22/out/2020
A União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) e a Associação dos Kanamari do Vale do Javari (Akavaja) vêm a público externar sua extrema preocupação com a chegada do coronavírus na aldeia Jarinal, no extremo leste da nossa terra indígena. O primeiro caso de contaminação foi confirmado pela Sesai e expõe o quão despreparado está o Governo para lidar com essa pandemia em nosso território.
A aldeia Jarinal, onde vivem os Kanamari e os Tson wük Dyapah, este povo de recente contato, está localizado no alto curso do rio Jutaí, lugar de grande concentração de diferentes grupos de índios isolados. Também é nessa mesma região que nós estamos denunciando a 5 meses a volta de balsas garimpeiras ilegais na área de ocupação dos índios isolados Korubo e Warikama Dyapah. Diante da negligência do Governo Federal para a situação levamos as provas de nossa denúncia à imprensa1 e, mesmo assim, nada foi feito até agora.
Devemos ressaltar que existe uma ação judicial, de grande repercussão, que aborda a região leste da Terra Indígena (TI) Vale do Javari, exatamente na bacia do rio Jutaí. É a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 movida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e partidos políticos no Supremo Tribunal Federal – STF. No início do último mês de agosto, por unanimidade, o Plenário do STF referendou a liminar do Ministro Luís Roberto Barroso que determinava que o Governo Federal adote providências urgentes para evitar o contágio pelo novo coronavírus entre indígenas no país. Dois dos pedidos da ação da APIB, acatados pelo STF, dizem respeito exclusivamente a proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato. São eles: a criação de barreiras sanitárias nas terras indígenas com a presenças desses povos e a criação da Sala de Situação para deliberações das estratégias e ações para proteção dos índios isolados e dos de recente contato.
A Univaja subsidiou a APIB com relevantes informações sobre a importância e urgência da barreira sanitária a serem executadas em nosso território, inclusive com especial atenção a retirada do garimpo ilegal das proximidades do Jarinal e dos índios isolados no rio Jutaí. O excelentíssimo Ministro Luís Roberto Barroso determinou a inclusão da TI Vale do Javari na lista de Terras Indígenas “prioridade 1” para implementação das barreiras sanitárias. O prazo de implementação pela União era dia 30/09/2020 e até agora nem sinal de barreira sanitária e de acampamento de quarentena para os Kanamari no rio Jutaí e em outras localidades importantes do Vale do Javari.
Não aceitaremos o discurso de alguns agentes governamentais locais tentando justificar “onde não é mais necessário instalar barreiras sanitárias”, insistindo em descumprir a decisão do STF. Também não aceitaremos que tente se culpar o povo Kanamari por essa contaminação, como a própria Sesai fez na chegada do coronavírus no Vale do Javari em junho/2020. Alertamos diversas vezes às autoridades que o desabastecimento dessa aldeia de materiais de caça, pesca e alguns gêneros alimentícios, levariam os Kanamari de lá até a cidade mais próxima, no caso, Eirunepé- AM. Sem a devida assistência e preparo para tal situação previsível, foi aberta mais uma porta de contaminação. Estamos mantendo contato pela radiofonia com os Kanamari no Jarinal para ter mais informações sobre como se deu a contaminação.
A situação exige uma atuação rápida e organizada para conter o surto e isolar os doentes para tratamento. Também é urgente que o STF não permita que o Governo protele ainda mais a execução da decisão proferida por seu Plenário na ADPF 709. Enquanto se dialoga no papel, o coronavírus vai fazendo mais vítimas em nosso território.
Atalaia do Norte – AM, 21 de agosto de 2020.
As Coordenações da UNIVAJA e da AKAVAJA
22/out/2020
Justiça Federal em Mato Grosso do Sul (MS) emitiu, na primeira quinzena de outubro, duas decisões favoráveis à continuidade do processo de demarcação da Terra Indígena (TI) Cachoeirinha, localizada nos municípios de Miranda e Aquidauana. A portaria que declara os limites e a demarcação da área tradicionalmente ocupada por indígenas do povo Terena foi publicada em 2007 e, agora, cabe à Fundação Nacional do Índio (Funai) realizar as visitas técnicas para que seja feita a demarcação física da área, com a fixação de marcos e placas e (re)avaliação de benfeitorias.
No entanto, de acordo com a Funai, os ocupantes dos imóveis rurais apresentam resistência ao ingresso dos técnicos, impedindo a continuidade dos trabalhos demarcatórios. Uma das decisões obriga 55 produtores rurais a permitirem o acesso de técnicos da Funai aos imóveis rurais a fim de promover a vistoria e a avaliação da área. Na decisão, a JF destaca que o processo administrativo demarcatório obedeceu a todas as regras legais e que a Funai deseja apenas cumprir o que determina a portaria de demarcação.
A segunda decisão nega pedido ajuizado pela Estância Portal da Miranda Agropecuária e por Roberto Pacheco de Angelis, que pleiteava a suspensão do processo demarcatório da TI e a declaração de posse e propriedade integral do imóvel rural de 14,7 mil hectares, dos quais 4,1 mil constam no relatório antropológico elaborado pela Funai como área de ocupação tradicional indígena. Na decisão, a JF ressalta que a tradicionalidade da ocupação da terra pelos indígenas apontada no trabalho realizado por antropólogo a serviço da Funai foi confirmada por laudo antropológico produzido a pedido da própria Justiça Federal.
Caso antigo – O processo demarcatório da Terra Indígena Cachoeirinha se arrasta há 38 anos, desde que foi iniciado em 1982. Trata-se da revisão dos limites de uma área de 2.660 ha, conforme delimitado pelo Marechal Cândido Rondon na primeira década do século XX, para uma área de 36.288 ha e perímetro de 100 km. Os estudos antropológicos para identificação da área indígena foram realizados e culminaram com a edição da Portaria nº 791/2007 do Ministério da Justiça, que estabeleceu os limites da Terra Indígena Cachoeirinha, declarou-a como sendo de posse permanente do grupo indígena Terena, determinando, ainda, a demarcação física.
Em setembro de 2019, o Ministério Público Federal em Campo Grande obteve sentença judicial com antecipação dos efeitos (espécie de liminar) que determinava prazo de 18 meses para os procedimentos finais de demarcação da TI Cachoeirinha. No entanto, conforme explicado acima, a Funai alega dificuldades de acesso aos imóveis rurais em questão.
Enquanto a demarcação em si não for efetivada, permanecem os índios sem a garantia de posse das terras, aumentando as disputas internas nas aldeias em razão do pequeno espaço, e produtores rurais sem segurança jurídica, diante de um procedimento praticamente parado no âmbito da Funai.
22/out/2020
Brasília – O processo que definirá os rumos das demarcações das terras indígenas no Brasil está pronto para ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental aos povos indígenas: o direito à terra.
Há duas teses em disputa: de um lado, a chamada “teoria do indigenato”, que reconhece o direito territorial dos povos indígenas como “originário”, segundo os termos da Constituição; do outro lado, está uma proposta que restringe os direitos desses povos às suas terras ao reinterpretar a Constituição com base na tese do chamado ‘marco temporal’. Nessa interpretação, defendida por ruralistas, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição, ou que, nessa data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.
Entenda o caso
Tramita no STF um pedido de reintegração de posse (Recurso Extraordinário 1.017.365) movido pela Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Farma) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo a Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, área reivindicada e já identificada como parte de seu território tradicional, também habitado por populações Guarani e Kaingang.
O Recurso teve a repercussão geral reconhecida pelo plenário do STF em 2019. Isso significa que o que for julgado nesse caso servirá para fixar uma tese para todos os casos envolvendo demarcações de terras indígenas, em todas as instâncias do judiciário.
O que está em jogo?
Por isso, a decisão da Suprema Corte irá impactar o futuro de centenas de populações indígenas, já que a aplicação do marco temporal pode dificultar ainda mais as demarcações, indispensáveis à sobrevivência desses povos, à pacificação de conflitos territoriais históricos, além de coibir a violência resultante de invasões e atividades ilícitas, como grilagem de terras, garimpo e extração madeireira.
A existência dos povos indígenas isolados também estará ainda mais ameaçada caso a votação seja favorável à tese do marco temporal. Isso porque, por seu modo de vida nômade e avesso ao contato, é impossível comprovar a presença desses grupos em 5 de outubro de 1988 nas terras que hoje habitam ou que estivessem reivindicando formalmente o reconhecimento de seus territórios. O Estado brasileiro até hoje não conseguiu confirmar exatamente quantos são e onde estão essas comunidades especialmente vulneráveis.
Na avaliação de indigenistas, juristas, lideranças indígenas e do Ministério Público Federal (MPF), o marco temporal é uma tese perversa, pois legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar.
“Essa posição ainda ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos. É por esse motivo que o mote para a campanha de mobilização indígena para derrubar a tese do marco temporal é: “Nossa história não começa em 1988”, explica Rafael Modesto, advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
O julgamento foi colocado em pauta pelo presidente do Supremo, o ministro Luiz Fux, e será realizado de forma telepresencial, devido a pandemia do novo coronavírus. As partes terão até 15 minutos para se manifestar, já os amici curiae – amigos da corte -, terão ao todo, 30 minutos para sustentação oral.
21/out/2020
Leia a carta da Articulação dos Povos indígenas da Região Sul – Arpin Sul aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Em nome dos povos indígenas do Brasil. o documento chama atenção à garantia do direito originário ao território e, portanto, ao direito de existir.
OS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS NÃO NASCEM EM 05 DE OUTUBRO DE 1988, NASCEM ANTES DO ESTADO BRASILEIRO.
No próximo dia 28 de outubro de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF), julgará a Ação que vai trazer grandes consequências para os povos tradicionais do Brasil, a nós Indígenas. A referida Ação declarará se nossos Direitos à terra nascem no dia 05 de outubro de 1988, ou se realmente são originários, como prescreve o artigo 231 da Constituição Federal.
Para nós, Povos Indígenas, está bem clara a norma, pois estamos neste Brasil, muito antes da constituição do Estado brasileiro, portanto, nosso direito é originário, e dizer o contrário, é institucionalizar a política genocida, é dizer que não existíamos antes de 05 de outubro de 1988, é jogar no esquecimento 520 anos de sobrevivência, de luta, de história, de conquistas. Relembrando que nestes mais de 500 anos de história, a grande maioria dos Povos Indígenas, do Norte ao Sul, de Leste ao Oeste deste Brasil tiveram que sair de suas moradas, FORÇADAMENTE, muitas vezes expulsos a bala, outras pelas próprias ações do Estado, por isso em 05 de outubro de 88, muitas de nossas Terras já estavam invadidas por colonizadores. Dizer que nossos Direitos nascem em 05 de outubro de 1988, é compactuar com a ideia colonialista, que chegou ao Brasil em 1500, exterminando, matando, roubando terra, ouro, filhos e filhas para escravizar. A tese do marco temporal é isto, por isso não serve para nós Povos Indígenas.
Nós, Povos Indígenas, somos desta Terra, temos nossas raízes fixadas muito antes da chegada dos europeus colonizadores, então nossos direitos também estão com as raízes cravadas na história de cada Povo Indígena, por isso DECLARAMOS, NÃO AO MARCO TEMPORAL. Nossos antepassados lutaram, viveram e morreram pelo nosso direito à terra, e a política do agronegócio, do desmatamento, tenta tornar Lei a forma de nos retirar a Terra. Hoje será a Terra, amanhã a educação, depois a saúde, por fim o nosso direito de existir. Dessa forma que DECLARAMOS, VEEMENTEMENTE, NÃO AO MARCO TEMPORAL. SIM AO DIREITO ORIGINÁRIO SOBRE AS TERRAS INDÍGENAS. NÃO AO MARCO TEMPORAL. SIM A VIDA. NÃO AO MARCO TEMPORAL. SIM A CULTURA. NÃO AO MARCO TEMPORAL. SIM AO DIREITO DE EXISTIR.
Povos Indígenas da Região Sul, outubro de 2020
20/out/2020
Artigo de Luiz Eloy Terena, assessor jurídico da Apib
O julgamento mais importante sobre as terras indígenas está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF). No próximo dia 28 de outubro, a Suprema Corte irá analisar o recurso extraordinário n. 1.017365, da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que discute a posse da Terra Indígena Ibirama Laklaño, do povo Xokleng, localizada em Santa Catarina.
O Supremo terá que decidir sobre o estatuto jurídico das terras indígenas. Isto porque, estarão em análise duas teses jurídicas: a) a teoria do indigenato e b) a tese do marco temporal.
A teoria do indigenato consiste no fato de que os povos indígenas têm direito aos seus territórios tradicionalmente ocupados, conforme expresso no artigo 231 da Constituição brasileira, não podendo haver nenhuma limitação a este direito, devendo o poder público federal demarcar e proteger todas as terras. Essa tese remonta ao período colonial, onde as leis que foram editadas, respeitaram a posse dos povos originários, como senhores naturais de suas terras.
Já a tese do marco temporal restringe os direitos indígenas e é defendida pelos ruralistas, representados pela bancada ruralista no Congresso Nacional Brasileiro. Para eles, os povos indígenas só têm direito as terras que estavam ocupando no dia 05 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. Além de limitar o direito das comunidades indígenas, essa tese visa anistiar os crimes cometidos contra os indígenas, especialmente aqueles perpetrados durante o período da ditadura militar. Neste período, muitas terras indígenas, consideradas originalmente como terras públicas, foram invadidas e griladas.
A Constituição Federal completou 32 anos e, mesmo assim, muitas comunidades indígenas aguardam a demarcação de suas terras desde então. O recente Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas (2020), divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), apontou de forma inequívoca que das 1.298 terras indígenas no Brasil, 829 (63%) apresentam alguma pendência por parte do Estado para a finalização de seu processo demarcatório e o registro como território tradicional indígena na Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Destas 829, um total de 536 terras (64%) não teve ainda nenhuma providência adotada pelo Estado. Ou seja, o atual presidente da república, além de ter cumprido sua promessa de não demarcar um centímetro de terra indígena, atuou por meio do Ministério da Justiça, na qual devolveu 27 processos de demarcação à Fundação Nacional do Índio (Funai) para que fossem revistos, no primeiro semestre de 2019.
Resumo do caso
No ano de 2009, a Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina – FATMA entrou com ação de reintegração de posse em face da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e do grupo indígena Xokleng. A Fundação estadual alegou ser legítima possuidora de uma área de 80.006,00m² (oitenta mil e seis metros quadrados), localizada na Linha Esperança-Bonsucesso, distrito de Itaió (SC), que exercia a posse mansa, pacífica e ininterrupta por mais de sete anos, e, que essa reserva teria sido invadida pelos indígenas.
Há época, a FUNAI ofereceu contestação, refutando a tese inicial e demonstrando que a área da qual a autora se diz proprietária está abrangida pelos efeitos da Portaria nº 1182/2003 do Ministério da Justiça, que declarou de posse permanente dos grupos indígenas Xokleng, Kaingang e Guarani a Terra indígena Ibirama-La Klãnõ, com superfície aproximada de 37.108ha (trinta e sete mil cento e oito hectares), localizada nos Municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, José Boiteux e Vitor Meireles, no estado de Santa Catarina.
A ação foi julgada procedente na primeira instância e a decisão mantida no Tribunal Regional Federal (TRF4). Após este percurso, a ação chegou ao Supremo por meio de recurso interposto pela Funai. O relator, ministro Edson Fachin, ao admitir o recurso, apontou que é necessário que se fixe uma tese para resolver sobre a “definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena, nos termos do artigo 231 do texto Constitucional”.
O direito indígena na Constituição de 1988
O texto constitucional de 88 foi categórico ao vaticinar em seu artigo 231 “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Não há dúvida, portanto, que o constituinte originário elegeu a tese do indigenato.
Os direitos dos povos indígenas aos seus territórios possuem respaldo constitucional antes mesmo de 1988. Na Carta Constitucional de 1934 é reconhecida a posse dos indígenas das terras que tradicionalmente ocupam: “Art. 129. Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”.
Seguindo a ordem Constitucional, a Lei n. 6.001/73, também conhecida como Estatuto do Índio, previu em seu art. 65 que o “Poder Executivo fará, no prazo de cinco anos, a demarcação das terras indígenas, ainda não demarcadas”. Ou seja, até 1978 todas as terras indígenas deveriam ser demarcadas. Sobreveio a Constituição de 1988 e novamente impôs o mesmo prazo vaticinando no art. 67 da ADCT, que a “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”.
A teoria do indigenato foi desenvolvida por João Mendes Junior. A subprocuradora-geral da República Déborah Duprat, aponta que essa tese teve início em conferência proferida na antiga Sociedade de Ethnografia e Civilização dos Índios, em 1902, quando o professor João Mendes Junior afirmou: “[…] já os philosophos gregos afirmavam que o indigenato é um título congenito, ao passo que a occupação é um título adquirido. Com quanto o indigenato não seja a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial, todos reconhecem que é, na phrase do Alv. de 1º de abril de 1680, ‘a primária, naturalmente e virtualmente reservada’, ou, na phrase de Aristóteles (Polit., I, n. 8), – ‘um estado em que se acha cada ser a partir do momento do seu nascimento’. Por conseguinte, não é um facto dependente de legitimação, ao passo que a occupação, como facto posterior, depende de requisitos que a legitimem”.
O Alvará de 1º de abril de 1680, referido no texto, ao cuidar das sesmarias, ressalvou as terras dos índios, considerados “primários e naturais senhores delas”.
Portanto, tem-se nesta norma o reconhecimento expresso do instituto do indigenato, como sendo um direito originário, anterior ao próprio Estado, anterior a qualquer outro direito. Nas palavras do professor José Afonso da Silva “o indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem”.
Neste sentido, a Constituição de 1988 adotou a teoria do indigenato ao reconhecer o direito originário dos povos indígenas as terras tradicionalmente ocupadas.
Sobre o autor: Luiz Henrique Eloy Amado é Terena da aldeia Ipegue (MS), advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Pós-doutorando na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, França.
19/out/2020
Artigo de Luiz Eloy Terena, assessor jurídico da Apib
O futuro das terras indígenas está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro presidente Luiz Fux incluiu na pauta de julgamento do dia 28 de outubro, o Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, com repercussão geral reconhecida. Também conhecido como “caso Xokleng”, a decisão servirá de parâmetro para a demarcação de todas as terras indígenas do Brasil.
Os povos indígenas vivenciam um contexto político muito adverso na gestão do governo Bolsonaro, primeiro presidente eleito declaradamente contrário aos povos indígenas. Desde que tomou posse, assinou diversos atos que contrariam a Constituição e Tratados Internacionais que protegem as comunidades indígenas e seus territórios. Importante salientar que neste contexto de pandemia, faz-se fundamental refletir sobre o importante papel que os territórios tradicionais cumprem no equilíbrio da humanidade. Portanto, as terras indígenas, além de proteger o modo de vida dos povos indígenas, são patrimônio público federal e garantem o equilíbrio climático.
Aliás, não é novidade que os direitos dos povos indígenas estejam em constantes disputas no campo político e judicial. Desde o período colonial, vários expedientes normativos foram emitidos tendo por objeto a posse desses territórios. Na atualidade são muitos os argumentos utilizados para impedir o reconhecimento formal de uma terra indígena. Entretanto, sem dúvida, o mais utilizado é a tese do “marco temporal”.
No início do mês maio de 2020, atendendo a um pedido incidental feito pela Comunidade Indígena Xokleng e outras organizações indígenas e indigenistas, o ministro do STF Edson Fachin, por meio de decisão fundamentada, suspendeu todas as ações judiciais de reintegrações de posse ou anulação de processos de demarcação de terras indígenas enquanto durar a pandemia de Covid-19 ou até o julgamento final do Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, com repercussão geral reconhecida (Tema n.º 1.031). Neste mesmo processo, o ministro relator também suspendeu os efeitos do Parecer n.º 001 da Advocacia-Geral da União (AGU) e determinou que a Fundação Nacional do Índio (Funai) “se abstenha de rever todo e qualquer procedimento administrativo de demarcação de terra indígena, com base no Parecer n.º 001/2017/GAB/CGU/AGU”.
O citado Parecer n.º 001 da AGU vinha causando imensos prejuízos aos povos indígenas. Além de vincular todas as demarcações de terras ao que foi decidido no caso Raposa Serra do Sol, também pretendia fixar a data de 5 de outubro de 1988 como marco temporal para a demarcação das terras indígenas. Ou seja, as comunidades indígenas que não estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988, segundo essa tese, perderiam seus direitos territoriais.
E ainda, este parecer da AGU também estava sendo usado para rever processos de demarcação, fazendo com que a Procuradoria Especializada da Funai desistisse de vários processos judiciais, abrindo mão da defesa de comunidades indígenas e do próprio interesse da União– tendo em vista que Terra Indígena é bem público federal (Art. 20, inciso XI). Como consequência, comunidades indígenas estavam perdendo os processos e ficando sem defesa, o que fere o direito fundamental ao devido processo legal.
A suspensão do Parecer n.º 001 da AGU e o mérito desse processo será analisado pelo Pleno do STF no dia 28 de outubro. Esse julgamento é muito importante para todos os povos indígenas do Brasil. Após séculos de violências, remoções forçadas e extermínio de povos inteiros, a Suprema Corte terá a oportunidade de fazer valer o artigo 231 da Constituição, que determina que as terras indígenas, utilizadas para as atividades produtivas e para a preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar dos povos indígenas, bem como aquelas que são necessárias para a reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, devem ser demarcadas e protegidas.
Esse é um direito fundamental, inalienável, indisponível e imprescritível. Foi essa a escritura pública que o Estado brasileiro assinou para os povos indígenas do Brasil.
O caso em questão, do povo Xokleng, é o mais emblemático no momento, tendo em vista que teve repercussão geral reconhecida. Trata-se do Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, interposto pela Funai, onde se busca manter reconhecido o território tradicional do povo Xokleng, em Santa Catarina. O processo se originou em uma ação de reintegração de posse requerida pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (FATMA), no ano de 2009. Na petição, a FATMA pretendia reaver área administrativamente declarada pelo Ministro de Estado da Justiça como de tradicional ocupação dos indígenas Xokleng, Kaigang e Guarani. Tanto em primeira instância, quanto na segunda, as decisões foram contrárias aos interesses dos indígenas, razão pela qual, o processo chegou ao Supremo por via do extraordinário. O recurso foi distribuído ao Ministro Edson Fachin e teve reconhecida a repercussão geral. O processo é tido pelo movimento indígena como emblemático, tanto que muitas organizações requereram ingresso no feito na qualidade de amicus curiae. São elas: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Conselho do Povo Terena, Aty Guasu Guarani Kaiowá, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Conselho Indigenista Missionário, dentre outros.
Teoria do Indigenato
A teoria do indigenato foi desenvolvida por João Mendes Junior. A subprocuradora-geral da República Déborah Duprat, aponta que essa tese teve início em conferência proferida na antiga Sociedade de Ethnografia e Civilização dos Índios, em 1902, quando o professor João Mendes Junior afirmou: “[…] já os philosophos gregos afirmavam que o indigenato é um título congenito, ao passo que a occupação é um título adquirido. Com quanto o indigenato não seja a única verdadeira fonte jurídica da posse territorial, todos reconhecem que é, na phrase do Alv. de 1º de abril de 1680, ‘a primária, naturalmente e virtualmente reservada’, ou, na phrase de Aristóteles (Polit., I, n.º 8), – ‘um estado em que se acha cada ser a partir do momento do seu nascimento’. Por conseguinte, não é um facto dependente de legitimação, ao passo que a occupação, como facto posterior, depende de requisitos que a legitimem”.
O Alvará de 1º de abril de 1680, referido no texto, ao cuidar das sesmarias, ressalvou as terras dos índios, considerados “primários e naturais senhores delas”. Portanto, tem-se nesta norma o reconhecimento expresso do instituto do indigenato, como sendo um direito originário, anterior ao próprio Estado, anterior a qualquer outro direito. Nas palavras do professor José Afonso da Silva “o indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. O indigenato é legítimo por si, não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação, como fato posterior, depende de requisitos que a legitimem”.
Neste sentido, a Constituição de 1988 adotou a teoria do indigenato ao reconhecer o direito originário dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas. Em recente julgamento ocorrido em 16 de agosto de 2017, o pleno do Supremo analisou as ACOs 362 e 366, ambas de relatoria do ministro Marco Aurélio Mello. Nos votos é possível extrair pontos importantes lançados pelos ministros, que deixam claro que o instituto do indigenato possui assento Constitucional.
A tese do marco temporal
A tese jurídica do marco temporal não nasceu exatamente no âmbito do Poder Judiciário. Antes do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, esta intepretação jurídica era rotineiramente suscitada nos discursos parlamentares e de juristas que advogam para os interesses do capital. Cito por exemplo, o discurso do deputado federal Gervásio Silva (PFL-SC), proferido no dia 20 de outubro de 2005, intitulado “Acirramento de conflitos fundiários pela política de demarcação de terras indígenas da FUNAI no Estado”, discorreu: “[…] e é bom que se repita: a Constituição Federal de 1988 não fala em posse imemorial, mas em terras tradicionalmente ocupadas no presente e de habitação permanente […] à identificação de uma terra indígena, está completamente divorciado do entendimento atual do STF, externado pela Súmula 650-STF, que consolidou a jurisprudência sobre o reconhecimento de terras indígenas […] como todos sabem, esta súmula não reconhece a doutrina de posse imemorial e consagra o princípio jurídico da ocupação atual e permanente das terras tradicionais de ocupação indígena. Explicando que os supostos direitos da suposta comunidade indígena de Araçá só mereciam o abrigo constitucional se os índios lá estivessem em 05 de outubro de 1988”.
Ao que se percebe, essa interpretação restritiva aos direitos dos povos indígenas consistente no “marco temporal” nasceu justamente de uma leitura equivocada feita a partir da súmula 650 do STF, que preceitua “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”. Entretanto, é preciso fazer uma leitura dessa súmula em conexão com a matéria posta a julgamento que resultou na edição do citado verbete. O precedente da súmula 650 do STF, é o RE 219.983, tendo em vista o interesse da União na solução de ações de usucapião em terras situadas nos Municípios de Guarulhos e de Santo André, no estado de São Paulo, em vista do disposto no artigo 1º, alínea h, do Decreto-Lei 9.760/1946. Como bem salienta o jurista Roberto Lemos dos Santos Filho “é necessário que os operadores do direito atentem ao fato de que aplicação da Súmula 650-STF deve ser realizada aos casos específicos a que ela tem relação, vale dizer, usucapião de terras indígenas a que se refere o Decreto-Lei 9.760/1946”.
Ainda no âmbito do legislativo, cabe citar o Projeto de Lei (PL) 490/2007, de autoria do Dep. Homero Pereira que tem por objetivo alterar a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, também conhecido como Estatuto do Índio, propondo que as terras indígenas sejam demarcadas por lei, ou seja, que a demarcação passe pelo crivo do legislativo. O autor justifica a importância da proposição evidenciando que a “demarcação das terras indígenas extrapola os limites de competência da FUNAI, pois interfere em direitos individuais, em questões relacionadas com a política de segurança nacional na faixa de fronteiras, política ambiental e assuntos de interesse dos Estados da Federação e outros relacionados com a exploração de recursos hídricos e minerais”. Em 15 de maio de 2018, o Dep. Jerônimo Goergen apresentou parecer nesta proposição legislativa no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, propondo a instituição do marco temporal por meio de lei.
Nota-se que é uma clara iniciativa da bancada ruralista implementar o marco temporal pela via legislativa, como uma espécie de retorno ao nicho de onde nasceu, mas agora com precedentes judiciais. No âmbito de discussão da tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, verifica-se de forma reincidente os parlamentares se valerem do argumento do marco temporal para capitanear apoio à aprovação dessa proposta.
Entretanto, foi no âmbito do judiciário que o marco temporal encontrou terreno fértil, enraizando-se e alastrando-se por toda a estrutura. Seus frutos são decisões liminares, sentenças e acórdãos anulando demarcações de terras indígenas e determinando o despejo de comunidades inteiras. No ano de 2009, por ocasião do julgamento da Petição 3.388, no STF, aparece pela primeira vez, no âmbito no Poder Judiciário, a tese jurídica denominada “marco temporal”. Segundo esta interpretação jurídica, os povos indígenas só teriam direito às terras que estivessem ocupando no dia 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Dessa decisão proferida, tanto as comunidades indígenas quanto o Ministério Público Federal interpuseram recurso de embargos de declaração, buscando com isso, uma nova manifestação da Corte, para se manifestar se as condicionantes se estendiam automaticamente às outras terras ou não. No ano de 2013, o Supremo analisou os recursos de embargos opostos, decidindo que as condicionantes do caso “não vincula(m) juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas (…). A decisão vale apenas para a terra em questão”.
Parecer 001/2017 da AGU: um duro golpe aos direitos indígenas
Como dito, em 2009, o STF fixou as denominadas “salvaguardas institucionais às terras indígenas” no acórdão proferido no julgamento da Pet. n.º 3.388/RR (caso Raposa Serra do Sol). Instaurou-se o debate sobre se essas “salvaguardas” ou “19 condicionantes” deveriam ser seguidas em todos os processos de demarcação de terras indígenas. Ato seguinte, no ano de 2012, foi editado a Portaria de n.º 303 pela Advocacia Geral da União (AGU) com o propósito de “normatizar” a interpretação e aplicação das 19 condicionantes. Em 25 de julho de 2012, a Portaria AGU n.º 308 suspendeu o início da vigência da Portaria n.º 303/2012 em razão da oposição de diversos embargos de declaração ao acórdão do STF na Pet. n.º 3.388/RR e de um intenso processo de mobilização dos povos indígenas e de organizações sociais. Em 17 de setembro do mesmo ano, uma nova portaria, a Portaria n.º 415 da AGU, estabeleceu como termo inicial da vigência da Portaria n.º 303 o dia seguinte ao da publicação do acórdão a ser proferido pelo STF nos referidos embargos.
Em 2013 o STF analisou os embargos opostos no caso da Pet. n.º 3.388/RR e decidiu que as condicionantes do caso Raposa Serra do Sol “não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas (…). A decisão vale apenas para a terra em questão”.
Após a publicação do acórdão do STF nos embargos de declaração, a AGU publicou a Portaria n.º 27 de 07 de fevereiro de 2014, determinando à Consultoria-Geral da União e à Secretaria Geral de Contencioso a análise de adequação do conteúdo da Portaria n.º 303/2012 aos termos da decisão final do STF. Diversos órgãos da Administração Pública (FUNAI, AGU, PFE/FUNAI, CONJUR/MJ/CGU/AGU) se envolveram em uma controvérsia sobre a vigência e eficácia da Portaria em questão. Em 11 de maio de 2016, o Advogado-Geral da União, por meio do Despacho n.º 358/2016/GABAGU/AGU, determinou que a Portaria n.º 303/2012 deveria permanecer suspensa até conclusão dos estudos requeridos por meio da Portaria n.º 27/2014.
A partir de 2016, com a ascensão de Michel Temer à Presidência da República, iniciou-se um acelerado retrocesso dos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil. Em maio de 2017, quando o ex-presidente da Funai, Sr. Antônio Fernandes Toninho Costa entregou o cargo, acusando o ex-Ministro da Justiça de agir em favor de um lobby conservador de latifundiários e outros interesses da bancada ruralista, inclusive impondo indicações políticas dentro da Funai, o órgão passou a ser dirigido por um general do Exército. A despeito de protestos do movimento indígena nacional, assumiu a presidência da Funai o general Franklimberg Ribeiro de Freitas. Empossado no cargo, Sr. Freitas assinou uma série de medidas controversas, particularmente no que diz respeito à perspectiva de assimilação de povos indígenas, escondida atrás do argumento do desenvolvimento econômico. Enquanto isso, o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) ficou inoperante, corroborado pela falta de interesse do Ministério da Justiça em estabelecer um diálogo com os povos indígenas.
Foi neste contexto que, em julho de 2017, o Ministério da Justiça estabeleceu um grupo de trabalho (Portaria n.º. 541/2017 do Ministério da Justiça), com vários representantes das forças de segurança e sem a participação de representantes indígenas, para elaborar medidas visando à integração desses povos. Depois de críticas severas por parte do movimento indígena e de organizações da sociedade civil, o ato foi substituído por um similar (Portaria n.º 546/2017 do Ministério da Justiça), sob a justificativa de que o objetivo não era assimilação, mas a organização de povos indígenas.
No dia 20 de julho de 2017 foi publicado no Diário Oficial da União o Parecer n.º 01/2017/GAB/CGU/AGU o qual obriga a Administração Pública Federal a aplicar as 19 condicionantes que o STF estabeleceu na decisão da Pet. n.º 3.388/RR a todas as terras indígenas. O Parecer tem como objetivo, além de determinar a observância direta e indireta do conteúdo das 19 condicionantes, institucionalizar a tese do “marco temporal”, segundo a qual os povos indígenas só teriam o direito às terras que estivessem ocupando na data de 05 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal.
A pretexto de normatizar a atuação da Administração Pública Federal e uniformizar a interpretação constitucional a respeito do processo demarcatório de terras indígenas, o que o Parecer n.º 01/2017 da AGU fez na verdade foi conceder efeito vinculante e automático à decisão do STF, quando este próprio proibiu essa possibilidade.
Na prática este parecer vincula todos os órgãos da Administração Pública Federal (direta e indireta), atingindo notadamente a Funai e a Procuradoria Especializada da Funai. Os efeitos são extremamente negativos porque imediatamente a Funai começou a reanalisar vários procedimentos de demarcação de terras indígenas de todo o país. Outros processos que já estavam na Casa Civil e Ministério da Justiça, em estágio avançado, foram devolvidos à Funai para serem reanalisados. No âmbito da própria AGU, muitos advogados da União que atuam na defesa dos interesses da União e da Funai, pois as terras indígenas são bens da União, tiveram suas prerrogativas de atuação tolhidas. Em muitos casos, os procuradores da Funai foram obrigados a desistir de fazer a defesa judicial de muitas comunidades indígenas, sob pena de sofrerem procedimento disciplinar. Sem dúvida, este parecer gestado pelo setor ruralista no âmbito do governo de Michel Temer, trouxe serias consequências aos direitos e interesses dos povos indígenas. Tal parecer foi editado justamente no momento em que Michel Temer precisava do apoio da bancada ruralista para impedir a admissibilidade de denúncia contra si no parlamento brasileiro. A Apib chegou a protocolar representação na Procuradoria-Geral da República, mas o caso foi arquivado.
Perspectiva do movimento ind
O movimento indígena tem resistido à aplicação do marco temporal. Há anos o Poder Judiciário se consolidou como uma arena de conflitos, no entendimento dos povos indígenas, que veem incidindo junto aos juízes e ministros dos tribunais. No ano de 2017, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), lançou a campanha “Nossa história não começa em 88”, com o nítido objetivo de fazer o contraponto ao argumento do marco temporal. A campanha foi lançada por conta do julgamento agendado no dia 16 de agosto, no Supremo Tribunal Federal. Estavam na pauta de julgamento três ações que tratavam do Parque Indígena do Xingu (MT), da Terra Indígena Ventarra (RS) e das terras indígenas dos povos Nambikwara e Pareci. Embora tais ações tratassem especificamente dessas terras, o entendimento dos ministros serviria de orientações para as demais terras do Brasil. Neste contexto, estava em negociação as articulações políticas de Temer para evitar seu afastamento da presidência. Os ruralistas do Congresso Nacional conseguiram emplacar sua pauta no governo federal. Michel Temer assinou, em julho, o Parecer 001/2017, da Advocacia Geral da União (AGU), obrigando todos os órgãos do Executivo a aplicar o “marco temporal” e a vedação à revisão dos limites de terras já demarcadas – inclusive visando influenciar o STF.
A Apib divulgou carta afirmando que “o marco temporal legitima e legaliza as violações e violências cometidas contra os povos até o dia 04 de outubro de 1988: uma realidade de confinamento em reservas diminutas, remoções forçadas em massa, tortura, assassinatos e até a criação de prisões”. Sonia Guajajara, coordenadora da Apib, afirmou que “aprovar o marco temporal significa anistiar os crimes cometidos contra esses povos e dizer aos que hoje seguem invadindo suas terras que a grilagem, a expulsão e o extermínio de indígenas é uma prática vantajosa, pois premiada pelo Estado brasileiro”.
As lideranças indígenas têm demonstrado uma capacidade qualificada de resistência na mobilização pela garantia de direitos. As instâncias estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário) constituem um elemento de análise por parte das lideranças que buscam compreender a sistemática da burocracia e operacionalidade da máquina administrativa. Essa tarefa assumida por parte das comunidades aperfeiçoa as formas de incidir juntos aos atores representativos dos poderes estatais. Isso é revelador de como o movimento indígena brasileiro, ao longo dos séculos, resistiu às ações estatais. Mas não uma resistência apenas defensiva, mas qualificada pelo protagonismo indígena que se apropriou e ressignificou elementos que antes eram estranhos à cultura indígena, mas que nos dias atuais são acionados pelas lideranças em suas reivindicações.
Outros casos no Supremo
Outra caso que está no Supremo refere-se à Terra Indígena Guyraroka, do povo Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul. Em 2014, a segunda turma analisou o RMS 29.087, e, por votação majoritária, deu provimento declarando a nulidade do processo administrativo de demarcação de TI Guyraroka, bem como da portaria n.º 3.219, de 7.10.2009, do Ministro de Estado da Justiça, com base na tese do marco temporal. A comunidade ingressou com Ação Rescisória (AR) 2686, visando reverter a decisão, tendo em vista a nulidade do processo que tramitou sem a participação dos maiores interessados na lide, bem como a inconstitucionalidade do marco temporal. A comunidade aguarda a decisão de admissibilidade da ação que já foi incluída na pauta de julgamento e retirada posteriormente.
Tem-se ainda, o processo da terra indígena Limão Verde, do povo Terena, de Mato Grosso do Sul. Em dezembro de 2014, a segunda turma analisou o Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n.º 803.462, e, aplicando o marco temporal, anulou a demarcação desta terra indígena, que havia sido demarcada e homologada em 2003. Após isto, a Comunidade Indígena Terena ingressou no feito, solicitando reanálise do caso e aguarda julgamento.
Sobre o autor: Luiz Henrique Eloy Amado é Terena da aldeia Ipegue (MS), advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ). Pós-doutorando na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, França.
17/out/2020
A Jornada Vidas Indígenas Importam, promovida pela Apib durante o mês de outubro, cumpriu agendas online em 6 países para pressionar governo brasileiro a cumprir leis que garantem direitos dos povos indígenas e proteção socioambiental.
No mês em que exaltamos a resistência indígena no mundo, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) construiu uma agenda internacional para pressionar o governo Bolsonaro e corporações internacionais no cumprimento de leis que garantem os direitos dos povos indígenas e a proteção socioambiental. A Jornada “Vidas Indígenas Importam” iniciou no dia 5 de outubro, quando se comemorou o aniversário de 32 anos da Constituição Federal, que representa um marco na garantia dos direitos dos povos.
Este ano, a Jornada “Vidas Indígenas Importam” buscou articular com ministros, parlamentares e membros de comissões de comércio sete pontos que compreendem medidas sobre a moratória de cinco anos ao desmatamento na Amazônia, aumento das penas para crimes ambientais e desmatamento, incluindo o congelamento de bens dos 100 piores criminosos, demarcação de terras indígenas e quilombolas e criação, regularização e proteção de Unidades de Conservação.
Para Kretã Kaingang, coordenador da Apib, a agenda virtual foi muito bem sucedida. “Conseguimos estabelecer um entendimento sobre o contexto que estamos vivendo no Brasil em todas as reuniões que tivemos, tanto sobre a crescente do autoritarismo do governo e instabilidade política quanto a destruição dos biomas e perseguição aos povos indígenas, com aumento das invasões nos territórios, Covid-19, queimadas e outras situações”, comenta.
Segundo o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), a destruição da Amazônia atingiu novos recordes no primeiro semestre de 2020 – uma área equivalente a 120 campos de futebol desaparece por hora. O Pantanal, o Cerrado e outras biomas brasileiros também enfrentam queimadas sem precedentes. Na contramão da resolução dos problemas, o governo tem diminuído os espaços de participação social, a exemplo do que ocorreu no Conselho Nacional do Meio Ambiente, presidido pelo ministro Ricardo Salles, expondo mais ainda o desmonte da política ambiental.
Durante as reuniões com países europeus, a Apib apresentou sete pontos de discussão que foram, no geral, bem recebidos e com respostas que indicam ações concretas. “Nenhum deles pode alegar que não sabe o que está acontecendo no Brasil e que não tem um roteiro de como agir porque nós oferecemos isso”, destaca Kretã. Além desse sucesso em passar uma mensagem muito clara e bem construída, relevante para tomada de ações e decisões, alguns países, principalmente Bélgica, Holanda e França, começaram a compor uma coalizão de “países da resistência ao tratado”, elaborando um documento de pré-ratificação focado nos ganhos para meio ambiente e Direitos Humanos.
A última reunião da agenda aconteceu nesta quinta (15) e coincidiu com o recebimento do Prêmio Internacional Letelier-Moffitt de Direitos Humanos, do Instituto de Estudos Políticos de Washington (EUA), pelo trabalho em defesa dos direitos dos povos indígenas do Brasil. A organização da primeira delegação de lideranças indígenas à Europa para a jornada Sangue Indígena: Nenhuma Gota a Mais em 2019 foi o destaque para o reconhecimento da entidade. A jornada percorreu 18 cidades de 12 países europeus denunciando a violação de direitos indígenas e de leis socioambientais.
15/out/2020
Mesmo com aumento de 27% nas candidaturas indígenas, ocupação de cargos no Executivo e no Legislativo ainda não têm presença significativa dos povos. A mobilização “Campanha Indígena – demarcando as urnas” busca mudar esse cenário apoiando cerca de 150 candidaturas.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lança, nesta quinta-feira (15), a mobilização Campanha Indígena. A iniciativa pretende ampliar a representação dos povos nas instâncias dos poderes legislativo e executivo em todo o país. O lançamento da Campanha ocorre a um mês do primeiro turno, mas as ações de fortalecimento de candidaturas indígenas iniciaram em agosto.
Desde 2017, a Apib constrói de forma mais direta ações para fortalecer candidaturas indígenas. Este ano a Campanha Indígena surge em parceria com a plataforma Candidate-se, da Mídia Ninja, e em conjunto com a Mídia Índia.
De caráter suprapartidário, a iniciativa compreende que a trajetória da liderança na defesa dos direitos indígenas e do reconhecimento dessas candidaturas pelos povos é mais relevante do que o partido ao qual o candidato está filiado e concorrendo às eleições. A realidade da política partidária, sobretudo nos milhares de municípios distantes de centros urbanos, é bem distinta dos contextos das grandes capitais. Muitas alianças locais podem ter contextos diversos às visões políticas partidárias em âmbito nacional.
O Brasil tem 2.177 candidaturas indígenas concorrendo às eleições 2020 – 0,4% do total. Este número é relativamente proporcional à população indígena brasileira, que representa 0,4% (900 mil) da população total brasileira (209 milhões de pessoas). Foi registrado um aumento de 27% das candidaturas indígenas em relação às eleições em 2016, que registraram 1.715 pessoas. O Estado com maior número de candidaturas é o Amazonas, com 493 candidaturas.
O aumento da população indígena na participação das eleições municipais é concomitante ao aumento dos ataques aos seus direitos em meio a pandemia de Covid-19. O primeiro índigena eleito no Brasil foi o cacique xavante Mário Juruna (PDT-RJ) em 1982, durante a ditadura militar quando muitos dos direitos indígenas também foram violados.
Segundo Dinaman Tuxá, um dos coordenadores executivos da Apib, o maior interesse na política institucional deve-se à ampliação do debate sobre a necessidade da representatividade dos povos indígenas e a defesa dos seus direitos nestes importantes ambientes de decisão. Tuxá ressalta ainda que “a pauta comum entre todos candidatos que é a retomada da demarcação dos territórios indígenas, ainda que tenham pontos de vista políticos distintos e sejam filiados a partidos diversos”.
O fortalecimento de campanhas de candidatos indígenas é uma passo necessário para ampliar a representatividade dos povos originários nos espaços políticos, por isso é uma ação central para o movimento indígena. A democracia necessariamente implica em participação. Logo, a diversidade nas instituições que constituem espaços de tomada. de decisões é fundamental, pois impactam a vida de todo um povo.
Emergência indígena
As Eleições Municipais de 2020 já estão marcadas pelo momento histórico que vivemos: a pandemia. O alastramento do novo coronavírus pelo mundo trouxe preocupações quanto às medidas do poder público diante de uma crise sanitária global. O descaso com povos indígenas e risco de contaminação causado por aglomerações de cunho político foram situações que marcaram os últimos seis meses.
A pandemia evidenciou as desigualdades sociais que, historicamente, assolam o país. Os povos indígenas foram fortemente impactados pela disseminação da Covid-19. Mesmo com uma pandemia em curso, as violências contra os povos indígenas não cessaram. Garimpeiros, madeireiros, fazendeiros e entre outros agentes da exploração e destruição do meio ambiente se sentiram motivados pelos discursos e ações de agentes do poder público. Enquanto “a boiada passa”, os ataques aumentam de todas as formas, inclusive por meio de processos jurídicos com aval do Executivo, como a tese do Marco Temporal.
O que é?
Ação de fortalecimento da participação indígena no processo eleitoral
Quem realiza?
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Plataforma Candidate-se, da Mídia Ninja, e Mídia Índia
Qual nosso objetivo?
Ampliar a representação indígena nos poderes legislativo e executivo no Brasil
Como?
Por meio de suporte jurídico e de comunicação aos candidatos.
O candidato pode se inscrever por meio da plataforma ou pode ser indicado pelo movimento indígena em reconhecimento à sua liderança.
Onde?
campanhaindigena.org
13/out/2020
O Supremo Tribunal Federal (STF) pode decidir ou começar a decidir o futuro das demarcações das Terras Indígenas (TIs) no mesmo mês que a Constituição completa 32 anos. O julgamento da reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra a demarcação da TI Ibirama-Laklanõ, estava previsto para acontecer dia 28 de outubro, mas foi tirada de pauta na noite do dia 22 de outubro. Como o STF reconheceu a “repercussão geral” do caso, ele vai fixar orientações gerais para todas as demarcações (saiba mais no quadro abaixo). A Constituição completa aniversário neste 5 de outubro e é considerada o maior marco na história do país da garantia dos direitos indígenas, em especial dos direitos territoriais.
O STF discutirá se mantém ou não a medida cautelar deferida pelo ministro Edson Fachin, em maio, que suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017, instrumento usado para institucionalizar o “marco temporal” como norma dos procedimentos administrativos de demarcação. Pelo menos 17 terras indígenas tiveram seus processos de demarcação devolvidos da Casa Civil e do Ministério da Justiça para a Fundação Nacional do Índio (Funai) com base no parecer 001 (saiba mais). A medida cautelar é um procedimento usado pelo Judiciário para prevenir, conservar ou defender direitos.
Também no âmbito do processo de repercussão geral, do qual é relator, Fachin suspendeu todos processos judiciais que poderiam resultar em despejos ou na anulação de demarcações de terras indígenas até o final da pandemia de covid-19.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou, nesta segunda, uma nota em defesa dos direitos indígenas em função do julgamento. “Obviamente que os nossos povos anseiam a reafirmação do Indigenato, o direito originário, congênito sobre as nossas terras e territórios, contra a tese do marco temporal defendido pela bancada ruralista e forças contrárias aos nossos direitos fundamentais”, afirma a nota da Apib.
Para comemorar o aniversário de 32 anos da Constituição, que garantiu o direito dos povos indígenas às suas terras, e alertar sobre a importância do julgamento, a Apib e organizações parceiras, como o ISA, estão lançando ainda uma campanha em defesa desses direitos e das demarcações.
Entenda porque o caso de repercussão geral no STF pode definir o futuro das terras indígenas
Em 2019, o STF reconheceu a repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, caso que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina. Isso significa que a decisão tomada nesse julgamento, marcado para iniciar no dia 28 de outubro, repercutirá sobre todos os povos indígenas do Brasil. A Suprema Corte poderá, assim, dar uma solução definitiva aos conflitos envolvendo terras indígenas no país. Embora a data do julgamento esteja marcada, isso não quer dizer que ele será finalizado nesse mesmo dia: algum ministro pode pedir vistas do processo ou a presidência do STF pode alterar sua pauta por outros motivos.
Entenda o que se discutirá nesse julgamento e o que está em jogo.
Do que trata o RE 1.017.365?
O Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365, que tramita no STF, é um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada – e já identificada – como parte de seu território tradicional.
A terra em disputa é parte do território Ibirama-Laklanõ, que foi reduzido ao longo do século XX. Os indígenas nunca deixaram de reivindicar a área, que foi identificada pelos estudos antropológicos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça como parte da sua terra tradicional.
Por que esse julgamento é central para o futuro dos povos indígenas no Brasil?
Em decisão publicada no dia 11 de abril de 2019, o plenário do STF reconheceu por unanimidade a repercussão geral do julgamento do RE 1.017.365. Isso significa que o que for julgado nesse caso servirá para fixar uma tese de referência a todos os casos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do judiciário.
Há muitos casos de demarcação de terras e disputas possessórias sobre terras tradicionais que se encontram, atualmente, judicializados. Também há muitas medidas legislativas que visam retirar ou relativizar os direitos constitucionais dos povos indígenas. Ao admitir a repercussão geral, o STF reconhece, também, que há necessidade de uma definição sobre o tema.
Quando ocorrerá o julgamento?
Atualmente, o julgamento não possui data prevista para iniciar. Ele havia sido incluído na pauta do dia 28 de outubro de 2020 pelo novo presidente da Corte, o ministro Luiz Fux, mas foi retirado no dia 22.
Durante o julgamento, cada uma das partes deverá ter 15 minutos para se manifestar. Além delas, os amici curiae ou “amigos da corte” terão, ao todo, uma hora para sustentação oral – tempo que deverá ser dividido entre aqueles que tiverem interesse em se manifestar, com 30 minutos para que os que se posicionam a favor dos direitos indígenas e 30 minutos para os que defendem restringi-los.
O que está em jogo?
No limite, o que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental aos povos indígenas: o direito à terra. Há, em síntese, duas teses principais que se encontram atualmente em disputa: de um lado, a chamada “teoria do indigenato”, uma tradição legislativa que vem desde o período colonial e que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito originário – ou seja, anterior ao próprio Estado. A Constituição Federal de 1988 segue essa tradição e garante aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
Do outro lado, há uma proposta mais restritiva, que pretende limitar os direitos dos povos indígenas às suas terras ao reinterpretar a Constituição com base na tese do chamado “marco temporal”. Há ainda a possibilidade de reavaliação das chamadas “salvaguardas institucionais”, conhecidas como “condicionantes”, fixadas, em 2009, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol e que igualmente restringem a posse e o uso fruto exclusivos dos povos indígenas sobre suas terras.
O que é marco temporal?
O marco temporal é uma tese que busca restringir dos direitos constitucionais dos povos indígenas. Nessa interpretação, defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras tradicionais, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.
Na avaliação de indigenistas, juristas, lideranças indígenas e do Ministério Público Federal (MPF), essa é uma tese perversa, pois legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar.
Além disso, essa posição ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos. Por tudo isso, os povos indígenas vêm dizendo, em manifestações e mobilizações: “Nossa história não começa em 1988”.
Que consequências esse julgamento pode ter para os povos indígenas?
Caso o STF reafirme o caráter originário dos direitos indígenas e, portanto, rechace definitivamente a tese do marco temporal, centenas de conflitos em todo o país terão o caminho aberto para sua solução, assim como dezenas de processos judiciais poderão ser imediatamente resolvidos.
As 310 terras indígenas que estão estagnadas em alguma etapa do processo de demarcação já não teriam, em tese, nenhum impedimento para que seus processos administrativos fossem concluídos.
Por outro lado, caso o STF opte pela tese anti-indígena do marco temporal, acabará por legalizar o esbulho e as violações ocorridas no passado contra os povos originários. Nesse caso, pode-se prever uma enxurrada de outras decisões anulando demarcações, com o consequente surgimento de conflitos em regiões pacificadas e o acirramento dos conflitos em áreas já deflagradas.
Esta decisão poderia incentivar, ainda, um novo processo de invasão e esbulho possessório a terras demarcadas – situação que já está em curso em várias regiões do país, especialmente na Amazônia.
Além disso,há referências de povos indígenas isolados ainda não reconhecidas pelo Estado, ou seja, ainda em estudo – um procedimento demorado, em função da política de não contato. Se o marco temporal de 1988 for aprovado, muitas terras de povos isolados não serão reconhecidas, pois sequer sabemos onde eles estão.
Há outros casos, como o do povo Kawahiva, em que a comprovação da existência desse povo isolado se deu, para o Estado brasileiro, em 1999, ou seja, muito depois de 1988. Como vai ficar a situação desses povos? Ademais, não é possível contatá-los para saber se já estavam lá em 1988.
Os povos indígenas participarão do julgamento?
O relator do caso, ministro Edson Fachin, defendeu a ampla participação de todos os setores interessados no tema, dada a importância da matéria. Tal participação se dará a partir da figura do amicus curiae – termo em latim que significa “amigo da corte” e que permite que pessoas, entidades ou órgãos com interesse e conhecimento sobre o tema contribuam subsidiando o tribunal com informações. Quase 40 amici curiae foram admitidos e estão habilitados a contribuir no processo – entre eles, muitas comunidades e organizações indígenas.
Além disso, a própria comunidade Xokleng também é parte no processo, tendo em vista que é diretamente afetada por ele. Usufruindo do direito de acesso à Justiça que foi assegurado aos povos indígenas pela Constituição de 1988, o povo Xokleng também se manifestará no julgamento.
Texto atualizado dia 23 de outubro
09/out/2020
Documento entregue nesta sexta (9) no Ministério do Meio Ambiente, assinado por organizações nacionais e internacionais, destaca destruição da Amazônia e medidas para garantir uma política ambiental voltada à preservação dos ecossistemas e povos tradicionais brasileiros.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib e Associação para os Povos Ameaçados (APA) realizaram a entrega de uma carta que reivindica ao governo brasileiro que acabe com o desmatamento, proteja a Amazônia de forma sustentável e garanta os direitos dos povos Indígenas com um plano de ação de longo prazo.
A carta foi entregue pelo coordenador da Apib Kretã Kaingang na sede do Ministério do Meio Ambiente, a ação faz parte da mobilização global #HandsOffTheAmazon. “Se medidas eficazes para a proteção a longo prazo da Amazônia e biomas adjacentes não forem implementadas agora, a Amazônia entrará em colapso – com conseqüências fatais para o clima regional e global”, destaca o documento.
Segundo o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), nunca antes, desde o início do monitoramento, a Amazônia havia sido tão destruída como nos primeiros seis meses de 2020. Uma área do tamanho de 120 campos de futebol desaparece por hora. O Pantanal, o Cerrado e outras zonas de vegetação únicas também estão em chamas em uma escala sem precedentes.
Durante os últimos meses, representantes de empresas brasileiras e internacionais, e do setor financeiro, têm exigido repetidamente do Brasil medidas sustentáveis e rigorosas para controlar os incêndios e a destruição ambiental. Entretanto, como mostram os números historicamente elevados de desmatamento e destruição, tanto o decreto presidencial nº 10.424 quanto a fundação do Conselho Nacional da Amazônia Legal não são capazes de conter a iminente catástrofe.
“O governo brasileiro deveria saber: O mundo está assistindo – não sentimos indiferença pela destruição da Amazônia. Nunca, desde o início do monitoramento, tanta floresta amazônica brasileira foi destruída como no primeiro semestre de 2020”, diz Julia Büsser, gerente de campanha da Associação para os Povos Ameaçados (APA).
Entre as medidas listadas na carta protocolada no Ministério do Meio Ambiente, estão a suspensão e proibição de produção ou comércio em áreas desmatadas após 2018 e em áreas habitadas por povos indígenas e comunidades tradicionais sem consentimento; demarcação dos territórios de povos originários de acordo com a Constituição; fortalecimento dos órgãos ambientais; garantia de que a origem de produtos como carne bovina, soja, madeira e minerais seja rastreável para certificar que eles não provenham de áreas desmatadas ilegalmente; e,principalmente a elaboração e implementação de um plano com marcos concretos para combater o desmatamento e proteger os direitos dos povos indígenas a longo prazo.
A destruição aumenta sob a gestão Bolsonaro
Sob o Presidente Bolsonaro, a destruição da floresta amazônica, devido a incêndios e desmatamento, está aumentando dramaticamente: entre agosto de 2018 e julho de 2019, o desmatamento aumentou 34,4% em comparação com o mesmo período do ano anterior. E de agosto de 2019 a julho de 2020, outros 34,6% a mais foram desmatados do que durante os mesmos meses do ano anterior. Os incêndios não estão apenas colocando a floresta tropical amazônica sob pressão: o pântano do Pantanal também está ardendo como nunca antes.
As comunidades indígenas da Amazônia são os mais atingidos pela destruição: seu habitat está desaparecendo. Os madeireiros e agricultores ilegais estão limpando a floresta, apenas para queimá-la mais tarde para a criação de gado, campos de grãos ou mineração. A demanda mundial por óleo de palma, carne, ouro e ração animal apóia este desenvolvimento. A APA e seus parceiros apelam, portanto, à Suíça e à comunidade internacional para que exerçam pressão política e econômica sobre o Brasil para deter a destruição ambiental maciça e as violações dos direitos indígenas. Um acordo de livre comércio com o Brasil só é sustentável se os direitos indígenas e a proteção do meio ambiente estiverem ancorados no capítulo sobre sustentabilidade de forma concreta e com condições rigorosas.
Acesse a carta protocolada aqui