16/jul/2021
foto Carlos Penteado
Marco de proteção dos povos tradicionais tem sido descumprido pelo país. Envio tardio de respostas do governo aos questionamentos do organismo internacional e de organizações impede manifestação de Comitê de Peritos
O Brasil tem violado sistematicamente a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), conforme denunciam organizações sociais em informe enviado recentemente para o organismo internacional. No relatório elaborado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), com apoio da Terra de Direitos e Central Única dos Trabalhadores (CUT), é listado um conjunto de ações do Estado brasileiro que descumprem o principal instrumento jurídico internacional sobre proteção dos direitos dos povos indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais.
Além de uma longa descrição de ações referentes ao período de 2019 e 2020 do Estado brasileiro que violam os direitos de autodeterminação, de participação nas decisões que afetem seus modos de vida e de posse e propriedade dos seus territórios tradicionais, entre outros – determinações presentes na Convenção 169, o relatório ressalta como a omissão do Estado na proteção aos indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais diante da Covid-19 tem especialmente violado os direitos destes povos tradicionais, exposto-os a um contexto de ainda maior de vulnerabilidade à pandemia e aos efeitos dela.
É nesse contexto que se inscrevem as ações movidas pelas mesmas organizações no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2020. Diante da negligência do Estado brasileiro em implementar ações específicas para indígenas e quilombolas para enfrentamento da grave crise epidemiológica já instalada no país, a Apib e Conaq, com apoio de diversas organizações, ajuizaram – cada organização – uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Em julgamentos de ambas ações os ministros do Supremo reconheceram a omissão governamental e determinaram que o Estado brasileiro desenvolvesse e implementasse, em caráter de urgência, planos de enfrentamento à pandemia dirigidos aos povos indígenas e população quilombola, bem como inclusão desses grupos dentre os prioritários para vacinação no Programa Nacional de Imunização. Passados vários meses das decisões pelo STF, a Conaq, Apib e organizações têm reiteradamente denunciado as fragilidades nas medidas implementadas.
Fundamental na garantia dos direitos dos povos tradicionais, quilombolas e indígenas no Brasil, a Convenção 169 tem orientado parâmetros para diversas normas e políticas públicas brasileiras desde a ratificação da norma pelo país, em 2002 – como na estruturação de programas de saúde e educação dirigidas aos povos indígenas. Mesmo com mais de 15 anos de vigência da norma em território nacional, antes da pandemia, o Brasil já vinha descumprindo a Convenção, apontam as organizações. A urgência da denúncia neste momento, entretanto, sublinham as organizações, é que as violações foram intensificadas nos últimos três anos e os direitos já assegurados sofreram significativas retrações, sobretudo durante o governo Bolsonaro.
Como destaca a assessora jurídica da Terra Direitos, Maira Moreira, “um dos instrumentos mais fundamentais de afirmação de direitos dos povos indígenas, quilombolas e dos demais povos e comunidades tradicionais está sendo sucessiva e reiteradamente violado pelo Estado brasileiro, produzindo uma situação de genocídio desses povos e comunidades, um genocídio lento e gradual, em que todas as suas condições materiais, culturais, sociais são minadas, colocando em risco a existência desses povos e comunidades”. Uma vez que “já vinha [a Convenção] sendo violada, mas no contexto de pandemia essa violação foi agravada”, reitera o advogado da Apib, Eloy Terena.
Informações governamentais tardias
Ao ratificar uma Convenção da OIT o país passa a ter a obrigação de apresentar relatórios regulares sobre as medidas adotadas para sua implementação. Entregues no prazo regular para análise pelo Comitê de Peritos – um grupo de 20 juristas de diferentes nacionalidades, os documentos devem também conter respostas às informações solicitadas pelo órgão e por organizações dos trabalhadores do respectivo país. Após análise das informações pelo grupo técnico, o Comitê pode emitir observações ou solicitações diretas de novas informações – e posteriormente reagir às devolutivas.
“A submissão de nosso relatório aos Peritos da Comissão de Aplicação de Normas da OIT se insere dentro do sistema de Controle Regular de Normas da entidade. A partir dos nossos comentários sobre a aplicação da Convenção 169 pelo Estado brasileiro nós expomos para a comunidade internacional todas as violações cometidas pelo governo”, aponta o assessor jurídico e secretário de relações internacionais da CUT, Fábio Bon.
Em relatório lançado em fevereiro deste ano, o Comitê de Peritos da OIT teve que se restringir a republicar os comentários referentes ao Brasil já feitos em 2019. Isto porque a resposta do Governo às perguntas feitas pelas organizações e já pontuadas pelos peritos há dois anos foi enviada tarde demais para exame pelo Comitê em sua reunião atual.
O envio tardio – e a impossibilidade de análise das respostas pelo Comitê – impacta no monitoramento pelo órgão e pela sociedade sobre o cumprimento da Convenção pelo Brasil. No entanto, é possível aferir que as violações – já relatadas em documentos anteriores – foram ainda mais agudizadas na história recente brasileira, já que o governo federal mostra-se abertamente opositor aos povos e comunidades tradicionais.
Nenhum centímetro
O período de registro das violações pelo Brasil à Convenção 169 remetido à OIT coincide com o período de gestão de Jair Bolsonaro (sem partido). Abertamente opositor aos direitos dos povos e comunidades tradicionais, o presidente já declarou que no governo dele “não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”, ou seja, por um lado, sinalizou grande abertura para exploração de terras indígenas ao afirmar que “onde tem uma terra indígena, tem uma riqueza embaixo dela. Temos que mudar isso daí ”, por outro lado, fez declarações racistas ao se referir a população quilombola quando disse que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais”.
Não são apenas as declarações presidenciais que caminham lado a lado com a negação e a violação dos direitos destas populações, como também o desmonte da política indígena e quilombola sedimentado pelo governo federal. Um dos exemplos mais simbólicos foi a reforma administrativa no início da nova gestão.
Pela Medida Provisória 870/2019 os órgãos responsáveis pelas políticas quilombolas e indígenas foram realocados para pastas e sob comandos de expoentes vinculados ao agronegócio. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – autarquia responsável pelos direitos territoriais quilombolas – foi realocado da Casa Civil da Presidência da República para o Ministério da Agricultura, pasta administrada pela ruralista Tereza Cristina (PSL). Já a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a atribuição de demarcação de terras indígenas também foram transferidas do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH). O novo arranjo para Funai e demarcação só foi revertido por decisão do Congresso Nacional. No entanto, o Incra segue sob a tutela do Ministério da Agricultura.
Direito basilar, a proteção e posse coletiva dos territórios tradicionais são um dos grandes gargalos no quadro de violações. Garantia constitucional e assegurado em vários artigos da Convenção 169, o direito ao território pelos povos tradicionais no Brasil esbarra na omissão administrativa federal, no orçamento caducante e no avanço do mercado sobre as áreas.
Ao menos 821 terras indígenas aguardam alguma providência do Estado brasileiro, em suas diferentes instâncias, segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Ou seja, 63% das 1.290 terras indígenas ainda não são reconhecidas – no papel e no direito – pelo Estado brasileiro.
A fotografia da titulação quilombola é ainda mais frágil – em pouco mais de 30 anos de vigência da Constituição de 1988, apenas 181 terras quilombolas foram tituladas (entre titulações estaduais e federais), dessas 47 titulações parciais. Ainda que os dados oficiais do Incra não sejam atualizados desde janeiro de 2019, o esvaziamento orçamentário nos últimos anos para a titulação quilombola evidencia o que Incra deixa de informar: de acordo com Nota Técnica apresentada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), desde 2017 não há recursos orçamentários para regularização fundiária, e o Brasil só titulou 7% destas áreas.
“Nós temos a certeza que todos os direitos de povos indígenas, quilombolas e tradicionais estão atrelados a seus territórios. Não tem como proteger as comunidades e garantir proteção sanitária sem falar em direito territorial. Daí envolve demarcar todas as terras indígenas, regularizar territórios quilombolas e proteger os que já estão demarcados”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos e Conaq, Vercilene Dias.
No rol de ataques aos territórios tradicionais ainda orbitam a incursões de grileiros, mineradores, garimpeiros e ruralistas. Em 2020, das 81.225 famílias vítimas de invasões em seus territórios, 58.327 são indígenas, de acordo com levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Os territórios ficaram totalmente à mercê destes invasores. Só a presença deles já é uma violação ao usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre seus territórios, mas nesta pandemia as incursões ilegais torna-se um vetor de disseminação da doença”, sublinha Eloy.
O documento enviado pelas organizações à OIT ainda destaca a violação do direito de autodeterminação pelos povos, ataques à políticas para estes povos, como a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), entre outras violações. Veja quadro.
Investidas legislativas
Não apenas o Executivo tem posto em andamento ações contínuas de desmonte de estruturas e ações vinculadas a quilombolas e indígenas, mas também o legislativo federal impõe uma pauta desfavorável a estes povos. Bancada mais expressiva no Congresso, os parlamentares vinculados à Frente Parlamentar da Agropecuária – um lobby bancado por associações e empresas do agronegócio – contabilizam 32 das 81 cadeiras no Senado. Na Câmara, os 225 deputados filiados à frente representarão 44% do total de votos (513) de toda casa legislativa.
Com esta representação majoritária e nenhuma correspondência com a composição da população brasileira, os ruralistas impõem uma agenda que possibilita a entrada do mercado nos territórios. Um exemplo singular é o PL 490/2007. O projeto de lei ameaça a demarcação de terras indígenas, abre as portas destes territórios para empreendimentos agropecuários, hidrelétricas, mineração, estradas e o garimpo. Em um cenário de intensa violência policial contra os indígenas nos arredores da Câmara dos Deputados e ausência de diálogo com quem será impactado pela medida, o PL foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara no dia 23 de junho. Isto em plena pandemia.
Já o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 177/2021 busca ferir diretamente a Convenção 169. De autoria do deputado federal e integrante da FPA, Alceu Moreira (MDB-RS), o projeto de lei protocolado em abril deste ano visa autorizar o presidente a denunciar a Convenção 169 da OIT, ou seja, caso aprovado, o Decreto Legislativo permitiria que Bolsonaro retirasse o Brasil da Convenção, procedimento chamado de “denúncia”, representando um enorme retrocesso aos direitos conquistados. A matéria legislativa já foi distribuída para comissões.
15/jul/2021
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) enviou petição ao STF solicitando ingresso como amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 6553, em trâmite no STF, sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes. A ação foi proposta pelo PSOL, visando suspender os processos administrativos da Ferrovia EF-170, a Ferrogrão. O traçado previsto para os trilhos passa por dentro da área hoje ocupada pelo Parque Nacional do Jamanxim, uma Unidade de Conservação (UC) localizada no Pará. Para viabilizar economicamente o projeto é preciso alterar os limites do Parque. É mais uma agressão à floresta e ao meio ambiente, sem os cuidados e sem as consultas aos povos indígenas. No dia 15 de março de 2021, o ministro relator concedeu a liminar e suspendeu a eficácia da Lei 13.452/2017, resultante da conversão da Medida Provisória 758/2016, bem assim dos processos relacionados à Ferrogrão, em especial os em trâmite na Agência Nacional dos Transporte Terrestres – ANTT (50500.036505/2016-15 ou outro qualquer), no Ministério da Infraestrutura (50000.025009/2020-53 ou qualquer outro) e no Tribunal de Contas da União (025.756/2020-6).
A APIB chama atenção para três pontos importantes da decisão do ministro relator:
- A construção da ferrovia no Parque do Jamanxim é inconstitucional
O governo alterou os limites do Parque Nacional por meio de uma Medida Provisória (MP). E as Unidades de Conservação Ambiental, como a do Jamanxim, só podem ser alteradas por lei. Os limites do Parque Nacional do Jamanxim foram alterados pela Medida Provisória n. 758/2016, o que contraria a previsão do art. 225, § 1º, III, da Constituição. Ele diz que Unidades de Conservação só podem ser alteradas dessa maneira por meio de lei. Em casos anteriores semelhantes, o STF entendeu por unanimidade que esse procedimento fere a Constituição da República. O fato de a MP ter sido posteriormente convertida em lei não altera a inconstitucionalidade do ato. Uma lei resultante de MP não passa pelas Comissões permanentes do Congresso Nacional. Isso elimina todo o processo legislativo de uma lei ordinária, que exige o debate parlamentar e a participação social necessários para que a lei seja legítima e favorável à sociedade.
- A Ferrogrão é nociva ao meio ambiente
Estudos de instituições, como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apontam que a ferrovia do governo federal poderá causar imensos danos ambientais. As obras poderão rasgar a mata nativa do bioma amazônico e prejudicar centenas de nascentes e rios. O desmatamento será incentivado, e milhares de quilômetros de vegetação nativa poderão ser destruídos por conta da inevitável ampliação da fronteira agrícola para dentro da região amazônica, com direção ao centro do Pará. A enorme pressão por terras cultiváveis terá um preço muito alto para a Amazônia.
- Os povos indígenas não foram consultados
Desde o início do processo da Ferrogrão, os povos indígenas estão sendo colocados à margem. Há um direito de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado (CCLPI), ainda na fase de planejamento da Ferrogrão, para possibilitar que os povos indígenas impactados pela obra exerçam seu direito de participar da avaliação de custo-benefício na etapa de Planejamento de Longo Prazo. Adicionalmente, uma vez escolhido um projeto de infraestrutura a ser implementado em região de influência de terras indígenas, deve-se garantir aos povos diretamente afetados o direito de influenciar a avaliação de viabilidade socioeconômica e ambiental do projeto escolhido, na etapa da Estruturação do Projetos e de licenciamento ambiental do mesmo, conforme lhes garante os artigos 6º e 7º da Convenção 169 da OIT. Neste caso não houve a CCLPI. O traçado da ferrovia vai prejudicar 48 comunidades indígenas. Em dezembro de 2020 o Ministério Público Federal (MPF) iniciou ação judicial exigindo respeito à consulta prévia dos povos atingidos. Na ação, o MPF acusa o governo de tentar aliciar um indígena para obter anuência sem cumprir os protocolos de consulta e viabilizar o licenciamento do projeto.
O STF está no caminho certo. Pedimos ao Plenário, ao julgar a ADI 6553, para manter a decisão de que a alteração no Parque Nacional do Jamanxim é inconstitucional e que o projeto da Ferrogrão deve seguir suspenso para evitar danos irreparáveis aos povos indígenas e à região amazônica.
15/jul/2021
Apelo foi feito na mesma semana em que o Brasil foi citado por risco de atrocidade contra povos indígenas; governo brasileiro tentou fazer tréplica, mas não foi atendido
Por Adi Spezia e Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação do Cimi.
Foto capa Andressa Zumpano/Articulação das Pastorais do Campo
Em declaração conjunta durante a 14ª Sessão do Mecanismo de Peritos sobre Direitos dos Povos Indígenas da ONU (EMRIP), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) denunciaram nesta quarta (14) medidas do governo brasileiro e do Congresso Nacional que atacam os direitos dos povos indígenas no Brasil, como o Projeto de Lei (PL) 490/2007, que na prática inviabiliza demarcações de terras indígenas, e a tese do marco temporal.
Na oportunidade, as organizações também questionaram a manifestação do governo brasileiro, que havia defendido, em sua fala, uma normativa recentemente imposta pelo governo brasileiro e que é amplamente questionada por organizações indígenas, indigenistas, socioambientais e até pelo Ministério Público Federal (MPF) por enfraquecer os direitos constitucionais indígenas.
O evento tem como objetivo ouvir os povos indígenas e suas organizações, nesta edição devido a pandemia foi realizado em formato virtual e discutiu sobre a autodeterminação dos povos e o direito das crianças indígenas. O EMRIP é um mecanismo único, onde todos seus membros são povos indígenas. “É um mecanismo muito importante para a comunidade indígena mundial, liderado pelos povos indígenas”, explica Paulo Lugon Arantes, assessor internacional do Cimi.
No tempo estipulado à Apib e ao Cimi, Arantes, falando em nome das organizações, destacou a gravidade do marco temporal e dos mais de 30 outros projetos em tramitação no Congresso brasileiro que violam o direito à livre determinação dos povos originários. O PL 490, recentemente aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, foi destacado como uma das principais ameaças aos direitos indígenas hoje.
“O marco temporal é desastroso porque deixará uma marca incalculável de exclusão e marginalização de povos que ainda não tiveram seus territórios demarcados ou que foram expulsos de seus territórios tradicionais”, destacou Paulo.
As organizações ainda denunciaram a agenda anti-indígena do governo brasileiro, o que levou a Conselheira Especial da ONU para a Prevenção do Genocídio, Wairimu Nderitu, manifestar preocupação inédita com a situação os povos indígenas no Brasil.
“O presidente Bolsonaro tem uma agenda claramente anti-indígena, o que levou a assessora da ONU pela prevenção do genocídio incluir o Brasil no Mapa de Atrocidades do Mundo”, afirmou o assessor, em nome da Apib e do Cimi.
Normativa conjunta
Em sua manifestação na sessão com o EMRIP, o governo brasileiro defendeu a Instrução Normativa Conjunta 01/2021, publicada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em fevereiro.
Segundo o representante do Itamaraty na sessão, a normativa teria garantido aos povos indígenas “autonomia para definir seus próprios procedimentos em relação ao licenciamento ambiental de projetos econômicos dentro de suas terras, quando o empreendedor é uma organização indígena, dentro dos limites da legislação nacional”.
“Povos indígenas podem escolher desenvolver atividades geradoras de lucro em suas terras. Tais iniciativas de fortalecimento econômico contam com total apoio do governo federal”, ressaltou o governo brasileiro.
A representação do Brasil fez questão de salientar, ainda, “a produção sustentável de grãos” realizada em três terras indígenas no Centro Oeste do país, seguindo o modelo produtivo do agronegócio, com monocultivos, uso de sementes transgênicas e agrotóxicos.
O fato de que milhares de comunidades e famílias indígenas produzem os mais variados alimentos de forma autônoma, orgânica e coletiva não foi mencionado pelo representante do Brasil.
A Apib e o Cimi, em seguida, questionaram a posição defendida pelo governo brasileiro. “Rechaçamos veementemente a intervenção do representante do Brasil quando menciona que a IN 01 do Ibama e da Funai é uma manifestação da autonomia dos povos indígenas do Brasil”, salientaram.
“Essa regulamentação não flexibiliza, mas enfraquece o licenciamento ambiental no Brasil. É uma tentativa de contornar as garantias constitucionais, como o usufruto exclusivo dos territórios por seus povos e, consequentemente, sua autodeterminação e autonomia. Essa normativa cria um procedimento de licença ambiental que nega o Consentimento Livre Prévio e Informado aos povos indígenas do Brasil”, afirmou Arantes, falando em nome das duas organizações.
A IN 01/2021 permite que “organizações mistas” de indígenas e não indígenas possam explorar economicamente as terras tradicionais, o que é vedado pela Constituição Federal. A participação de indígenas nestas organizações – que não necessariamente são representativas do povo ou da comunidade que vive naquele território – é utilizada pelo governo federal para justificar a medida.
“Basta que garimpeiros, madeireiros e fazendeiros aliciem alguns indígenas, convencendo-os a criar uma associação mista e, a partir de então, não haverá nenhum tipo de contenção ou limite”, avalia, em artigo, o coordenador do Cimi Regional Sul, Roberto Liebgott.
“Esse mecanismo levará ao acirramento de conflitos, colocando a vida dos indígenas em sério risco”, apontou o Cimi, em nota, à época da publicação da medida.
Para a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a IN 01/2021 dá “amparo legal para a invasão, nesses territórios, de estradas, fazendas, hidrelétricas, monoculturas e outros projetos que colocam em extremo risco os recursos naturais, a biodiversidade, a segurança e os modos de vida próprios dos povos indígenas”.
Para o MPF, a normativa conjunta da Funai e do Ibama viola a Constituição Federal e afronta os direitos constitucionais dos povos originários.
Apib e Cimi solicitaram, ao final de sua fala, que em seu trabalho de assessoria ao Estado brasileiro o mecanismo de peritos da ONU “leve em consideração esta norma, tendo em conta os graves riscos que ela impõe”.
Tréplica negada
Após a declaração conjunta, a representação do governo brasileiro pediu “direito de resposta”, pelo fato do país ter sido citado. A resposta, que seria uma tréplica, foi negada pela secretaria do EMRIP, que respondeu não haver direito de resposta frente ao mecanismo. “Os integrantes do EMRIP são os únicos membros do mecanismo e todos os demais são observadores”, explicou a secretaria.
“Essa prática não encoraja a participação de Estados-membros nas sessões do mecanismo e é autoritária”, retrucou a representação brasileira, que ainda tentou rebater os argumentos da Apib e do Cimi por meio de mensagens de texto.
“Estados nacionais, ONGs, todos os demais são observadores, por isso não existe direito de resposta”, explica Arantes. “O Brasil foi a única delegação que fez isso. Outras delegações de países que participavam do espaço receberam críticas, mas deixaram os povos indígenas falar”.
Veja, abaixo, a íntegra da manifestação conjunta da Apib e do Cimi:
14ª Sessão do Mecanismo de Peritos sobre Direitos dos Povos Indígenas
Consulta Regional, 14 de julho de 2021
Declaração Conjunta:
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Conselho Indigenista Missionário – CIMI
Agradecemos ao Mecanismo pelo estudo sobre os direitos dos povos indígenas e o direito à sua autodeterminação.
Apoiamos o marco principal do informe, o qual indica que o direito à sua determinação é a base legal para as relações entre povos indígenas e Estados, o que foi amplamente acolhido pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. Na verdade, o direito à autodeterminação de povos indígenas têm raízes internacionalistas, com os membros da Escola Peninsular da Paz, no século XVI, antes da hecatombe da colonização das Américas.
Acreditamos que o direito à autodeterminação inscrito no Artigo 3 da Declaração têm uma relação estreita com todos os outros direitos neste instrumento. Neste momento, gostaríamos de focar no direito ao território.
Na experiência brasileira, a Escola Peninsular teve repercussões na Legislação Colonial Portuguesa, principalmente na Teoria do Indigenato, a qual garantia o direito originário dos povos indígenas, embora o poder colonial tenha sido responsável por várias atrocidades contra estes povos.
A teoria do Indigenato seguiu inúmeras Constituições brasileiras. A última Constituição de 1988, ao dedicar um capítulo aos povos indígenas, também reconhece o direito ancestral de seus povos originários ao território que tradicionalmente ocupam.
Porém, a equivocada tese do Marco Temporal discutida no Brasil defende que os direitos originários ao seu território por seu povo estão restritos a data da promulgação da Constituição. Esta tese é debatida no Supremo Tribunal Federal e por meio do Projeto de Lei 490.
O Marco Temporal é nefasto porque deixará um rastro incalculável de exclusão e marginalização de povos que ainda não tiveram seus territórios demarcados ou que foram expulsos de seus territórios tradicionais.
Mais de 30 outros projetos em tramitação no Congresso brasileiro violam o direito à liberdade de determinação e contrariam a recomendação mencionada no parágrafo 139 do informe.
O presidente Bolsonaro tem uma agenda claramente anti-indígena, o que levou a assessora da ONU pela prevenção do genocídio incluir o Brasil no Mapa de Atrocidades do Mundo, segundo seu último relatório.
Para concluir, rechaçamos veementemente a intervenção do representante do Brasil quando menciona que a IN 01 do IBAMA e da FUNAI é uma manifestação da autonomia dos povos indígenas do Brasil. Essa regulamentação não torna o licenciamento ambiental no Brasil mais flexível, mas o enfraquece. É uma tentativa de contornar as garantias constitucionais, como o usufruto exclusivo dos territórios por seus povos e, consequentemente, sua autodeterminação e autonomia.
Essa norma cria um procedimento de licenciamento ambiental que nega o consentimento livre prévio e informado aos povos indígenas do Brasil.
Solicitamos ao Mecanismo que, em seu trabalho de assessoria ao Estado Brasileiro, leve em consideração esta norma, tendo em conta os graves riscos que ela impõe.
Muito obrigado.
13/jul/2021
A Campanha para que a Anglo American, uma das maiores mineradoras do mundo, encerre seus planos de explorar territórios indígenas, teve início com o relatório Cumplicidade na Destruição III, em outubro de 2020. Mineradora ainda tem 86 interesses minerários ativos na base de dados da ANM que impactam territórios indígenas.
foto da capa: Aaron Ekraim
Pará, Brasil, 13 de julho de 2021 – A mineradora inglesa Anglo American se comprometeu formalmente em retirar da Agência Nacional de Mineração (ANM) 27 requerimentos aprovados para a pesquisa de cobre em territórios indígenas, localizados nos estados de Mato Grosso e do Pará. O compromisso foi informado, dia 24 de maio, após pressão do povo Munduruku, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e da Amazon Watch.
Do total de pedidos feitos pela Anglo American, que é uma das maiores mineradoras do mundo, e aprovados pela ANM, 13 impactavam diretamente a Terra Indígena Sawré Muybu, do povo Munduruku, no sudoeste do Pará.
Segundo a mineradora, a ANM foi informada sobre a retirada e a empresa aguardava pela atualização do banco de dados da Agência. Em sua resposta por email à Apib, a Anglo American afirma que com base nas preocupações levantadas pelas organizações e na oposição dos grupos indígenas contra a mineração em seus territórios, reavaliou essas licenças e tomou a decisão de retirar todas as 27.
“É uma vitória, mas queremos saber se a Anglo American vai realmente cumprir a sua palavra ou se ela vai voltar ao nosso território com outros meios, como o governo faz criando novas leis para entrar em território indígena. Nós resistimos e vamos continuar a resistir. São muitos ataques que sofremos, com projeto de lei dentro do Congresso, com madeireiros, garimpeiros, palmiteiros e grileiros dentro do nosso território. Então, a gente não confia, vamos confiar apenas se daqui dois, três anos, nós pudermos viver em paz. Que a Anglo American cumpra a sua palavra, porque tudo que sai no papel a gente não acredita, a Constituição é para ser respeitada, mas ela está sendo violada e rasgada”, afirma Alessandra Munduruku, vice coordenadora da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa).
A campanha para que a Anglo American retirasse todos os requerimentos protocolados na ANM que impactassem territórios indígenas teve início após a publicação do relatório Cumplicidade na Destruição III, publicado pela APIB e Amazon Watch, em outubro de 2020, que apontava que a mineradora tinha quase 300 requerimentos de pesquisa registrados que incidiam sobre 18 Terras Indígenas na Amazônia, algumas com a presença de povos indígenas isolados. O alvo mais recente da mineradora inglesa havia sido a TI Sawré Muybu, no Médio Tapajós, onde vive o povo Munduruku. Cinco pedidos foram feitos de 2017 a 2019.
Confrontada com esses dados diversas vezes desde o lançamento do relatório e da campanha, a Anglo American se posicionou reiteradamente afirmando ter desistido de todos os pedidos de exploração mineral em áreas localizadas em terras indígenas no Brasil. No entanto, um levantamento de julho de 2021 do projeto Amazônia Minada, do InfoAmazonia, mostra que a Anglo American ainda possui 86 interesses minerários ativos na base de dados da ANM que impactam territórios indígenas.
“A decisão da Anglo American é importante e um resultado direto da resistência dos povos indígenas à mineração em nossos territórios. Mas esta decisão não é suficiente, porque não podemos esquecer que a mineradora ainda tem dezenas de pedidos para exploração mineral que afetam outros territórios indígenas. Portanto, seguiremos firmes com nosso chamado inicial à Anglo American: comprometer-se publicamente a não minerar em nenhum território indígena no Brasil. A maioria dos povos e as comunidades indígenas do Brasil não comunga com os anseios de uma minoria de indivíduos indígenas que se iludem e dobram às camufladas más intenções deste governo”, afirmou Eloy Terena, coordenador jurídico da Apib e assessor jurídico da Coiab.
Nos últimos dois anos, sob gestão do presidente de extrema direita Jair Bolsonaro, o Brasil bateu recorde de registros de pedidos de mineração dentro de terras indígenas. Segundo levantamento do Amazônia Minada, em 2020, um total de 143 requerimentos de mineração que afetam terras indígenas foram protocolados, e não rejeitados, na ANM — foi o maior número em 24 anos, quase três vezes o resultado de 2018, último ano antes de Bolsonaro assumir a Presidência. Uma onda de pedidos surgiu depois que Bolsonaro apresentou o Projeto de Lei 191, em fevereiro de 2020, que prevê a regularização da exploração mineral de terras indígenas, cumprindo assim uma de suas promessas de campanha mais controversas. Ainda mais preocupante, 71 dos 143 pedidos feitos em 2020 foram em terras onde a Funai tem registros da existência de povos indígenas isolados.
Apenas na TI Yanomami, terra indígena brasileira com maior área formalmente requisitada para mineração, são cerca de 3,3 milhões de hectares (34,3% da área total da TI) requeridos para extração mineral em 500 pedidos registrados na ANM — uma extensão territorial maior do que a Bélgica (3 mi ha) ou que o estado de Alagoas (2,7 mi ha) em disputa com mineradores. Quase um terço de todos esses pedidos registrados buscam por ouro. Foram diversos ataques a comunidades Yanomami por garimpeiros ilegais nos últimos dois meses.
“As empresas que seguem fazendo esses pedidos, mesmo cientes dos conflitos que a mineração tem levado ao território indígenas, estão colaborando com o projeto de destruição levado a cabo pelo governo Bolsonaro. Com a ameaça do projeto de lei 191/2020 cada vez mais próxima, seguiremos em campanha para que as gigantes da mineração, como a Anglo American, assumam uma postura compatível com os direitos indígenas e se posicionem contra essa proposta”, afirma Rosana Miranda, consultora de campanhas da Amazon Watch.
07/jul/2021
Projeto de lei pode anular demarcações de Terras Indígenas e representa um novo genocídios aos povos originários.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) encaminhou, nesta terça-feira (6), à Organização das Nações Unidas (ONU) um ‘apelo urgente’ para que medidas possam ser tomadas para barrar a tramitação do Projeto de Lei 490 no Congresso Nacional. O apelo foi feito em conjunto com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Comissão Arns, Instituto Socioambiental e Conectas Direitos Humanos.
O texto do PL foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados em 23 de junho e, segundo as entidades, inviabiliza a demarcação de terras indígenas, ameaça os territórios existentes e tira direitos previstos na Constituição.
“Nós apresentamos informações neste apelo urgente aos procedimentos especiais das Nações Unidas e da Relatoria Especial da CIDH para solicitarmos que se investigue e se exija medidas imediatas das autoridades brasileiras sobre a tramitação irresponsável de legislações, em particular o Substitutivo ao Projeto de Lei n° 490/2007, na Câmara dos Deputados, que violarão os direitos dos povos indígenas no país, inviabilizando demarcações de terras indígenas, ameaçando os territórios homologados e destituindo direitos constitucionais, e que são também incompatíveis com as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil em matéria de direitos humanos”, destaca trecho do apelo enviado.
Acesse o documento completo: Apelo Urgente PL 490
E em inglês: Urgent Appeal_Brazil Draft Bill 490
Além do PL 490, o comunicado enviado à ONU solicita que todos os projetos de lei com consequências semelhantes sejam submetidos a amplo e detalhado debate democrático.
05/jul/2021
Mídia Índia lança programa “Fala Mídia Índia”, no YouTube, para informar e multiplicar as informações sobre os povos indígenas no Brasil.
Na estreia que aconteceu hoje, 5 de julho, o programa contou com mediação de Erisvan Guajajara, Erick Terena e Tukumã Pataxo, que trouxeram um balaço político e descontraído sobre as mobilizações dos povos indígenas no mês de Junho.
Ainda, todas as informações sobre o acampamento Levante Pela Terra, em Brasília, bem como as pautas e ações que aconteceram nos seus 25 dias de duração com ações não só na capital federal mas em diversos territórios no país.
O programa vai ao ar uma vez por mês, no canal da Mídia Índia no YouTube, em um formato de debates e convidados. Hoje a participação foi do advogado indígena Maurício Terena, que esclareceu sobre os temas que estavam em alerta no Congresso Nacional, como o PL 490 e no STF com a votação do Marco Temporal.
A Mídia Índia é um coletivo formado por indígenas, de diversas comunidades, regiões e povos. Protagonizada por jovens indígenas que contribuem para romper uma comunicação hegemônica e não participativa. Um dos maiores objetivo da Mídia Índia é a garantia de uma comunicação representativa.
O “Fala Mídia Índia” estará salvo no canal e pode ser acessado por todos, além do programa foram informados novos projetos e calendários previstos para o movimento indígena como a mobilização em agosto, quando a votação do Marco Temporal volta a ser pautada no STF e a Marcha das Mulheres Indígenas, marcada para o mês de setembro.
ACESSE: https://m.youtube.com/watch?v=5YybBLUfe-Q&feature=youtu.be
01/jul/2021
Agravamento da violência durante a pandemia da Covid-19 nos territórios indígenas será o foco das denuncias.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) recebe nesta quinta-feira, 1 de julho, denuncias das organizações indígenas e lideranças dos povos Munduruku, Yanomami e Guajajara sobre o agravamento das violências nos territórios no período da pandemia da Covid-19. A ação faz parte do 180º Período de Sessões da Comissão e atende solicitação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em conjunto com a Coordenação dos Povos Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Associação das Mulheres Munduruku Wakoborũn e Associação Hutukara e outros parceiros.
“A escalada da violência prenuncia resultados ainda mais trágicos, e por isso é indispensável que todas as medidas cabíveis a esta egrégia Comissão sejam tomadas.”, destaca trecho do comunicado enviado à CIDH para solicitar a audiência que acontece hoje (1). Acesse o comunicado feito à CIDH aqui
No dia 18 de junho, o Supremo Tribunal Federal determinou, de forma unânime, a proteção dos povos Munduruku e Yanomami para evitar novos massacres nos territórios. A corte decidiu sobre pedido feito pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) pela retirada urgente de invasores, especialmente das Terras Indígenas (TIs) Munduruku, no Pará, e Yanomami, em Roraima, e pela garantia da integridade física das pessoas ameaçadas nesses locais.
As invasões aos territórios indígenas aumentaram durante a pandemia de covid-19, e estão agravando as violências contra comunidades e lideranças, provocando surtos de doenças além do novo coronavírus, como a malária, e intensificando a degradação ambiental. A solicitação da Apib ao STF para proteção dos territórios foi feita no âmbito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709. Acesse a íntegra do pedido aqui.
Sessão
A audiência com a CIDH para denunciar as violências cometidas contra os povos indígenas está com previsão de início para 12h (horário de Brasília) e será transmitida online nas redes sociais da comissão. Durante a 180º Período de Sessões da da comissão serão realizadas diversas denúncias sobre as violações de direitos cometidas no Brasil no período da pandemia da Covid-19.
Participam da audiência que evidencia o contexto dos povos indígenas o coordenador jurídico da Apib, Eloy Terena, a vice presidente da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), Alessandra Munduruku, o vice presidente da associação Hutukara, Dario Yanomami, a coordenadora da Associação Wakoborũn Leusa Munduruku e o lider indígena Júlio Ye’kwana.
30/jun/2021
Caso que pode definir o futuro dos povos volta para pauta de votação do Supremo em agosto, período que marca o reconhecimento internacional dos povos indígenas
Brasília, 30 de junho de 2021 – A sessão de hoje, 30, do Supremo Tribunal Federal (STF) foi encerrada sem que o caso sobre demarcação de terras indígenas fosse julgado. O presidente da Corte, Luiz Fux, remarcou para o dia 25 de agosto o retorno do caso para a pauta do STF.
Mobilizados há três semanas em Brasília e nos territórios em todas as regiões do país, os indígenas esperavam que a Corte analisasse a ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang. Com status de “repercussão geral”, a decisão tomada neste julgamento servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça, também de referência a todos os processos, procedimentos administrativos e projetos legislativos no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios.
“Infelizmente não foi votada a repercussão geral, mas vamos continuar na luta, como sempre, pela demarcação das nossas terras e em defesa do meio ambiente. O Supremo se comprometeu em marcar o julgamento para agosto, e nós seguiremos mobilizados. O marco temporal é uma afronta aos direitos indígenas que nós não aceitamos”, alerta Brasílio Priprá, liderança do povo Xokleng.
O adiamento da decisão reforça o quanto é necessária a luta travada pelos povos. “Temos que continuar na resistência. É necessário que a gente continue na mesma pegada, na mesma luta. Agosto tem que ser o mês da luta!”, afirmou Kretã Kaingang, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e um dos organizadores do acampamento Levante pela Terra, que mobiliza desde o dia 8 de junho mais de 850 pessoas de 50 povos, na capital federal.
O mês de agosto é marcado pelo reconhecimento internacional dos povos indígenas e segundo Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Apib, a luta por direitos segue firme, em todo o país, até a nova data do julgamento. “Estamos aqui hoje mais uma vez fazendo esse chamado para o ‘agosto indígena’. Voltaremos em agosto para Brasília para lutar contra todos esses retrocessos, contra todas essas medidas anti-indígenas que tramitam no âmbito dos três poderes da União”.
Marco temporal
O “marco temporal” é uma interpretação defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das TIs que restringe os direitos constitucionais dos povos indígenas. De acordo com ela, essas populações só teriam direito à terra se estivessem sobre sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, se não estivessem na terra, precisariam estar em disputa judicial ou em conflito material comprovado pela área na mesma data.
A tese é injusta porque desconsidera as expulsões, remoções forçadas e todas as violências sofridas pelos indígenas até a promulgação da Constituição. Além disso, ignora o fato de que, até 1988, eles eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente para lutar por seus direitos.
Os ministros também vão analisar no processo de repercussão geral a determinação do ministro Edson Fachin, de maio do ano passado, de suspender os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU). A norma oficializou o chamado “marco temporal”, entre outros pontos, a tese vem sendo usada pelo governo federal para paralisar e tentar reverter as demarcações. Na mesma decisão do ano passado, Fachin suspendeu, até o final da pandemia da Covid-19, todos os processos judiciais que poderiam resultar em despejos ou na anulação de procedimentos demarcatórios. Essa determinação também deverá ser apreciada pelo tribunal.
Adiamentos
O julgamento estava marcado anteriormente para 11 de junho deste ano, em plenário virtual, mas foi suspenso por um pedido de “destaque” do ministro Alexandre de Moraes, um minuto após começar. Os demais ministros sequer chegaram a depositar seus votos. Apesar disso, o voto do relator, ministro Edson Fachin, foi divulgado.
O presidente da Corte, Luiz Fux, recolocou o caso na pauta desta, quarta-feira (30), que agora segue para julgamento no dia 28 de agosto.
Mesmo com a indecisão em relação a nova data do julgamento, os indígenas afirmam seguir mobilizados. “Temos que continuar na resistência. É necessário que a gente continue na mesma pegada, na mesma luta. Agosto tem que ser o mês da luta!”, afirma Kretã.
“Eles (ministros e ministras) não tem noção do sofrimento daqueles que moram embaixo de uma lona na beira da estrada e que tão dentro de uma retomada sofrendo ameaça, sofrendo reintegração de posse, lideranças criminalizadas. Os ministros não têm noção disso”, enfatizou a liderança.
A TI Ibirama-Laklãnõ está localizada entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, Vitor Meireles e José Boiteux, 236 km a noroeste de Florianópolis (SC). A área tem um longo histórico de demarcações e disputas, que se arrasta por todo o século XX, no qual foi reduzida drasticamente. Foi identificada por estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2001, e declarada pelo Ministério da Justiça, como pertencente ao povo Xokleng, em 2003. Os indígenas nunca pararam de reivindicar o direito ao seu território ancestral.
Mais informações sobre o caso que pode definir o futuro dos povos indígenas, aqui
Atualizado ás 21h30 de 30 de junho: data do julgamento confirmada para dia 28 de agosto.
29/jun/2021
Na segunda-feira (28), a Apib – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil realizou uma reunião internacional com instituições não governamentais parceiras e outros interessados para tratar da situação de emergência que se passa no Brasil. Convocado na sexta-feira anterior, o encontro contou com a participação de mais de 200 pessoas, de 26 países de todas as regiões do mundo. Isso demonstra o interesse internacional sobre a situação vivida pelos Povos Indígenas no Brasil, e a relevância da Apib como autoridade global nos temas que envolvem os povos originários e a preservação do meio ambiente.
Durante a reunião, que durou cerca de duas horas, dirigentes da Apib compartilharam a visão da instituição sobre as ameaças que se avolumam no Congresso Nacional contra os direitos territoriais dos povos indígenas, principalmente no âmbito do Projeto de Lei 490 de 2007. Este PL transfere para o Congresso a responsabilidade de demarcar Terras Indígenas, o que submete os povos indígenas aos interesses de cada legislatura. Atualmente, a forte presença de ruralistas e militares tornaria praticamente impossível avançar na demarcação de territórios que ainda não tiveram seu processo concluído. Pelo contrário: há o risco de retrocesso, com a anulação da homologação de Terras Indígenas já consolidadas.
O advogado Luiz Eloy Terena, da Coordenação Jurídica da Apib, falou também sobre o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso Especial que envolve a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, do povo Xokleng, de Santa Catarina. Essa ação, que pode ser retomada pelo plenário do STF ainda essa semana, debate a tese do “marco temporal” para a demarcação de povos indígenas, e possui status de “repercussão geral”, o que quer dizer que a decisão tomada no processo orientará futuras decisões judiciais e, inclusive, iniciativas legislativas e em políticas públicas nesse tema.
Sônia Guajajara, Coordenadora Executiva da Apib, mediou toda a reunião diretamente do Acampamento Levante Pela Terra, que se estabeleceu em Brasília há mais de um mês e reúne, atualmente, cerca de mil indígenas que vieram de todas as regiões do Brasil, mesmo durante a pandemia, para defender seus direitos. Ela informou os participantes sobre a intensa agenda de mobilizações prevista para os próximos meses.
O Coordenador Executivo da Apib, Dinaman Tuxá, também presente na reunião, compartilhou com os parceiros internacionais uma visão ampla das violências e ameaças vividas pelos Povos Indígenas no Brasil, que incluem tentativas constantes de invasão de suas terras.
Rumo a uma Mobilização Indígena Internacional
Marielle Ramirez, colaboradora da Apib, reforçou a importância do apoio dos parceiros internacionais para fortalecer a luta dos Povos Indígenas no Brasil. “O que estamos propondo é mais do que a participação em um tuitaço, em um Abaixo-Assinado: propomos uma articulação permanente, que esteja constantemente atenta às ameaças que vivemos no Brasil”, disse Sônia Guajajara.
A Apib já possui uma rede fortalecida de parceiros mundo afora, e espera reforçar essa rede com a Mobilização Indígena Internacional por meio de uma série de encontros e costuras políticas que se intensificarão no mês de julho, como o diálogo com instituições do Sistema ONU, com Embaixadas e Representações Diplomáticas no Brasil, entre outros.
Se você ou sua instituição desejam fazer parte dessa Mobilização e receber mais informações sobre as ações da Apib, faça seu cadastro clicando aqui.
29/jun/2021
Artigo de Luiz Eloy Terena. Advogado indígena coordenador jurídico da Apib. Pós-doutor na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), França.
O futuro das terras indígenas está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro presidente Luiz Fux incluiu na pauta de julgamento do dia 30 de junho, o Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, com repercussão geral reconhecida. Também conhecido como “caso Xokleng”, a decisão servirá de parâmetro para a demarcação de todas as terras indígenas do Brasil.
Os povos indígenas vivenciam um contexto político muito adverso na gestão do governo Bolsonaro, primeiro presidente eleito declaradamente contrário aos povos indígenas. Desde que tomou posse, assinou diversos atos que contrariam a Constituição e Tratados Internacionais que protegem as comunidades indígenas e seus territórios. Importante salientar que neste contexto de pandemia, faz-se fundamental refletir sobre o importante papel que os territórios tradicionais cumprem no equilíbrio da humanidade. Portanto, as terras indígenas, além de proteger o modo de vida dos povos indígenas, são patrimônio público federal e garantem o equilíbrio climático.
Aliás, não é novidade que os direitos dos povos indígenas estejam em constantes disputas no campo político e judicial. Desde o período colonial, vários expedientes normativos foram emitidos tendo por objeto a posse desses territórios. Na atualidade são muitos os argumentos utilizados para impedir o reconhecimento formal de uma terra indígena. Entretanto, sem dúvida, o mais utilizado é a tese do “marco temporal”. Na mesma semana que o STF analisa este processo, o Congresso Nacional agiliza a aprovação do Projeto de Lei (PL) n. 490/2007, que visa institucionalizar, pela via legislativa, o marco temporal.
Importa lembrar que no mês de maio de 2020, atendendo a um pedido incidental feito pela Comunidade Indígena Xokleng e outras organizações indígenas e indigenistas, o ministro do STF, Luiz Edson Fachin, por meio de decisão fundamentada, suspendeu todas as ações judiciais de reintegrações de posse ou anulação de processos de demarcação de terras indígenas enquanto durar a pandemia de Covid-19 ou até o julgamento final do Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, com repercussão geral reconhecida (Tema n.º 1.031). Neste mesmo processo, o ministro relator também suspendeu os efeitos do Parecer n.º 001 da Advocacia-Geral da União (AGU) e determinou que a Fundação Nacional do Índio (Funai) “se abstenha de rever todo e qualquer procedimento administrativo de demarcação de terra indígena, com base no Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU”.
O citado Parecer n.º 001 da AGU vinha causando imensos prejuízos aos povos indígenas. Além de vincular todas as demarcações de terras ao que foi decidido no caso Raposa Serra do Sol, também pretendia fixar a data de 5 de outubro de 1988 como marco temporal para a demarcação das terras indígenas. Ou seja, as comunidades indígenas que não estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988, segundo essa tese, perderiam seus direitos territoriais.
E ainda, este parecer da AGU também estava sendo usado para rever processos de demarcação, fazendo com que a Procuradoria Especializada da Funai desistisse de vários processos judiciais, abrindo mão da defesa de comunidades indígenas e do próprio interesse da União– tendo em vista que Terra Indígena é bem público federal (Art. 20, inciso XI). Como consequência, comunidades indígenas estavam perdendo os processos e ficando sem defesa, o que fere o direito fundamental ao devido processo legal.
A suspensão do Parecer n.º 001 da AGU e o mérito desse processo será analisado pelo Pleno do STF no dia 30 de junho. Esse julgamento é muito importante para todos os povos indígenas do Brasil. Após séculos de violências, remoções forçadas e extermínio de povos inteiros, a Suprema Corte terá a oportunidade de fazer valer o artigo 231 da Constituição, que determina que as terras indígenas, utilizadas para as atividades produtivas e para a preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar dos povos indígenas, bem como aquelas que são necessárias para a reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, devem ser demarcadas e protegidas.
Esse é um direito fundamental, inalienável, indisponível e imprescritível. Foi essa a escritura pública que o Estado brasileiro assinou para os povos indígenas do Brasil.
O caso em questão, do povo Xokleng, é o mais emblemático no momento, tendo em vista que teve repercussão geral reconhecida. Trata-se do Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, interposto pela Funai, onde se busca manter reconhecido o território tradicional do povo Xokleng, em Santa Catarina. O processo se originou em uma ação de reintegração de posse requerida pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (FATMA), no ano de 2009. Na petição, a FATMA pretendia reaver área administrativamente declarada pelo Ministro de Estado da Justiça como de tradicional ocupação dos indígenas Xokleng, Kaigang e Guarani. Tanto em primeira instância, quanto na segunda, as decisões foram contrárias aos interesses dos indígenas, razão pela qual, o processo chegou ao Supremo por via do extraordinário. O recurso foi distribuído ao Ministro Edson Fachin e teve reconhecida a repercussão geral. O processo é tido pelo movimento indígena como emblemático, tanto que muitas organizações requereram ingresso no feito na qualidade de amicus curiae. São elas: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Conselho do Povo Terena, Aty Guasu Guarani Kaiowá, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Conselho Indigenista Missionário, dentre outros.
Teoria do Indigenato
A teoria do indigenato foi desenvolvida por João Mendes Junior. A subprocuradora-geral da República Deborah Duprat, aponta que essa tese teve início em conferência proferida na antiga Sociedade de Ethnografia e Civilização dos Índios, em 1902, quando o professor João Mendes Junior afirmou: “[…] já os philosophos gregos afirmavam que o indigenato é um título congenito, ao passo que a occupação é um título adquirido. Com quanto o indigenato não seja a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial, todos reconhecem que é, na phrase do Alv. de 1º de abril de 1680, ‘a primária, naturalmente e virtualmente reservada’, ou, na phrase de Aristóteles (Polit., I, n.º 8), – ‘um estado em que se acha cada ser a partir do momento do seu nascimento’. Por conseguinte, não é um facto dependente de legitimação, ao passo que a occupação, como facto posterior, depende de requisitos que a legitimem”.
O Alvará de 1º de abril de 1680, referido no texto, ao cuidar das sesmarias, ressalvou as terras dos índios, considerados “primários e naturais senhores delas”. Portanto, tem-se nesta norma o reconhecimento expresso do instituto do indigenato, como sendo um direito originário, anterior ao próprio Estado, anterior a qualquer outro direito. Nas palavras do professor José Afonso da Silva “o indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem”.
Neste sentido, a Constituição de 1988 adotou a teoria do indigenato ao reconhecer o direito originário dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas. Em recente julgamento ocorrido em 16 de agosto de 2017, o pleno do Supremo analisou as ACOs 362 e 366, ambas de relatoria do ministro Marco Aurélio Mello. Nos votos é possível extrair pontos importantes lançados pelos ministros, que deixam claro que o instituto do indigenato possui assento Constitucional.
A tese do marco temporal (fato indígena)
A tese jurídica do marco temporal não nasceu exatamente no âmbito do Poder Judiciário. Antes do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, esta intepretação jurídica era rotineiramente suscitada nos discursos parlamentares e de juristas que advogam para os interesses do capital. Cito por exemplo, o discurso do deputado federal Gervásio Silva (PFL-SC), proferido no dia 20 de outubro de 2005, intitulado “Acirramento de conflitos fundiários pela política de demarcação de terras indígenas da FUNAI no Estado”, discorreu: “[…] e é bom que se repita: a Constituição Federal de 1988 não fala em posse imemorial, mas em terras tradicionalmente ocupadas no presente e de habitação permanente […] à identificação de uma terra indígena, está completamente divorciado do entendimento atual do STF, externado pela Súmula 650-STF, que consolidou a jurisprudência sobre o reconhecimento de terras indígenas […] como todos sabem, esta súmula não reconhece a doutrina de posse imemorial e consagra o princípio jurídico da ocupação atual e permanente das terras tradicionais de ocupação indígena. Explicando que os supostos direitos da suposta comunidade indígena de Araçá só mereciam o abrigo constitucional se os índios lá estivessem em 05 de outubro de 1988”.
Ao que se percebe, essa interpretação restritiva aos direitos dos povos indígenas consistente no “marco temporal” nasceu justamente de uma leitura equivocada feita a partir da súmula 650 do STF, que preceitua “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”. Entretanto, é preciso fazer uma leitura dessa súmula em conexão com a matéria posta a julgamento que resultou na edição do citado verbete. O precedente da súmula 650 do STF, é o RE 219.983, tendo em vista o interesse da União na solução de ações de usucapião em terras situadas nos Municípios de Guarulhos e de Santo André, no estado de São Paulo, em vista do disposto no artigo 1º, alínea h, do Decreto-Lei 9.760/1946. Como bem salienta o jurista Roberto Lemos dos Santos Filho “é necessário que os operadores do direito atentem ao fato de que aplicação da Súmula 650-STF deve ser realizada aos casos específicos a que ela tem relação, vale dizer, usucapião de terras indígenas a que se refere o Decreto-Lei 9.760/1946”.
Ainda no âmbito do legislativo, cabe citar o Projeto de Lei (PL) 490/2007, de autoria do Dep. Homero Pereira que tem por objetivo alterar a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, também conhecido como Estatuto do Índio, propondo que as terras indígenas sejam demarcadas por lei, ou seja, que a demarcação passe pelo crivo do legislativo. O autor justifica a importância da proposição evidenciando que a “demarcação das terras indígenas extrapola os limites de competência da FUNAI, pois interfere em direitos individuais, em questões relacionadas com a política de segurança nacional na faixa de fronteiras, política ambiental e assuntos de interesse dos Estados da Federação e outros relacionados com a exploração de recursos hídricos e minerais”. Em 15 de maio de 2018, o Dep. Jerônimo Goergen apresentou parecer nesta proposição legislativa no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, propondo a instituição do marco temporal por meio de lei.
Nota-se que é uma clara iniciativa da bancada ruralista implementar o marco temporal pela via legislativa, como uma espécie de retorno ao nicho de onde nasceu, mas agora com precedentes judiciais. No âmbito de discussão da tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, verifica-se de forma reincidente os parlamentares se valerem do argumento do marco temporal para capitanear apoio à aprovação dessa proposta.
Entretanto, foi no âmbito do judiciário que o marco temporal encontrou terreno fértil, enraizando-se e alastrando-se por toda a estrutura. Seus frutos são decisões liminares, sentenças e acórdãos anulando demarcações de terras indígenas e determinando o despejo de comunidades inteiras. No ano de 2009, por ocasião do julgamento da Petição 3.388, no STF, aparece pela primeira vez, no âmbito no Poder Judiciário, a tese jurídica denominada “marco temporal”. Segundo esta interpretação jurídica, os povos indígenas só teriam direito às terras que estivessem ocupando no dia 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Dessa decisão proferida, tanto as comunidades indígenas quanto o Ministério Público Federal interpuseram recurso de embargos de declaração, buscando com isso, uma nova manifestação da Corte, para se manifestar se as condicionantes se estendiam automaticamente às outras terras ou não. No ano de 2013, o Supremo analisou os recursos de embargos opostos, decidindo que as condicionantes do caso “não vincula(m) juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas (…). A decisão vale apenas para a terra em questão”.
Parecer 001/2017 da AGU: um duro golpe aos direitos indígenas
Como dito, em 2009, o STF fixou as denominadas “salvaguardas institucionais às terras indígenas” no acórdão proferido no julgamento da Pet. n.º 3.388/RR (caso Raposa Serra do Sol). Instaurou-se o debate sobre se essas “salvaguardas” ou “19 condicionantes” deveriam ser seguidas em todos os processos de demarcação de terras indígenas. Ato seguinte, no ano de 2012, foi editado a Portaria de n.º 303 pela Advocacia Geral da União (AGU) com o propósito de “normatizar” a interpretação e aplicação das 19 condicionantes. Em 25 de julho de 2012, a Portaria AGU n.º 308 suspendeu o início da vigência da Portaria n.º 303/2012 em razão da oposição de diversos embargos de declaração ao acórdão do STF na Pet. n.º 3.388/RR e de um intenso processo de mobilização dos povos indígenas e de organizações sociais. Em 17 de setembro do mesmo ano, uma nova portaria, a Portaria n.º 415 da AGU, estabeleceu como termo inicial da vigência da Portaria n.º 303 o dia seguinte ao da publicação do acórdão a ser proferido pelo STF nos referidos embargos.
Em 2013 o STF analisou os embargos opostos no caso da Pet. n.º 3.388/RR e decidiu que as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol “não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas (…). A decisão vale apenas para a terra em questão”.
Após a publicação do acórdão do STF nos embargos de declaração, a AGU publicou a Portaria n.º 27 de 07 de fevereiro de 2014, determinando à Consultoria-Geral da União e à Secretaria Geral de Contencioso a análise de adequação do conteúdo da Portaria n.º 303/2012 aos termos da decisão final do STF. Diversos órgãos da Administração Pública (FUNAI, AGU, PFE/FUNAI, CONJUR/MJ/CGU/AGU) se envolveram em uma controvérsia sobre a vigência e eficácia da Portaria em questão. Em 11 de maio de 2016, o Advogado-Geral da União, por meio do Despacho n.º 358/2016/GABAGU/AGU, determinou que a Portaria n.º 303/2012 deveria permanecer suspensa até conclusão dos estudos requeridos por meio da Portaria n.º 27/2014.
A partir de 2016, com a ascensão de Michel Temer à Presidência da República, iniciou-se um acelerado retrocesso dos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil. Em maio de 2017, quando o ex-presidente da Funai, Sr. Antônio Fernandes Toninho Costa entregou o cargo, acusando o ex-Ministro da Justiça de agir em favor de um lobby conservador de latifundiários e outros interesses da bancada ruralista, inclusive impondo indicações políticas dentro da Funai, o órgão passou a ser dirigido por um general do Exército. A despeito de protestos do movimento indígena nacional, assumiu a presidência da Funai o general Franklimberg Ribeiro de Freitas. Empossado no cargo, Sr. Freitas assinou uma série de medidas controversas, particularmente no que diz respeito à perspectiva de assimilação de povos indígenas, escondida atrás do argumento do desenvolvimento econômico. Enquanto isso, o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) ficou inoperante, corroborado pela falta de interesse do Ministério da Justiça em estabelecer um diálogo com os povos indígenas.
Foi neste contexto que, em julho de 2017, o Ministério da Justiça estabeleceu um grupo de trabalho (Portaria n.º. 541/2017 do Ministério da Justiça), com vários representantes das forças de segurança e sem a participação de representantes indígenas, para elaborar medidas visando à integração desses povos. Depois de críticas severas por parte do movimento indígena e de organizações da sociedade civil, o ato foi substituído por um similar (Portaria n.º 546/2017 do Ministério da Justiça), sob a justificativa de que o objetivo não era assimilação, mas a organização de povos indígenas.
No dia 20 de julho de 2017 foi publicado no Diário Oficial da União o Parecer n.º 01/2017/GAB/CGU/AGU o qual obriga a Administração Pública Federal a aplicar as 19 condicionantes que o STF estabeleceu na decisão da Pet. n.º 3.388/RR a todas as terras indígenas. O Parecer tem como objetivo, além de determinar a observância direta e indireta do conteúdo das 19 condicionantes, institucionalizar a tese do “marco temporal”, segundo a qual os povos indígenas só teriam o direito às terras que estivessem ocupando na data de 05 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal.
A pretexto de normatizar a atuação da Administração Pública Federal e uniformizar a interpretação constitucional a respeito do processo demarcatório de terras indígenas, o que o Parecer n.º 01/2017 da AGU fez na verdade foi conceder efeito vinculante e automático à decisão do STF, quando este próprio proibiu essa possibilidade.
Na prática este parecer vincula todos os órgãos da Administração Pública Federal (direta e indireta), atingindo notadamente a Funai e a Procuradoria Especializada da Funai. Os efeitos são extremamente negativos porque imediatamente a Funai começou a reanalisar vários procedimentos de demarcação de terras indígenas de todo o país.
Outros processos que já estavam na Casa Civil e Ministério da Justiça, em estágio avançado, foram devolvidos à Funai para serem reanalisados. No âmbito da própria AGU, muitos advogados da União que atuam na defesa dos interesses da União e da Funai, pois as terras indígenas são bens da União, tiveram suas prerrogativas de atuação tolhidas. Em muitos casos, os procuradores da Funai foram obrigados a desistir de fazer a defesa judicial de muitas comunidades indígenas, sob pena de sofrerem procedimento disciplinar. Sem dúvida, este parecer gestado pelo setor ruralista no âmbito do governo de Michel Temer, trouxe serias consequências aos direitos e interesses dos povos indígenas. Tal parecer foi editado justamente no momento em que Michel Temer precisava do apoio da bancada ruralista para impedir a admissibilidade de denúncia contra si no parlamento brasileiro. A Apib chegou a protocolar representação na Procuradoria-Geral da República, mas o caso foi arquivado.
Pontos importantes do voto do ministro relator Luiz Edson Fachin
O departamento jurídico da APIB preparou nota abordando os principais pontos do voto do ministro relator Luiz Edson Fachin. Em seu voto, o ministro relator afirmou que “está em julgamento a tutela do direito à posse de terras pelas comunidades indígenas, substrato inafastável do reconhecimento ao próprio direito de existir dos povos indígenas.”
Ainda, não foi acolhida, por Fachin, a tese do “marco temporal” de ocupação. Segundo essa teoria, somente indígenas que estivessem nas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, teriam direito à demarcação de suas terras. Proferiu o relator: “Entender-se que a Constituição solidificou a questão ao eleger um marco temporal objetivo para a atribuição do direito fundamental a grupo étnico significa fechar-lhes uma vez mais a porta para o exercício completo e digno de todos os direitos inerentes à cidadania”.
A respeito do “marco temporal” e sobre os indígenas que vivem em isolamento voluntário, o ministro questionou: “estando completamente alijadas do modo de vida ocidental, de que modo farão prova essas comunidades de estarem nas áreas que ocupam em 05 de outubro de 1988?”
Neste sentido, é incontroverso que a tese do “marco temporal” não merece prosperar, uma vez que as Constituições brasileiras desde muito antes da promulgação da Carta Magna asseguravam o direito de posse dos indígenas em seus territórios. Em seu voto, o ministro resgatou o texto dos dispositivos das mesmas:
Constituição de 1934: Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.
Constituição de 1937: Art. 154. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porém, vedada a alienação das mesmas.
Constituição de 1946: Art. 216. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.
Constituição de 1967: Art. 186. É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes.
Emenda nº 1/1969: Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades nelas existentes. § 1º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas. § 2º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a Fundação Nacional do Índio.
Logo, importa compreender a demasiada relevância de fazer valer o pensamento de que o direito originário da posse de terras por parte dos indígenas se sobrepõe a linearidade do tempo estabelecido na tese do “marco temporal”. E neste sentido, a proteção constitucional à posse indígena se verifica desde a Carta de 1934, e “tem relevo diversas formas e espécies de reconhecimento legislativo da ocupação indígena, desde a época da Colônia.”
Sobre o autor: Luiz Henrique Eloy Amado é Terena da aldeia Ipegue (MS), Coordenador Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Pós-doutor na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), França.