Por Sonia Guajajara e Eloy Terena
Ministra dos Povos Indígenas e Coordenador jurídico da Apib
INTRODUÇÃO
A política de morte de Bolsonaro no ano de 2022 incluiu um reforço à agenda anti-indígena no Congresso Nacional. Isso, aliado ao contexto eleitoral, impulsionou atuações incisivas do movimento indígena em diversas esferas. Neste ano, a Apib continuou atuando na jurisdição constitucional, arena pública esta que passou a ser acessada pelos povos indígenas de forma contundente nos últimos anos, bem como marcou presença nas eleições e em instâncias e cenários internacionais.
Nesta retrospectiva, destacamos uma breve cronologia das mobilizações tocadas pelo movimento indígena em 2022, passando em seguida para a análise de alguns atos específicos do governo Bolsonaro. Chamamos também atenção para os trágicos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, para a atuação jurídica da APIB, em âmbito nacional e internacional, e das comitivas e delegações enviadas a outros países, assim como para as incidências específicas na seara ambiental. No decorrer do texto, ainda são abordadas a situação de aumento de violência em diversos territórios indígenas brasileiros, assim como a participação indígena nas eleições de 2022, por meio da Campanha Indígena e do “aldeamento” da política, e no governo de transição, através do Grupo Técnico Povos Indígenas.
MOBILIZAÇÕES
Logo no início do ano, ao retomar suas atividades no começo de fevereiro, o Congresso Nacional e a bancada governista prometeram colocar em pauta nas semanas seguintes uma série de projetos cujo resultado é o desmatamento, especialmente na Amazônia, e o aumento da violência contra as comunidades tradicionais, especialmente os povos indígenas. Ao total, cerca de 35 Projetos de Leis foram enviados com urgência para a Câmara dos Deputados e Senado Federal, em uma lista elaborada como uma espécie de sugestão do Executivo para o comando do Legislativo. Dentre as prioridades, as principais ameaças aos povos indígenas e ao futuro do planeta eram o PL 490/2007 (Marco Temporal ), PL 191/2020 (Mineração em Terras Indígenas), PL 3729/2004 (Licenciamento ambiental), PLS 510/2021(PL 2633/2020 – Regularização Fundiária), PL 3723/2019 e PL 6438/2019 (Porte de Armas).
Diante disso, em 9 de março a APIB, em parceria com diversas organizações, movimentos sociais, personalidades e artistas, atendeu ao chamado do cantor e musicista Caetano Veloso para o Ato pela Terra, no qual peregrinaram na Esplanada, pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e pelo Congresso Nacional, numa jornada de mais de oito horas em defesa da vida e contra os diversos projetos legislativos que foram elencados como prioridade pelo presidente Bolsonaro e que fazem parte da agenda de morte que ameaça os direitos e vida dos povos indígenas e comunidades tradicionais no Brasil. A manifestação foi a maior manifestação ambiental realizada no país fora de conferências da ONU (Organização das Nações Unidas), reunindo cerca de 15 mil manifestantes, 230 organizações e coletivos da sociedade civil e mais de 40 artistas.
No mês seguinte, de 4 a 14 de abril, foi realizado o Acampamento Terra Livre (ATL) 2022, organizado pela APIB, suas organizações regionais de base, com o tema “Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política”. Considerado a maior mobilização indígena do país, o ATL 2022 foi instalado no espaço do “Centro Ibero-americano de Culturas”, antigo complexo da Fundação Nacional de Artes (Funarte), localizado no Eixo Monumental, em Brasília (DF). Ao longo dos dez dias, mais de 8 mil indígenas de 200 povos trouxeram tradições, cantos e palavras de ordem para denunciar a política anti-indígena do governo Bolsonaro.
Foram debatidos temas como demarcação dos territórios tradicionais, projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional, o Recurso Extraordinário com Repercussão Geral aos territórios indígenas (RE Xokleng), além do debate “Aldear a Política: nós pelas que nos antecederam, nós por nós e nós pelas que virão”, que visou fortalecer especialmente indígenas mulheres para as Eleições de 2022. Ao afirmar que iriam aldear a política, os indígenas reforçaram que o Congresso Nacional é um dos principais espaços de tomadas de decisões em relação às suas vidas e, por isso, devem fazer parte do parlamento, garantindo que haja representatividade indígena nestes espaços da política institucional.
Por isso a Apib lançou a iniciativa “Campanha Indígena”, com a intenção de incentivar e apoiar candidaturas indígenas às Assembleias Legislativas e ao Congresso Nacional, entendendo ser fundamental aumentar a representatividade indígena nas Casas Legislativas, não só porque é nelas que correm as principais ameaças aos direitos fundamentais dos povos originários, assegurados pela Constituição Federal de 1988, mas também para estabelecer um nível de diálogo institucional com todas as esferas de governo.
Movidos por esta iniciativa, os povos indígenas presentes no ATL 2022 também se manifestaram em Carta Aberta anunciando apoio à pré-candidatura de Lula como Presidente da República, afirmando acreditar que não há espaço para nenhum tipo de neutralidade quando o assunto é a eleição presidencial e que Lula representa uma parcela da sociedade que não se cala diante das desigualdades e que é contra a barbárie do capital, o ódio fascista e o racismo estrutural do sistema atual. Além disso, cobraram do futuro presidente um processo intenso de diálogo, elaboração de propostas e de compromissos políticos que resultassem em um Programa de Governo coletivo e atento às questões urgentes enfrentadas atualmente pelos povos indígenas.
Uma das principais discussões durante o ATL foi acerca da tese do Marco Temporal, que restringe o direito das comunidades às terras que tradicionalmente ocupam e é repudiada pelos povos indígenas, que apontam a tese como inconstitucional. Tal tese, que está sendo discutida no âmbito do Recurso Extraordinário n. 1.017.365 (RE Xokleng), cujo julgamento já foi interrompido duas vezes no ano passado, deveria ter sido julgada novamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 23 de junho de 2022, no entanto, esta votação que decidirá os rumos das demarcações das terras indígenas no país foi adiada mais uma vez.
De acordo com a tese do Marco Temporal, a demarcação de uma terra indígena só poderia acontecer se fosse comprovado que os povos originários estavam sobre o espaço requerido antes de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da atual Constituição Federal. Ou seja, os povos originários teriam que ter alguma “documentação” comprovando sua ocupação no território reivindicado antes de 88. Eventual vitória desses argumentos racistas implicará na anulação de procedimentos de demarcação e o aumento de conflitos e de atos de violência contra os povos indígenas. No entanto, como é de conhecimento público, estes povos viviam em todo o território brasileiro desde muito antes do Brasil ser colonizado por portugueses. Assim, a tese que se contrapõe ao Marco Temporal se chama Indigenato, de acordo com a qual a posse da terra pelos indígenas é um título congênito, ao passo que a ocupação é um título adquirido.
A Apib ressalta que, quanto mais o julgamento retarda, mais as explorações e violências por parte do agronegócio continuam ganhando vantagem sobre as vidas dos povos indígenas e por isso, precisamos urgentemente de uma nova data para o julgamento. Até o momento, somente dois ministros votaram. Luiz Edson Fachin votou a favor da tese do indigenato, afirmando que o Marco Temporal torna “insolúveis algumas questões fundamentais para a qualificação da posse indígena”. Já o ministro Nunes Marques, indicado por Bolsonaro para a Corte, foi a favor do Marco Temporal.
Para junho ainda estava marcada uma nova mobilização presencial em Brasília: a segunda edição do Acampamento Luta Pela Vida. No entanto, nas vésperas de sua realização, como o julgamento do marco temporal foi adiado mais uma vez, o novo acampamento também foi cancelado. Apesar disso, para pedir ao STF que retome a pauta do Marco Temporal para votação, o movimento indígena convocou ações nos territórios, nas aldeias e nas redes sociais para o dia 23 de junho, data em que estava prevista a votação na Corte. Ao todo, foram 40 ações políticas, em todas as regiões do Brasil, envolvendo dezenas de territórios, que foram desde fechamentos de BR’s, a retomadas de territórios e atos em 40 sedes da Funai realizados por servidores em greve.
Em São Paulo, centenas de pessoas mostraram solidariedade à causa, se reunindo com os indígenas em frente ao Masp, no final da tarde. Em Brasília, a mobilização foi na Praça dos Três Poderes, em frente ao STF, onde foram feitos rituais sagrados. Ao longo da respectiva semana, os diversos povos presentes na capital também realizarem uma série de reuniões e audiências: com parlamentares no Congresso Nacional; na Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH); no Conselho Nacional de Justiça (CNJ); no Supremo Tribunal Federal; na Fundação Nacional do Índio (Funai). Também foi organizado pela APIB o “Seminário sobre o Regime Constitucional das Terras Indígenas no Brasil”, na Universidade de Brasília (UnB), que reuniu indígenas, parceiros, acadêmicos e juristas, os quais reafirmaram a inconstitucionalidade do Marco Temporal e cobraram coragem do STF para materializar a Constituição de 1988.
ATOS DO GOVERNO BOLSONARO
Neste ano observamos as tensões entre Rússia e Ucrânia crescerem exponencialmente por conta da aproximação dos ucranianos com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e a subsequente invasão russa à Ucrânia em fevereiro. Diante disso, no dia 2 de março Bolsonaro tentou utilizar o conflito para massacrar os povos indígenas, em manobra política que visava legalizar crimes nos territórios originários, sob o argumento de que o conflito entre os dois países europeus prejudicaria o comércio de fertilizantes à base de potássio e que, portanto, seria necessário aprovar o Projeto de Lei (PL) 191/2020 no Congresso Nacional para explorar o mineral em territórios indígenas. Bolsonaro utilizou a comoção mundial sobre este conflito para rifar os direitos territoriais dos Povos Indígenas, apresentando uma solução para uma crise de preços dos fertilizantes que é falsa, pois as principais fontes de potássio no Brasil não estão em terras indígenas, e que ignora a manifestação da vontade expressa dos povos indígenas.
No mês seguinte, não bastassem as constantes ameaças e violações cometidas pelo desgoverno Bolsonaro contra os povos indígenas no Brasil, especialmente durante a pandemia de Covid-19, na qual trabalhou para agravar a crise sanitária e humanitária, desestruturando a saúde indígena, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou, no dia 15 de março, uma portaria concedendo a “Medalha do Mérito Indigenista” para o presidente genocida Jair Bolsonaro e diversas pessoas que compõem o primeiro escalão do Governo e operam suas políticas de destruição. Em contraposição, a APIB reconheceu e denunciou consagrando com a “Medalha do Genocídio Indígena” as políticas de morte do Governo Bolsonaro.
No que tange à Fundação Nacional do Índio (funai), desde setembro de 2021, a entidade se manteve omissa quanto à proteção de indígenas isolados do Rio Mamoriá, denominados como “isolados do Mamoriá Grande”, que habitam o interior da Reserva Extrativista do Médio Purus. À época, uma expedição da equipe descentralizada da Funai havia transmitido à Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (GIIRC) a informação da identificação do grupo, com existência até então desconhecida. Cinco meses depois, a entidade indigenista ainda não havia tomado as medidas necessárias à proteção dos isolados, o que levou a APIB, em fevereiro de 2022, a enviar ofício ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República solicitando medidas urgentes.
Em mobilização do Dia Internacional dos Povos Indígenas, 9 de agosto, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e suas organizações regionais de base convocaram atos para exigir a demarcação de Terras Indígenas. Entre as ações esteve o protocolo de uma representação nas procuradorias do Ministério Público Federal (MPF) de diversas localidades no país, denunciando o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier, de cometer crime de improbidade administrativa. As petições protocoladas nos MPF pediram a instauração de inquérito civil para apurar a omissão da Funai na demarcação das terras indígenas e na ausência sistemática de proteção das áreas já demarcadas no Brasil. A Apib também protocolou nova petição em Ação Civil Pública (ACP), que tramita na 9ª Vara da Justiça Federal de Brasília, para pedir o afastamento imediato de Xavier, apresentando novos fatos e violações cometidos por sua gestão em 2022.
Em áudio obtido com exclusividade e liberado em outubro pelo portal O Joio e o Trigo em parceria com o The Intercept, o Coordenador Regional da Funai de Barra do Garças, no Mato Grosso, afirmou, em reunião fechada realizada em 23 de agosto que o presidente do órgão, Marcelo Xavier, pretendia legalizar o garimpo e a extração de madeira em terras indígenas. Na gravação, é mencionado que Xavier estaria estudando duas instruções normativas, uma que permite o indígena a fazer o manejo florestal, vender e cultivar a madeira, e outra para liberar o garimpo em terra indígena.
Por fim, mesmo nos últimos dias de mandato, Bolsonaro não se absteve de buscar violar os direitos dos povos indígenas. No dia 20 de dezembro, o Ministério Público Federal abriu um inquérito para investigar a elaboração de instrução normativa que libera a extração de madeira em terras indígenas, autorizando o chamado manejo florestal sustentável, e que foi assinada pelos presidentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Eduardo Bim, e da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Augusto Xavier. Em nota técnica, a Apib condenou tal medida inconstitucional e que retroalimenta a violência contra os povos indígenas.
ASSASSINATOS DE BRUNO PEREIRA E DOM PHILLIPS
Ainda no início do mês de junho, outro fato marcou a imprensa nacional e também internacional: o indigenista Bruno da Cunha Araújo Pereira, servidor licenciado da Fundação Nacional do Índio (Funai), e o jornalista britânico Dom Phillips, colaborador do jornal The Guardian, desapareceram na Terra Indígena do Vale do Javari, no estado do Amazonas, enquanto desempenhavam atividades de fortalecimento de proteção territorial contra invasores, em apoio à organização indígena local.
Bruno Pereira prestava consultoria à União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA) acerca da proteção territorial da referida TI, em razão de sua expertise como Coordenador Regional da Funai em Atalaia do Norte e como Coordenador-Geral de Índios Isolados e Recém Contatados, instância de cúpula da Funai para abordar questões relativas aos povos indígenas isolados e de recente contato. Ele havia sido alvo de diversas ameaças pelo trabalho que desempenhava junto aos indígenas contra os invasores que atuam na região, tendo sido ameaçado recentemente em carta enviada à UNIVAJA, dirigida aos colaboradores da entidade.
A região do desaparecimento condensa conflitos graves, num clima de violência em que madeireiros, pescadores ilegais e o narcotráfico internacional exercem suas atividades diante da incapacidade e omissão dos órgãos responsáveis pela fiscalização e proteção dos territórios indígenas. A exemplo, está em curso a investigação de um esquema de lavagem de dinheiro para o narcotráfico por meio da venda de peixes e animais e que pode estar relacionado ao desaparecimento da dupla. Até o momento, o caso não foi completamente desvendado. Dois suspeitos confessaram o crime e encontram-se presos em decorrência das investigações, junto com outro investigado cuja participação foi mencionada em depoimentos de testemunhas. Há somente suspeitos apontados como mandantes do crime.
SITUAÇÃO DOS PATAXÓ
Neste ano também pudemos acompanhar a escalada da violência sofrida pelo Povo Pataxó do extremo sul da Bahia. Desde junho instalou-se um cenário de conflitos graves a partir da retomada de parte do território pelos indígenas, que encontram resistências de fazendeiros locais. Diversas comunidades e aldeias denunciaram ataques e cerco de fazendeiros e pistoleiros fortemente armados com pistolas e fuzis, que por vezes dispararam tiros contra os moradores locais e espalharam falsas informações com o intuito de difamar os indígenas. Durante semanas, famílias inteiras foram impedidas de transitar, sem possibilidade de comprar alimentos nas cidades ou sair para trabalhar, em atos de retaliação do agrobanditismo, conduzidos por proprietários de fazendas vizinhas ao TI. De acordo com os relatos, as ameaças têm ocorrido de forma sistemática desde as retomadas feitas no mês de junho e agosto na região.
Diversas organizações indígenas locais e regionais se mobilizaram e acionaram órgãos e entidades públicas, na tentativa de cobrar uma resposta efetiva do Estado para resolver a situação. Neste sentido, a Apib participou de missão emergencial organizada em outubro pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), em conjunto com o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos e outros órgãos e entidades, para verificar violações a direitos humanos no território indígena do povo Pataxó e prestar solidariedade às comunidades, coletando depoimentos e testemunhos, reconhecendo como problemática central a morosidade da demarcação do território e o cenário de violência nos conflitos com os latifundiários da região.
Importante ressaltar a postura racista da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) frente a situação dos Pataxós, ao emitir uma nota condenando a luta desse povo no Território Indígena de Barra Velha, município de Porto Seguro. A nota imputou aos indígenas condutas que inferem no descumprimento da legislação, praticando “ilicitudes” e “esbulho ou turbação de propriedades” Tratou-se de uma postura absurda da instituição diante da realidade dos ataques de milícias sobre o território e o cerco armado às comunidades.
ATUAÇÃO JUDICIAL
Em 2022, a Apib continuou atuando, por meio de sua assessoria jurídica, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) Nº 709 no STF, proposta em junho de 2020 pela APIB com o objetivo de combater ações e omissões do governo federal no enfrentamento à pandemia de Covid-19 e cobrar providências, devido ao risco de genocídio de diversas etnias.
Em janeiro, a Apib entrou com uma petição na ADPF 709 contra a Funai. Desde o dia 29 de dezembro de 2021, o órgão responsável pela política indigenista do Governo Federal havia excluído as Terras Indígenas (TIs) não homologadas das atividades de proteção. Cerca de 239 territórios tradicionais foram afetados diretamente com a medida, o que significaria o abandono de um terço das TIs existentes no Brasil e impactaria justamente as mais vulneráveis juridicamente, que sofrem contínuas invasões e que abrigam 114 povos indígenas em isolamento voluntário e de recente contato. Além da petição na ADPF 709, a Apib entrou com uma representação no Ministério Público Federal (MPF). Outras 15 organizações indígenas também entraram com pedido no MPF por improbidade administrativa contra a Funai.
A medida da Funai foi publicada pelo Coordenador Geral de Monitoramento Territorial para orientar as Coordenações Regionais, os Serviços de Gestão Ambiental e Territorial (SEGATs) e as Coordenações Técnicas Locais (CTLs). A decisão foi embasada em um entendimento jurídico da Procuradoria Federal Especializada (PFE), da Funai, que condiciona a execução de atividades de proteção territorial somente após o término do procedimento administrativo demarcatório, ou seja, após a homologação da demarcação por Decreto presidencial e o registro imobiliário em nome da União. Ocorre que, no dia 1º de fevereiro, o ministro do STF, Luis Roberto Barroso, relator da ADPF 709, atendeu ao pedido da Apib e suspendeu tais atos administrativos da Funai.
Em março, Barroso também estabeleceu um prazo de 30 dias para que o governo Bolsonaro disponibilizasse no site do Ministério da Saúde todos os dados de saúde sobre indígenas, em formato semelhante ao utilizado para as informações sobre os demais brasileiros. O ministro estabeleceu multa diária de R$100 mil em caso de descumprimento dentro do prazo fixado. Disse também que houve resistência do governo na apresentação de dados, enfatizando que é direito de toda a sociedade conhecer tais informações e que, mesmo que a imprecisão dos dados seja um problema anterior à pandemia, isso deve ser saneado, para que a União cumpra com seu dever de transparência e preste adequadamente serviço público essencial à preservação da vida dos povos indígenas.
Já em maio, foi solicitado ao Supremo a proteção do povo Yanomami, que segue sob ameaça do garimpo ilegal, na região de Roraima, em TI demarcada e homologada. O governo veio descumprindo medida cautelar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e uma decisão do STF, desde maio de 2021, que determinam a proteção integral do referido território. Neste sentido, foi denunciada a conivência do governo federal com os crimes cometidos pelo garimpo em territórios indígenas, que provocou uma nova onda de migração de garimpeiros para os locais de extração de minerais. Não só houve o avanço da destruição promovida, mas também foram revelados casos de violência sexual sobre mulheres e crianças indígenas, que são abusadas em troca de comida.
Mais adiante, em agosto, a Apib protocolou mais uma petição, desta vez afirmando que a União não disponibilizou as bases de dados epidemiológicos da vigilância da Covid-19 no que tange aos povos indígenas, dessa forma descumprindo a ordem judicial dada pelo ministro Barroso em março, referida acima. Ainda no mês 08, foi requerida ao STF a determinação da retirada de invasores e a instalação de bases permanentes do Ibama e da Força Nacional de Segurança Pública na Terra Indígena Apyterewa, localizada no município São Félix do Xingu, no Pará. No dia 18 de maio, um grupo de fazendeiros havia invadido a TI, colocado gado e passado a ameaçar os indígenas da região.
Ao final do mês de junho, no contexto da morte de Bruno e Dom, a Apib e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) também entraram com uma nova Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no STF para pedir medidas urgentes de proteção aos povos indígenas isolados e de recente contato. A ação (ADPF 991) foi movida pelo risco de genocídio que sofrem diversos desses povos e pediu que a Corte tome medidas estruturais para o fim da política de anti-indígena de Bolsonaro dentro da Funai. Foram denunciados o sucateamento e aparelhamento de entidades estatais especializadas em prover proteção para os povos isolados, como as Frentes e Bases de Proteção Etnoambiental, a Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados.
Em novembro, o Ministro Relator da ação, Luiz Edson Fachin, concedeu liminar a favor da proteção dos povos isolados. O Ministro acatou algumas providências como, por exemplo, a determinação para que o Governo Federal adote todas as medidas necessárias para garantir a proteção integral dos territórios com a presença de povos isolados, garantindo que as portarias de restrições de uso sejam sempre renovadas antes do término da sua vigência e até que a terra seja efetivamente demarcada. Outro pedido acatado foi a definição do prazo de 60 dias para a União elaborar um plano de ação para a regularização e proteção das terras indígenas.
No âmbito dessa mesma ação, a Apib protocolou, em outubro, uma petição pedindo que o Governo Federal dê esclarecimentos sobre a morte do indígena de Tanaru, também conhecido como “Índio do buraco”. O indígena era o último do seu povo, vivia em isolamento voluntário e foi encontrado morto por um servidor da Funai na sua maloca na Terra Indígena Tanaru, em Rondônia, no dia 23 de agosto de 2022. Foi solicitado que a União prestasse informações detalhadas sobre o caso e apresentasse qual destinação seria dada à TI, protegida por uma Portaria de Restrição de Uso.
CENÁRIO INTERNACIONAL
1. COMITIVAS INTERNACIONAIS
Durante todo o ano de 2022, a Apib enviou diversos representantes e comitivas a outros países para incidir junto a diversas entidades e instituições no que tange à causa indígena e ambiental. Lideranças indígenas do Brasil visitaram países da União Europeia ao longo do mês de junho, como parte da estratégia de responsabilizar governos e empresas por ameaças à proteção de seus territórios, assim como para reforçar a denúncia no Tribunal Penal Internacional (TPI) contra o governo Bolsonaro por Genocídio e Crimes contra a Humanidade.
A delegação da Apib, composta por sete lideranças indígenas, representando todas as regiões do Brasil, visitou a França e a Bélgica, se reunindo com Comissões do Parlamento Europeu, com o Departamento Ambiental parlamentar e com membros do Partido Verde Alemão. Também foram acompanhados os atos e investigações do grupo francês de supermercados Casino por falta de rastreabilidade de certos produtos com proveniência de terras desmatadas ou griladas no Brasil. Tais eventos são de grande relevância, pois a Europa é o segundo maior mercado de venda da soja produzida no Brasil e um importante importador de carne bovina brasileira.
Em sua incidência junto ao Parlamento Europeu, os representantes da Apib trataram da lei sobre importação de produtos com risco florestal (FERC – Forest and ecosystem-risk commodities). A lei antidesmatamento, como também é conhecida, prevê regulações sobre commodities (como carne, couro e madeira) oriundos do desmatamento e da degradação florestal. Neste sentido, a solicitação das lideranças aos parlamentares europeus foi de que todos os biomas fossem abrangidos pela proposta, assim como o respeito aos tratados e acordos internacionais que protegem os direitos humanos e indígenas. Tais medidas seriam uma resposta concreta à emergência climática e aos casos de violência nos territórios ancestrais. No entanto, a União Europeia aprovou a referida lei no dia 06 de dezembro, negando a inclusão de todos os biomas na lei. Também não foram reconhecidos os direitos internacionais dos povos indígenas, que haviam sido incluídos na proposta durante uma votação no mês de setembro. A lei entrará em vigor em 2023, mas passará antes por um período de transição de 18 meses, obrigando as empresas a cumprir suas exigências somente em 2025.
Em setembro, lideranças da Apib também participaram da Semana Climática de Nova York, nos Estados Unidos. Composta por cinco representantes da região Norte e Nordeste do país, a delegação denunciou para lideranças mundiais os ataques à vida e aos territórios dos povos indígenas provocados pelo Estado brasileiro. além de reforçar a importância da demarcação de terras indígenas no combate às mudanças climáticas. Em paralelo à Semana Climática, ocorreu também em Nova York a Assembleia Geral da ONU, com participação do presidente Bolsonaro. Tal momento foi uma oportunidade para expor os retrocessos da agenda anti-indígena e ambiental do atual governo por meio de um protesto em frente ao Consulado do Brasil em Nova York.
Já em novembro, a Apib enviou uma nova delegação à Europa, buscando justamente fortalecer a denúncia contra Bolsonaro no TPI. Dessa vez, representantes do Departamento Jurídico da organização participaram de diversos eventos na Inglaterra, Suíça, França e Holanda, incluindo uma sessão da Revisão Periódica Universal (RPU) na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), e reunião com escritório da Procuradoria do TPI e conferências na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e na King’s College de Londres, dentre outros.
No mesmo mês, um dos coordenadores executivos da Apib, Kretã Kaingang, representou os povos originários em delegação formada por cinco integrantes de movimentos populares brasileiros que também foram à Europa, mas para debater a política ambiental do acordo Mercosul-União Europeia, passando por Holanda, Bélgica, Alemanha, França e Áustria. Os impactos da mineração em terras indígenas e em áreas ocupadas pela agricultura familiar foram uma das principais questões abordadas durante os encontros com as autoridades. O referido acordo foi assinado em junho de 2019 e prevê o livre comércio entre os dois blocos, mas ainda não entrou em vigor porque as posturas do governo brasileiro em relação ao meio ambiente, a exemplo de proposições legislativas antiambientais e anti indígenas, não se adequaram às exigências de outros países e geraram entraves para as negociações.
A Apib também esteve presente na 27ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP27), no Egito, com lideranças indígenas de todas as regiões do Brasil para pautar a demarcação de Terras Indígenas no país como ação essencial no enfrentamento da crise global. Entre os 12 dias de programação da COP27, a Apib esteve em mais de mais de 30 atividades com a sociedade civil, poder público, financiadores, negociadores e imprensa. Durante o painel, a coordenação executiva da Apib falou inclusive sobre a necessidade de se incluir todos os biomas do Brasil na Lei anti desmatamento da União Europeia.
A conferência ocorreu logo após a vitória de Lula nas eleições presidenciais, colocando o Brasil de volta na agenda climática e ambiental, principalmente no cenário internacional. A COP27 também acontece após a Noruega anunciar que vai retomar o Fundo Amazônia, programa de cooperação internacional que destinava ajuda financeira ao Brasil para reduzir o desmatamento. O Fundo foi criado durante o governo Lula, mas em 2019 Bolsonaro impôs novas exigências que fizeram com que a Noruega e a Alemanha encerrassem transferências de recursos que chegavam a até US$ 1 bilhão. A proposta de retomada do Fundo Amazônia só foi possível com a eleição de Lula, que tem entre as suas promessas zerar o desmatamento na Amazônia, respeitar os povos originários e recuperar o protagonismo do país na luta pela justiça climática. Neste sentido é que um governo comprometido com estas pautas traz alívio e otimismo para ativistas e organizações indígenas.
Uma delegação da Apib, composta por cinco lideranças, também marcou presença na Convenção sobre Diversidade Biológica (COP15), no Canadá, em dezembro. Neste evento, que aconteceu depois de dois anos sem a realização do encontro devido à pandemia de Covid19, os representantes indígenas também pautaram a demarcação das Terras Indígenas (TIs) como prioridade, mas, desta vez, para conservar ao menos 30% dos ecossistemas e recuperar terras degradadas no mundo até 2030. O evento se iniciou exatamente um dia após a aprovação da lei antidesmatamento pelo Parlamento Europeu, o que gerou ainda mais atenção para a questão.
2. DENÚNCIAS EM INSTÂNCIAS INTERNACIONAIS
No mês de junho a Apib apresentou novas denúncias contra Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional (TPI), atualizando a denúncia realizada em agosto de 2021, na qual se atribuiu a Jair Bolsonaro a responsabilidade pela prática de crime de genocídio e de crimes contra a humanidade por extermínio, perseguição e outros atos desumanos. Dessa vez os fatos referem-se ao período de janeiro a maio de 2022, incluindo a negligência nas buscas por Bruno da Cunha Araújo Pereira e Dom Phillips e a barbárie no território Yanomami. Foram ressaltadas a persistência e a intensificação da política anti-indígena de Jair Bolsonaro, com agravamento dos seus efeitos sobre os povos indígenas.
Nessa mesma esteira, no dia 1º de setembro, Bolsonaro foi condenado pelo Tribunal Permanente dos Povos (TPP) por crimes contra a humanidade cometidos durante a pandemia de Covid-19. Em maio, Bolsonaro havia sido denunciado ao TPP pela APIB, em conjunto com a Coalizão Negra por Direitos, a Internacional de Serviços Públicos (PSI) e a Comissão Arns. A sessão aconteceu nos dias 24 e 25 de maio de 2022, em formato híbrido, simultaneamente em São Paulo e em Roma, mas a sentença foi proferida somente em setembro. O júri foi presidido pelo ex-juiz italiano Luigi Ferrajoli, professor catedrático da Universidade de Roma, e contou com a participação de doze membros de nacionalidades distintas, composto por especialistas reconhecidos na área do Direito, das ciências sociais e da saúde global.
Apesar de não possuir efeito legal, o tribunal simbólico e de efeito político acaba influenciando outras instituições e serve como termômetro da opinião pública internacional sobre o governo brasileiro. Foi criado em 1979, em Roma, e é herdeiro do Tribunal Russell, constituído em 1966 para investigar crimes e atrocidades na guerra do Vietnã. O TPP tem sido uma das expressões mais ativas de mobilização e articulação em defesa da Declaração Universal dos Direitos dos Povos, contando com participação de entidades e movimentos sociais contra violações praticadas por autoridades públicas e agentes privados, tendo como principal objetivo gerar verdade, memória e reparação moral.
Em novembro, foi levada à Organização das Nações Unidas (ONU) uma denúncia contra Jair Bolsonaro por destruição do meio ambiente e violações a direitos humanos. O documento, elaborado em conjunto com a Conectas Direitos Humanos, o Instituto Socioambiental (ISA), Observatório do Clima e o WWF-Brasil, foi entregue aos relatores especiais da ONU responsáveis pelo acompanhamento de temas relacionados a meio ambiente, direitos indígenas, mudanças climáticas, alimentação, água potável e saneamento, desenvolvimento, moradia, além da coordenadora do grupo de trabalho sobre direitos humanos e empresas. Nele, foi solicitado que o governo brasileiro interrompa a destruição ambiental no Brasil, respeite os direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais e adote ambições maiores em seus compromissos de redução de emissões.
No que tange ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (SIDH), a Apib realizou diversas incidências. Em agosto, a Apib participou de audiência inédita da Corte Interamericana dos Direitos Humanos, realizada no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, a respeito dos povos indígenas isolados, o que representou mais um passo para a criação de um marco regulatório para estas populações, presentes em sete países da América do Sul. Já em outubro, a Apib fez parte de outra audiência pública, desta vez online e com o objetivo de apresentar informações atualizadas sobre a situação dos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil. Na ocasião, as organizações brasileiras falaram sobre a escalada de violências que os povos originários do Brasil estão enfrentando em decorrência das eleições gerais e dos projetos de lei da agenda anti-indígena do Governo Bolsonaro que tramitam no Congresso Nacional.
A Apib também acompanha alguns casos que tramitam nos dois órgãos do Sistema Interamericano: a Comissão (CIDH) e a Corte (CIDH) Interamericanas de Direitos Humanos. No âmbito da primeira, dá-se destaque para medida cautelar que a CIDH concedeu em outubro em favor da comunidade Guapo’y, do povo Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, solicitando que o Estado Brasileiro proteja o direito à vida e à integridade dos indígenas que vivem no local. A medida é resultado de uma solicitação apresentada pela própria Apib, em conjunto com a Aty Guassu e a organização Conectas Direitos Humanos. Devido aos fatos ocorridos em junho, foram acionados a respeito da situação, além da CIDH, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, a Relatoria Especial para os Direitos dos Povos Indígenas, os Peritos da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas e o Ministério Público Federal (MPF).
Composta por cerca de 300 pessoas, há décadas a comunidade Guapo’y busca a retomada definitiva do seu território ancestral, onde fazendeiros obtiveram a propriedade destas terras. O povo Guarani Kaiowá também enfrenta atuações ilegais da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul que, de 2018 a 2022, já realizou cerca de cinco ataques contra a comunidade sem qualquer decisão judicial. Em junho de 2022, os indígenas reiniciaram o movimento de retomada quando a PM, com um efetivo de 100 polícias e um helicóptero, atirou bombas de águas lacrimogêneas e disparou armas de fogo contra o grupo, sem nenhuma tentativa de mediação. O caso deixou um indígena morto e 10 feridos, dentre os quais idosos e crianças.
Por sua vez, no mês de julho a Corte Interamericana concedeu medidas provisórias em favor os povos indígenas Yanomami, Ye’kwana e Munduruku, determinado que o Estado brasileiro deve adotar as medidas necessárias para garantir a integridade pessoal, a saúde e o acesso à alimentação e à água potável aos povos, além de tomar providências para evitar a exploração e a violência sexual contra as mulheres e crianças, bem como prevenir a disseminação da Covid-19 nas aldeias. Tal medida é decorrente de pedido da CIDH à CtIDH, tendo em vista medidas cautelares referentes a esses povos que já tramitavam na Comissão Interamericana, devido ao grave e urgente risco que enfrentavam no contexto da pandemia de COVID-19, e agora se converterem em medidas provisórias da Corte.
Durante a vigência das medidas cautelares, a Comissão recebeu informação que indica o aumento exponencial da presença de terceiros não autorizados nas referidas terras indígenas, principalmente realizando garimpo e exploração de madeira. Nesse contexto, a CIDH observou que os indígenas Yanomami, Ye`kwana e Munduruku estão expostas a ameaças e ataques violentos, incluindo a violação sexual, afetações à saúde pela disseminação de doenças, como a malária e a COVID-19, em um contexto de debilidade da atenção médica, e alegada contaminação por mercúrio, derivada do garimpo na região. A informação apresentada indica que os atos de violência, assassinatos e ameaças continuam nas comunidades indígenas, inclusive se agravando, o que levou a Comissão a solicitar à Corte IDH que outorgasse medidas provisórias e que ordenasse ao Estado do Brasil proteger os propostos beneficiários.
PAUTA AMBIENTAL
Dentro da pauta ambiental, uma das principais incidências da Apib foi o lançamento do relatório “Cumplicidade na Destruição IV – Como mineradoras e investidores internacionais contribuem para a violação dos direitos indígenas e ameaçam o futuro da Amazônia”. Esta é a 4ª edição da publicação lançada pela Apib em parceria com a organização Amazon Watch. O documento foca nos interesses minerários em terras indígenas de nove mineradoras: Vale, Anglo American, Belo Sun, Potássio do Brasil, Mineração Taboca e Mamoré Mineração e Metalurgia (ambas do Grupo Minsur), Glencore, AngloGold Ashanti e Rio Tinto. Juntas, elas possuíam em novembro de 2021 um total 225 requerimentos minerários ativos com sobreposição em 34 Terras Indígenas – uma área que corresponde a 5,7 mil quilômetros quadrados – ou mais de três vezes a cidade de Brasília ou de Londres.
Apesar dos anúncios de grandes mineradoras de que abandonariam seus interesses em territórios indígenas, milhares de requerimentos minerários com interferências nessas áreas seguiram ativos na base de dados da Agência Nacional de Mineração (ANM). A abertura de terras indígenas para a mineração e o garimpo está no centro da agenda do governo Bolsonaro e, com o avanço no Congresso de projetos de lei como o PL 191/2020 e o PL 490/2007, esses requerimentos podem garantir às mineradoras prioridade na exploração desses territórios.
O relatório ainda detalha, em estudos de caso, os impactos e as violações de direitos protagonizados por cinco dessas mineradoras, resgatando as trajetórias desses conflitos e seus desdobramentos atuais, que vão desde a invasão de territórios tradicionais à contaminação por metais pesados e ao desrespeito ao direito de consulta e consentimento livres, prévios e informados. A partir de testemunhos das comunidades afetadas que desafiam as declarações oficiais das empresas sobre sua atuação, a publicação mostra como a presença e a atuação dessas corporações desfigura para sempre a vida desses povos e comunidades e podem contribuir efetivamente para a destruição dos ecossistemas e para o aprofundamento das mudanças climáticas.
Em 2022, a Apib também incidiu como amicus curiae (amigo da Corte) em diversas ações jurídicas com temática ambiental no Supremo Tribunal Federal. Em março, Luiz Eloy Terena, coordenador jurídico da Apib, fez sustentação oral no STF no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) Nº 760, ação socioambiental já considerada histórica por ser uma das mais completas e importantes já apresentadas na corte sobre o tema, na qual se pede que o Tribunal determine a retomada do cumprimento de metas estabelecidas pela legislação nacional e acordos internacionais assumidos pelo Brasil sobre mudanças climáticas. Em seu pronunciamento, o advogado indígena destacou a função essencial de regulação climática das terras indígenas, e o risco iminente de genocídio de povos indígenas isolados no país.
Em abril, durante o Acampamento Terra Livre (ATL), a APIB solicitou ingresso no Mandado de Injunção n. 7369, proposta pela Sociedade de Defesa dos índios Unidos de Roraima, visando combater o garimpo em terras indígenas. Dentre as diversas informações apresentadas, a organização indígena apresentou dados do “Relatório Cumplicidade na Destruição IV”. Já em maio, em conjunto com outras entidades, foi apresentada petição de ingresso como amicus curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) Nº 6.528, proposta pelo Partido Socialista Brasileiro no STF, com o objetivo de questionar a constitucionalidade do inciso IX do artigo 3º da citada Lei 13.874/2019 que estabelece que, transcorrido o prazo máximo definido e apresentados os elementos necessários, será concedida aprovação tácita do pedido de liberação da atividade econômica, mesmo no caso de haver impacto socioambiental. Segundo a Apib, a aprovação tácita de atos de órgãos como a Funai viola a proteção conferida aos povos e terras indígenas, pois admite que o Estado emita atos administrativos que afetem essas comunidades sem a consulta prévia, livre e informada dos povos e comunidades afetadas.
CAMPANHA INDÍGENA – ALDEAR A POLÍTICA
A Apib lançou, neste ano, uma mobilização em todo o território nacional por meio da Campanha Indígena, projeto com o objetivo de “Aldear a Política”, fortalecendo e apoiando candidaturas indicadas pelas bases em todo o Brasil. Desde 2017, a Apib vem estimulando de forma mais direta a participação de lideranças indígenas na Política, mas, em 2022, a organização lançou pela primeira vez sua Bancada Indígena com 30 candidaturas de todas as regiões.,
Do total de postulantes indígenas, 12 candidaturas concorreram a vagas de deputado federal e 18 a cadeiras em Assembleias de 20 estados diferentes. A maior quantidade de candidatos apoiados pela Campanha Indígena esteve concentrada nos Estados que integram a Amazônia Legal, nas duas esferas de disputa proporcional e tiveram a indicação da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
O número de candidatos indígenas nas eleições de 2022 registrou um aumento de 115% desde 2014, quando o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passou a registrar dados como cor e raça dos candidatos. Pelo histórico de registro das candidaturas proporcionais e majoritárias em âmbito estadual e federal, o número de pessoas que se afirmaram indígenas passou de 85 em 2014 para 133 em 2018 e 183 neste ano, segundo dados do TSE. Esse foi o maior quantitativo de indígenas concorrendo a vagas eletivas na história do Brasil.
Já o número de candidaturas indígenas femininas quase triplicou em duas eleições, passando de 29 em 2014 para 85 em 2022, segundo registro do sistema do TSE. No primeiro ano, elas representavam 0,36% do total de 8.123 candidaturas femininas. Neste ano, elas somam 0,88% do total de 9.597 mulheres candidatas e o aumento entre as indígenas é de 193%. Além disso, das 30 candidaturas que compõem a Bancada Indígena a maioria é de mulheres, totalizando 16 candidaturas femininas.
Reforçamos ainda o resultado histórico para o movimento indígena nessas eleições. Os estados de São Paulo e Minas Gerais elegeram respectivamente Sônia Guajajara e Célia Xakriabá como representantes no Congresso Nacional, mais especificamente, na Câmara dos Deputados. O saldo representa um crescimento de 100% em relação à última eleição proporcional, em 2018, quando a deputada federal Joênia Wapichana tornou-se a primeira mulher indígena eleita como deputada federal.
Também vale ressaltar que as candidaturas que fizeram parte da Bancada Indígena da Apib obtiveram mais de 446 mil votos nas urnas. É possível que tal número tivesse sido ainda maior caso não tivessem ocorrido óbices ao exercício dos direitos políticos dos povos indígenas. A Apib recebeu diversas denúncias e relatos de comunidades que sofreram o cerceamento do direito ao voto pela falta de transporte e ameaças relacionadas à disputa de território, anteriores ao período eleitoral, que, em alguns casos, chegaram ao ponto de isolar aldeias em um cerco armado. Diante disso, a organização solicitou ao TSE que os Tribunais Regionais Eleitorais dos estados, as zonas e os cartórios eleitorais dos municípios fossem notificados quanto à providência de medidas de apoio logístico necessárias para garantir a segurança e o transporte para o exercício do voto pela população indígena em todo o território nacional durante o segundo turno das Eleições 2022.
GRUPO TÉCNICO POVOS INDÍGENAS – GOVERNO DE TRANSIÇÃO
Após a vitória de Lula no dia 30 de outubro, a Articulação iniciou ações de reconstrução da agenda indígena no Governo Lula. O primeiro passo foi a realização de mais uma edição da reunião do Fórum Nacional de Lideranças Indígenas, realizado entre os dias 3 e 5 de novembro em Brasília. Na ocasião, cerca de 60 representantes das sete organizações regionais que compõem a Apib discutiram ações significantes que balizaram a criação de um plano de governança indígena para os 100 primeiros dias de Governo Lula, tendo como norte a importância da participação do movimento indígena nos espaços de decisão, como na transição de governo e demais partes da estrutura governamental dos próximos quatro anos.
O plano teve como base as propostas apresentadas na Carta aberta do Acampamento Terra Livre 2022 a Lula, à época pré-candidato à presidência do Brasil, bem como o documento Brasil 2045 – Construindo uma Potência Ambiental, Vol 1 – propostas para política Ambiental Brasileira, elaborado pelas organizações que integram o Observatório do Clima, dentre elas a Apib. O documento é dividido em seis eixos, sendo eles: 1. Direitos Territoriais Indígenas: Demarcação e Proteção Territorial; 2. Re-estabelecimento de/ou criação de instituições e políticas sociais para povos indígenas; 3. Retomada e/ou criação de instituições e espaços de participação e/ou controle social; 4. Agenda Legislativa: interrupção de iniciativas anti-indígenas no congresso e ameaças no judiciário; 5. Agenda ambiental e 6. Articulação e incidência internacional e composição de alianças e parcerias.
Além da construção do plano de governança, no encontro as lideranças estabeleceram a criação de um grupo de trabalho que acompanhasse a transição presidencial e a subsidiasse com as propostas do movimento. Para que representantes indicados pela Apib fizessem parte do GT, no entanto, foi necessário fazer pressão.
Durante quatro semanas, entre novembro e dezembro, integrantes do Grupo Técnico Povos Indígenas se reuniram de forma virtual e presencial no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB), em Brasília, para analisar a atual situação da política indigenista do Estado brasileiro e definir medidas a serem tomadas pelo novo governo. Lideranças indígenas, servidores da Funai, juristas, procuradores, advogados e organizações e comitivas indigenistas também foram recebidas pelo GT em oitivas que tinham o objetivo de ampliar e enriquecer o debate e a construção do relatório final. As oitivas trataram de temas específicos como as pautas das mulheres, juventude, saúde e educação.
No dia 12 de dezembro, o Grupo Técnico Povos Indígenas entregou o seu relatório final para o gabinete de transição do Governo Lula. O documento pede a revogação de leis anti-indígenas e indica pontos de alerta para o novo governo. Entre os atos normativos anti-indígenas indicados para serem revogados imediatamente está o parecer normativo 001/2017, publicado pelo ex-presidente Michel Temer, que prevê o Marco Temporal. Além da revogação deste parecer, mais seis atos normativos devem ser revogados imediatamente e outros quatro durante os 100 primeiros dias de Governo Lula. Um exemplo disso é o Decreto 10.965 que facilita a mineração dentro de Terras Indígenas e a Portaria 3.021 do Ministério da Saúde que determina a exclusão da participação social nos Conselhos Distritais de Saúde Indígena.
O relatório apresentado também possui 12 pontos de alerta que devem ser observados pelo Governo Lula. Destaca-se a demarcação de 13 terras indígenas que devem ser homologadas nos primeiros 30 dias de governo, pois não apresentam nenhuma pendência jurídica e estão prontas para terem o processo de demarcação concluído.
Outra questão relevante aos povos indígenas no novo governo diz respeito à promessa de campanha do presidente eleito de criar um ministério para os povos indígenas, realizada em passagem de Lula no Acampamento Terra Livre, em abril deste ano, e reiterada em seu pronunciamento durante a COP 27. Durante as últimas semanas, tal promessa acabou sendo alvo de polêmicas, tendo em vista declaração do novo presidente de que talvez o ministério na verdade se tornasse uma secretaria especial ligada à Presidência.
Além disso, havia a incerteza a respeito do protagonismo dos povos indígenas no comando da pasta. Neste sentido é que a Apib encaminhou a Lula uma carta aberta contendo a indicação de uma lista tríplice para o Ministério dos Povos Indígenas, com os nomes a seguir: Sonia Guajajara, Joenia Wapichana e Weibe Tapeba.
Tal posicionamento da Apib decorreu da crença da importância da escuta e participação do movimento indígena nesse momento de reconstrução da democracia no Brasil, após o Golpe de 2016 e os anos de política de morte dos últimos quatro anos. Decorreu, também, da crença de que o Governo Lula será participativo e estará atento aos anseios do movimento indígena, que luta pelo fortalecimento dos direitos dos povos originários. Em 29 de dezembro, o presidente Lula anunciou Sonia Guajajara para comandar o Ministério dos Povos Indígenas, representando um momento histórico de princípio de reparação no Brasil.