.; CONFALONIERI, Ulisses EC; MORGADO, Anastácio F. The health status of Yanomami Indians: diagnosis from the Casa do Índio, Boa Vista, Roraima, 1987—1989. Cadernos de Saúde Pública, v. 7, n. 4, p. 563-580, 1991.

SOUZA LIMA, A. C. Um Grande Cerco de Paz. Poder Tutelar, Indianidade e Formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.

TERENA, Luiz Eloy. ADPF 709 no Supremo: Povos Indígenas e o direito de existir! Disponível em: https://midianinja.org/luizhenriqueeloy/adpf-709-no-supremo-povosindigenas-e-o-direito-de-existir/. Acesso em: 8 nov. 2020.

 

 

 

Ameaças à consolidação dos Direitos Indígenas no Brasil

Ameaças à consolidação dos Direitos Indígenas no Brasil

Foto: Chun Fotografia

Luiz Eloy Terena

O Brasil possui uma diversidade étnica significativa. Segundo o último censo oficial, realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem no país aproximadamente 817.963 indígenas, dos quais 502.783 vivem na zona rural e 315.180 em zonas urbanas. Este censo revelou que em todos os estados da federação, inclusive no Distrito Federal, há povos indígenas. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) aponta a existência de 305 diferentes povos e registra 274 línguas indígenas e 114 grupos de indígenas isolados e de recente contato. Além disso, cabe ressaltar que das 1.298 Terras Indígenas (TIs) no Brasil, 829 (63%) apresentam alguma pendência do Estado para que seu processo demarcatório seja finalizado. E ainda, destas 829 um total de 536 terras (64%) não tiveram ainda nenhuma providência adotada pelo Estado.

XIV Assembleia Terena termina com exigências para o fim da agenda anti-indígena no Congresso

XIV Assembleia Terena termina com exigências para o fim da agenda anti-indígena no Congresso

Foto: Mídia Terena

O Conselho Terena, uma das organizações de base da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), realizou entre os dias 17 a 20 de novembro, na Aldeia Mãe Terra, TI Cachoeirinha, município de Miranda (MS) a XIV Assembleia Terena. A atividade um momento de união e fortalecimento do movimento indígena sul-mato-grossense com a presença de lideranças do contexto nacional, e ocorreu imediatamente após a Conferência do Clima da ONU, COP26, em um contexto de perseguição à lideranças indígenas no Brasil. Além dos anfitriões terena, a assembleia contou com representantes dos povos Kinikinau, Pataxó, Kadiweu, Kaiowa, Guarani Ñandeva, Xakriabá, Tupinambá, Kaingang e Guajajara.

Após quase dois anos de sua última realização, suspensa nesse período por ocasião da pandemia de covid-19, a Assembleia Terena destacou a força da organização indígena no enfrentamento à pamdeia: “queremos agradecer as nossas lideranças que, na ausência de uma política de Estado, colocaram mais uma vez suas vidas em risco para promover as barreiras sanitárias indígenas, mostrando que nossa própria organização sempre vencerá as políticas de ódio dos purutuya. Durante a realização de nossa grande assembleia, junto com nossos parceiros e colaboradores, reforçamos o compromisso com acordos e protocolos sanitários para segurança e redução do risco de contaminação de todos os participantes”.

O documento final da reunião listou uma série de exigências, sobretudo para suspensão da agenda anti-indígena no Congresso Nacional, que buscam a garantia dos direitos constitucionais dos povos originários. Confira os oitos pontos de exigências:

  1. Retirada definitiva da pauta de votação da CCJC e arquivamento do PL (Projeto de Lei) 490/2007, que ameaça anular as demarcações de terras indígenas;
  2. Arquivamento do PL 2633/2020, conhecido como o PL da Grilagem, pois caso seja aprovado, o projeto vai anistiar grileiros e legalizar o roubo de terras, agravando ainda mais as violências contra os povos indígenas;
  3. Arquivamento do PL 984/2019, que pretende cortar o Parque Nacional do Iguaçu e outras Unidades de Conservação com estradas;
  4. Arquivamento do PDL 177/2021 que autoriza o Presidente da República a abandonar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), único tratado internacional ratificado pelo Brasil que aborda de forma específica e abrangente os direitos de povos indígenas;
  5. Arquivamento do PL 191/2020 que autoriza a exploração das terras indígenas por grandes projetos de infraestrutura e mineração industrial;
  6. Arquivamento do PL 3729/2004 que destrói o licenciamento ambiental e traz grandes retrocessos para a proteção do meio ambiente e para a garantia de direitos das populações atingidas pela degradação ambiental de projetos de infraestrutura, como hidrelétricas.
  7. Fortalecimento da atenção básica de saúde aos povos indígenas, que vem sendo negligenciada e sucateada pelo Governo Federal. Somos contra as propostas de municipalização da saúde indígena.
  8. Que a FUNAI cumpra seus deveres constitucionais finalizando os processos de demarcação das terras indígenas Terena, Kinikinau e Guarani – Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.

 

 

Leia o texto na íntegra:

Documento Final da XIV Grande Assembleia do Povo Terena

O Conselho do Povo Terena, organização tradicional base da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) no Mato Grosso do Sul, reunido na aldeia Mãe Terra, Terra Indígena Cachoeirinha, por ocasião da 14a Grande Assembleia do Povo Terena, entre os dias 17 e 20 de novembro de 2021, com o apoio de representantes dos povos Kinikinau, Kadiweu, Kaiowa, Guarani Ñandeva, Xakriabá, Pataxó, Tupinambá, Kaingang, Guajajara reafirma seu compromisso com a luta pelo território tradicional, a permanente busca do bem viver, e a construção de um mundo baseado no respeito aos modos de vida de cada povo e à Mãe Terra. Reiteramos nosso intuito de continuar lutando, em sintonia com o movimento indígena nacional, contra todos os retrocessos de direitos indígenas.

Como há quase 10 anos atrás, nossa anciã mentora do nome da Assembleia, sentou em meio de nós, proferiu palavras de força e evocou nossa ancestralidade. “Esta não é apenas uma Assembleia. Esta é a Hanaiti Hó’unevo Têrenoe, a Grande Assembleia do Povo Terena” repetiu ela. Abençoados por suas palavras, entre nossas Guerreiras e Guerreiros relembramos emocionados a luta de quase uma década desde o levante de nossa Grande Assembleia. Foram retomados milhares de hectares de nossas terras, que antes estavam alimentando gado para o agronegócio e hoje são utilizados pelas famílias terena para produzir seu alimento, recuperar as nascentes dos rios e reflorestar as matas. Enfrentamos inúmeros fazendeiros, políticos e parlamentares, com toda sua estrutura e força política, que ameaçavam nossos direitos. Na nossa caminhada fizemos valer o sangue derramado de nossos líderes. Nas terras recuperadas nosso povo encontrou dignidade. Nossos anciões hoje têm ainda mais força, muitos de nossos jovens hoje ocupam lugares importantes, nas aldeias e fora delas. No Brasil e fora dele. Esta década de sacrifício e compromisso, de muitos avanços de nosso povo nos faz afirmar:

Não provoquem o Povo Terena, pois com o Povo Terena ninguém pode!  

Não temos medo e avançaremos!  

Passamos por um momento muito difícil, com a pandemia de COVID-19 assolando nossas comunidades e levando muitos de nossos anciãos e jovens. Voltamos a realizar nossa grande assembleia depois de quase dois anos, por conta da pandemia. Nossas lideranças, que já estão imunizadas com a vacina contra o novo coronavírus, se reuniram neste momento para ecoar nossas vozes e reafirmar que Vidas Indígenas Importam! Como reiterado na fala de várias de nossas lideranças presentes, a emergência sanitária e humanitária foi muito agravada pelo descaso com que o Governo Federal tratou e tem tratado os povos indígenas durante a pandemia. Queremos lembrar aqui de todos os entes queridos do nosso povo que se foram  durante a pandemia da COVID 19, em mais uma página do Genocídio promovido pelo Estado Brasileiro contra os povos indígenas. Neste sentido, nos solidarizamos também com todas as vidas indígenas, de todos os povos, vitimadas pela política de extermínio promovida durante o surto do Coronavírus. Ao mesmo tempo, queremos agradecer as nossas lideranças que, na ausência de uma política de Estado, colocaram mais uma vez suas vidas em risco para promover as barreiras sanitárias indígenas, mostrando que nossa própria organização sempre vencerá as políticas de ódio dos purutuya. Durante a realização de nossa grande assembleia, junto com nossos parceiros e colaboradores, reforçamos o compromisso com acordos e protocolos sanitários para segurança e redução do risco de contaminação de todos os participantes.

No plano político enfrentamos uma luta tão nefasta quanto a da Pandemia. Nos solidarizamos com os demais povos pelos ataques que tem sofrido, insuflados, permitidos e até mesmo patrocinados pelo Governo Bolsonaro. Como um grande trator, a luz de megaprojetos, obras, grilagem, mineração e arrendamento, agridem nossa Natureza, torturam a vida, invadem nossos territórios e avançam com promessas de morte contra todos os povos. Enquanto isso, no Congresso Nacional, promovem saques e motins contra a Constituição Federal de 1988 procurando acabar com os direitos indígenas e a proteção do meio ambiente.

Reafirmamos também nosso compromisso com o meio ambiente e a defesa da Mãe Terra. As mudanças climáticas e outras crises ambientais que o mundo vem sofrendo são causadas pela ganância sobre as Terras Indígenas e pela permanente ameaça aos nossos direitos. Como muitas lideranças e anciões mostraram na assembleia, nosso modo de vida e nossa cosmologia são pilares fundamentais para um mundo mais sustentável, saúdavel, que respeite a sociobiodiversidade. No Brasil, hoje, o governo desenvolve políticas anti-indígenas e anti-ambientais, que pretendem devastar nossas florestas e biomas. Guardiões ancestrais do cerrado e do pantanal, nós do povo Terena repudiamos estas políticas de devastação e destruição e continuamos empenhados em defender a nossa sagrada Mãe Natureza.

Hoje temos orgulho de dizer que nossa Grande Assembleia é base da APIB, e que o Povo Terena tem dado importantes contribuições na luta Nacional garantindo conquistas e direitos para todos os Povos Indígenas. Junto a nossas Articulações Nacionais, internacionais e com nossos apoiadores, vamos avançar até que todos os territórios sejam demarcados e que todos os povos possam viver com dignidade:

 

Exigimos:

A INTERRUPÇÃO IMEDIATA DE QUALQUER MEDIDA ANTI-INDÍGENA NO CONGRESSO NACIONAL!

  1. Retirada definitiva da pauta de votação da CCJC e arquivamento do PL (Projeto de Lei) 490/2007, que ameaça anular as demarcações de terras indígenas;
  2. Arquivamento do PL 2633/2020, conhecido como o PL da Grilagem, pois caso seja aprovado, o projeto vai anistiar grileiros e legalizar o roubo de terras, agravando ainda mais as violências contra os povos indígenas;
  3. Arquivamento do PL 984/2019, que pretende cortar o Parque Nacional do Iguaçu e outras Unidades de Conservação com estradas;
  4. Arquivamento do PDL 177/2021 que autoriza o Presidente da República a abandonar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), único tratado internacional ratificado pelo Brasil que aborda de forma específica e abrangente os direitos de povos indígenas;
  5. Arquivamento do PL 191/2020 que autoriza a exploração das terras indígenas por grandes projetos de infraestrutura e mineração industrial;
  6. Arquivamento do PL 3729/2004 que destrói o licenciamento ambiental e traz grandes retrocessos para a proteção do meio ambiente e para a garantia de direitos das populações atingidas pela degradação ambiental de projetos de infraestrutura, como hidrelétricas.
  7. Fortalecimento da atenção básica de saúde aos povos indígenas, que vem sendo negligenciada e sucateada pelo Governo Federal. Somos contra as propostas de municipalização da saúde indígena.
  8. Que a FUNAI cumpra seus deveres constitucionais finalizando os processos de demarcação das terras indígenas Terena, Kinikinau e Guarani – Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.

 

Aldeia Mãe Terra, Miranda-MS, 20 de novembro de 2021

 

Povo Terena,
Povo que se levanta!!

 

Conselho do Povo Terena

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil –APIB

 

Acesse o documento: Documento XIV Assembleia Terena

Reflorestarmentes: Mulheres indígenas na XIV Grande Assembleia Terena

Reflorestarmentes: Mulheres indígenas na XIV Grande Assembleia Terena

 

A força ancestral das mulheres indígenas Terena segue transformando diversos espaços das nossas comunidades. Na luta por uma organização que envolva a vida das mulheres indígenas como princípio.

Estamos abrindo espaços históricos, mulheres à frente de pautas importantes para nosso povo. Uma caminhada cheia de conquistas relevantes, mas não suficientes. Seguimos na resistência para romper os desafios e construir muito mais, tornando mulheres protagonistas de trajetórias negadas.

Carregamos uma conexão direta com a nossa luta coletiva, a luta pela terra, uma resistência que ultrapassa as dores das violências dirigidas a nossos corpos e territórios. A transformação que queremos vai além das cercas do latifúndio que tentam privar nossas terras no Mato Grosso do Sul. O resultado que queremos está no reflorestarmentes. No romper das cercas que nos arranca a liberdade da vida, do bem-estar e da soberania do nosso povo.

Muitas de nós estamos vivendo em áreas de retomadas, onde foram brutalmente usadas como espaços de plantações de monocultivos e de criações de gados. Onde mataram nossos filhos com o uso de agrotóxicos e nos feririram e levaram muitos dos nossos com balas do latifúndio. Mas hoje seguimos vivas, e com nossa ancestralidade guiando a tarefa de reconstruir o nosso local, nosso chão de terra, a nossa comunidade.

Em meio à nossa luta histórica, perdemos mulheres originárias, raízes, as que fortaleciam fisicamente o combate contra as emergências e explorações. Seguimos com a força e sabedoria ancestral, porque não podemos deixar enfraquecer a força do nosso povo, das nossas anciãs e lideranças.

Pelo bem comum do nosso povo, durante a XIV Grande Assembleia Terena, destacamos a nossa presença e construção desse espaço. Seguimos na construção coletiva pela demarcação de nossos territórios e a luta pela vida.

Nos comprometemos com nossos coletivos locais para seguir fortalecendo ações nacionais como a Marcha Nacional das Mulheres Indígenas e as organizações que juntas construímos e que nos representam.

Pela garantia das nossas identidades, lutas e justiça!

Plenária das Mulheres Terenas, aldeia Mãe Terra, T.I Cachoeirinha, município de Miranda, Mato Grosso do Sul.

Carta de Acolhimento em solidariedade ao ataque sofrido pelas lideranças da ANMIGA

Carta de Acolhimento em solidariedade ao ataque sofrido pelas lideranças da ANMIGA

Carta de Acolhimento 

Em Solidariedade ao ataque sofrido pelas ANMIGAS Lideranças

Nós, as indígenas mulheres que compomos a rede de Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), nos manifestamos em solidariedade a três lideranças indígenas mulheres, que são vistas por homens não indígenas apenas como um objeto, mas para nós, é um corpo território com muitas vozes de outras mulheres. Não deixaremos que as nossas companheiras indígenas mulheres que demarcaram a  COP26 e ecoaram nossas vozes,  enfrentem o racismo de gênero sozinhas e, portanto, nós repudiamos os ataques sofridos pelas nossas companheiras nesse cenário misógino e que nos ataca por sermos mulheres.

Entendemos que os ataques direcionados a elas são um manifesto de violências.Além da violência de gênero e racial que sofrem em razão de suas lutas, vozes indígenas incomodam. Aqueles que não nos enxergam como indígenas mulheres capazes, esses querem nos silenciar por sermos indígenas e mulheres. 

Porém caminhando junto às nossas ancestrais  estamos aqui para dizer: Quando atacam uma de nós, todas sofremos essa violência, pois as nossas conexões são ancestrais, vivas e enraizadas.

As três companheiras de vozes, fala e luta são mulheres que desde cedo defendem seus territórios, contra qualquer tipo de  invasão e formam lideranças através de suas vozes. São inspiração para a nova geração de líderes femininas no Brasil e são referência de seres humanos por  serem líderes  mulheres, ativas e de uma história singular.

Para elas, dizemos que estamos juntas! Acolhemos e defendemos elas, com suas vozes é a vozes ancestrais que ecoam além de seus territórios. Quando elas falam nos espaços, elas estão falando por nós que somos mais de  448 mil Mulheres Indígenas no Brasil e não permitiremos o ataque  a nossas companheiras que se movimentam com seu corpo território entre os espaços políticos em defesa dos nossos direitos hoje e amanhã. Seus espíritos e suas vozes têm defendido os direitos dos povos Indígenas do Brasil para não permitir que o conservadorismo, o machismo, o racismo, nem mesmo a boiada passe por cima de nenhuma de nós .

Somos todas Alessandra Munduruku, Txai Suruí e Glicéria Tupinambá!

Das Indígenas Mulheres do Brasil da REDE ANMIGA

APIB defende no Supremo a autonomia das Defensorias Públicas

APIB defende no Supremo a autonomia das Defensorias Públicas

Nesta segunda, 8 de novembro, a APIB protocolou pedido de ingresso como amicus curiae (amigo da corte) em ação que tramita no STF que ameaça a atuação e as prerrogativas constitucionais conferidas às Defensorias Públicas. Trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6852, proposta pelo Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que tem por objetivo a declaração de inconstitucionalidade de artigos da Lei Complementar 80/1994, que “organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados”.

Segundo o argumento do PGR, a Lei Complementar 80/1994, ao regulamentar a organização das Defensorias Públicas, conferiu tão somente aos defensores – mas não aos advogados privados, ou sequer aos advogados públicos em geral -, o poder de “requisitar” de qualquer autoridade pública e de seus agentes, certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e demais providências necessárias à sua atuação. Desse modo, em seu entendimento há artigos na referida Lei que afrontam os princípios constitucionais da isonomia, inafastabilidade da jurisdição, do contraditório e do devido processo legal.

A APIB se soma a outras organizações da sociedade civil que também já pediram ingresso na ação como amicus curiae, por entender a repercussão social e relevância da matéria para os povos indígenas, uma vez que muitos indígenas e suas comunidades, por serem grupos sociais em situação de vulnerabilidade, são atendidos diretamente pelas defensorias, tanto nas esferas estaduais, quanto na esfera federal. Por esse motivo, alterações nos poderes atribuídos às defensorias públicas e seus membros impactam imediatamente as populações que são atendidas pelas Defensorias.

Na petição a APIB afirma que retirar o poder de “requisitar de qualquer autoridade pública e de seus agentes, certidões, exames, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e demais providências necessárias à atuação da Defensoria Pública”, é ferir frontalmente o direito à ampla defesa de povos indígenas espalhados em todo o Brasil. Sendo assim, o entendimento é de que a ação deve ser julgada improcedente pelo STF.

Dois indígenas isolados são mortos a tiros por garimpeiros na Terra Yanomami

Dois indígenas isolados são mortos a tiros por garimpeiros na Terra Yanomami

No dia 01 de novembro de 2021, um indígena da região do Apiaú entrou em contato com a Hutukara para informar sobre a morte de dois indígenas do grupo em isolamento voluntário (Moxihatëtëma) em uma ataque realizado por garimpeiros. Segundo o relato, a aproximadamente dois meses e meio atrás, guerreiros Moxihatëtëma se aproximaram do garimpo “Faixa Preta”, localizado no alto rio Apiaú. A intenção dos Moxihatëtëma teria sido expulsar os invasores do seu território, mas, durante o acercamento, os grupos entraram em confronto. Os isolados acertaram 3 garimpeiros com flechas, e os garimpeiros mataram dois Moxihatëtëma com armas de fogo.

Uma das flechas atiradas pelos guerreiros Moxihatëtëma foi recolhida por um jovem indígena da região do alto mucajaí que frequentava o garimpo na ocasião, e testemunhou o episódio. O objeto hoje se encontra em uma comunidade da região do Apiaú.

O garimpo “Faixa Preta”, segundo informações de área, está localizado no rio Apíau, cerca de 4 dias de barco (motor rabeta) desde o posto de saúde homônimo. Análises de imagens de satélite indicam que na região um total de mais de 100 hectares de floresta já foram destruídos pela atividade ilegal.

A região do Apiaú é vizinha ao território dos isolados e, por esse motivo, deve ser uma das zonas prioritárias para as ações de combate ao garimpo. A HAY vem insistentemente informando os órgãos competentes sobre a elevada pressão em que se encontram os Moxihatëtëma com o avanço do garimpo nas regiões da Serra da Estrutura, Couto Magalhães, Apiaú e alto Catrimani, com elevado risco de confrontos violentos que podem resultar no extermínio do grupo. No entanto, não temos ciência de ações recentes de repressão ao garimpo na região.

Esse não é o primeiro relato sobre conflitos violentos entre os isolados e garimpeiros.

Em 2019, professores yanomami do Alto Catrimani relataram à Hutukara que dois caçadores moxihatëtëma haviam sido mortos com tiros de espingardas após terem defendido com flechas seus roçados de uma tentativa de roubo por parte dos garimpeiros. Na ocasião, a HAY informou os órgãos competentes, mas não obteve respostas sobre uma eventual investigação.

As últimas fotografias aéreas disponíveis da casa-coletiva dos moxihatëtëma indicam a existência de 17 seções familiares. A partir desse número estima-se que a população total desse grupo seja da ordem de 80 pessoas. Quatro assassinatos, nesse caso, significam então a perda de 5% da população por morte em conflitos em apenas três anos!

É importante ressaltar que, em razão do sistema tradicional de justiça da cultura Yanomami, é possível que os Moxihatëtëma organizem novas investidas contra os núcleos garimpeiros para compensar as mortes sofridas. Assim, a situação de conflito pode se estender, resultando em mais mortes e chacinas. Além disso, episódios de contato intermitente com os garimpeiros pode levar à introdução de novas moléstias infecciosas, impactando severamente a saúde coletiva do grupo.

Diante da gravidade do relato, a Hutukara Associação Yanomami vem por meio deste oficio solicitar aos órgãos responsáveis que investiguem o ocorrido, considerando a grande vulnerabilidade epidemiológica das famílias em isolamento voluntário, e tomem medidas urgentes para proteger o grupo de novos confrontos e contatos forçados. Em particular, solicita-se que sejam adotadas urgentemente ações de repressão do garimpo ilegal nas proximidades do território dos Moxihatëtëma, e sejam plenamente retomadas as atividades da BAPE Serra da Estrutura, com rotina de incursões para identificar e desmantelar núcleos garimpeiros instalados na região.

Boa Vista, 02 de novembro de 2021.

Fim de intermediários: povos indígenas do mundo emitem comunicado exigindo que financiamento para proteção das florestas chegue às comunidades tradicionais

Fim de intermediários: povos indígenas do mundo emitem comunicado exigindo que financiamento para proteção das florestas chegue às comunidades tradicionais

Cúpula de Líderes Mundiais: Povos indígenas e comunidades locais devem fazer parte dos mecanismos financeiros anunciados para garantir a posse da terra na luta contra as mudanças climáticas

A Aliança Global de Comunidades Territoriais emite uma declaração pedindo um compromisso mais forte com a posse da terra como uma solução climática chave

Declaração emitida por: Coordenador das Organizações Indígenas da Bacia do Rio Amazonas (COICA) e suas organizações membros dos nove países da Bacia do Amazonas; a Aliança Mesoamericana de Povos e Florestas (AMPB) e suas organizações membros de seis países mesoamericanos; a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB); a Rede de Povos Indígenas e Comunidades Locais para o Manejo Sustentável de Ecossistemas Florestais (REPALEF) na República Democrática do Congo; e a Aliança dos Povos Indígenas do Arquipélago (AMAN), que representa 17 milhões de povos indígenas em toda a Indonésia.

GLASGOW COP26, 1 de novembro de 2021

Como uma organização que representa os povos indígenas e comunidades locais em 24 países com florestas tropicais, a promessa feita nesta Cúpula de Líderes Mundiais de alocar US $ 19,2 bilhões para apoiar o reconhecimento dos direitos à terra para povos indígenas e comunidades locais é uma boa notícia – e estamos satisfeitos por isso. Ao assumir esse compromisso, os principais financiadores públicos e privados reconhecem o papel crítico que desempenhamos na luta contra a mudança climática e destacam a prioridade urgente que deve ser garantir a posse de nossas terras.

No entanto, não podemos receber esta notícia com entusiasmo porque não fomos incluídos no desenho deste compromisso. Portanto, suspeitamos que muitos desses recursos serão distribuídos por meio de mecanismos tradicionais de financiamento climático, que têm demonstrado grandes limitações para atingir nossos territórios e apoiar nossas iniciativas. Embora milhões de dólares já tenham sido investidos para proteger as florestas e deter o desmatamento, os resultados são mínimos, pois os governos não estão presentes em nossos territórios e, consequentemente, têm dificuldade de administrar os recursos e implementar políticas de longo prazo que protejam os recursos naturais.

Além disso, a burocracia beneficia um grande número de intermediários, que são os primeiros destinatários dos fundos climáticos e cujos altos custos reduzem a porcentagem efetivamente investida nos territórios. Nossas suspeitas são confirmadas pelo fato de praticamente nenhum desses anúncios ter sido previamente consultado por nós ou por nossas organizações membros.

No entanto, também temos boas notícias para contribuir. Dado que os doadores públicos e privados, bem como as filantrópicas, têm dificuldade em distribuir fundos ao nível da comunidade, desenvolvemos uma série de recomendações para facilitar este processo. Essas recomendações constituem uma nova visão, a Visão Shandia: um ecossistema de financiamento que finalmente permitirá que o apoio financeiro chegue aos nossos territórios.

Como a Aliança Global de Comunidades Territoriais, nos comprometemos a responsabilizar governos e investidores pelas promessas financeiras que eles fizeram hoje, dentro da estrutura de nossa Visão Shandia, e convidamos a cooperação internacional para construir um novo mecanismo para fornecer financiamento climático. Um que possa realmente atingir os territórios onde está em jogo a preservação da biodiversidade e do estoque de carbono.

“Protegemos a maior parte da biodiversidade remanescente do mundo, mas recebemos menos de um por cento do financiamento de doadores internacionais”, disse Joseph Itongwa Mukumu, um indígena Walikale da República Democrática do Congo que atua como coordenador da Rede de Povos Indígenas e Comunidades Locais para a Gestão Sustentável de Ecossistemas Florestais (REPALEF). “Se for sério sobre como garantir que as florestas permaneçam de pé, a comunidade global deve fazer mais para reconhecer os direitos dos povos indígenas e apoiar nossas estruturas tradicionais de governança.”

“Propomos uma nova forma de investir recursos diretamente em nossas comunidades, que estão na linha de frente das mudanças climáticas e arriscam nossas vidas para proteger a natureza. Transformar a forma como o financiamento climático é fornecido localmente garantiria um maior impacto para o bem de toda a humanidade, “disse Tuntiak Katan, um líder indígena do Equador e chefe da Aliança Global.

Florestas administradas por povos indígenas e comunidades locais apresentam taxas de desmatamento mais baixas do que terras semelhantes administradas por terceiros. Entre 2000 e 2012, por exemplo, as taxas médias anuais de desmatamento em nossas florestas na Bolívia, Brasil e Colômbia foram duas a três vezes mais baixas do que aquelas não manejadas por povos indígenas. Mas esses ganhos ocorrem apenas quando nossas comunidades têm direitos garantidos sobre suas terras, razão pela qual o financiamento de tais iniciativas deve ser de suma importância.

Além do reconhecimento e proteção de nossos direitos à terra comunais e sistemas de posse consuetudinária, exigimos compensação pela gama de serviços ecossistêmicos – incluindo proteção contra pandemias emergentes – gerados em nossas terras. Exigimos que as decisões de investimento sejam determinadas dentro de nossas comunidades e que nossos líderes eleitos e modos de vida tradicionais sejam respeitados em todas as arenas de tomada de decisão. E solicitamos financiamento direto para apoiar nossos esforços para administrar de forma sustentável nossas terras e recursos, com ferramentas para monitorar e protegê-los de intrusos como o agronegócio e mineradores e madeireiros ilegais.

“O compromisso anunciado hoje para deter a perda de floresta e proteger os direitos dos Povos Indígenas está muito atrasado”, disse Mina Setra, uma líder indígena da Indonésia, e o Secretário-Geral Adjunto da Aliança do Arquipélago dos Povos Indígenas (AMAN). “Aplaudimos os governos e doadores envolvidos por darem esse passo para proteger nossos direitos e o clima global. No entanto, esta promessa não deve substituir as ações fundamentais que eles devem tomar para impedir que suas empresas destruam nossas florestas ancestrais. Para cumprir sua missão e evitar uma catástrofe climática, eles devem parar todo o desmatamento nas terras dos povos indígenas e comunidades locais e trabalhar conosco para proteger as últimas florestas tropicais remanescentes do mundo.”

GLASGOW COP26, 1 de novembro de 2021