14/mar/2022
Possível escassez de potássio é usada como desculpa por Bolsonaro e aliados para aprovação de medida que afeta diversos territórios
Reflexos da guerra entre Rússia e Ucrânia podem afetar as causas indígenas no Brasil, ameaçando a saúde de suas terras e dos povos originários. Os últimos dias têm sido permeados por discussões de lideranças políticas sobre o interesse de se explorar minério em territórios indígenas na Bacia do Amazonas e manifestações da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).
Na quarta-feira (9), o plenário da Câmara dos Deputados aprovou, por 279 votos a 180, o requerimento do líder do governo, deputado Ricardo Barros (PP-PR), para tramitação em regime de urgência do Projeto de Lei 191/20, sobre a mineração em terras indígenas.
Tudo teve início no dia 2 de março, quando o presidente da República, Jair Bolsonaro, publicou em sua conta do Twitter:

O potássio é um insumo importante na produção de fertilizantes e, com a guerra na Ucrânia, poderá se tornar escasso. Com essa justificativa, Bolsonaro e seus aliados intensificaram as ações em prol da aprovação do Projeto de Lei 191/20, que pretende “estabelecer as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos”. Em outras palavras, um projeto de lei que facilita a mineração em terras indígenas.
Segundo o advogado indígena Eloy Terena, coordenador jurídico da Apib, o presidente não só ignora a manifestação da vontade expressa dos povos indígenas, os principais afetados por essa medida, como desrespeita as normativas internacionais que regulam o tema da CPLI (Consulta Prévia, Livre e Informada). “Ou seja, as referidas medidas desrespeitam os direitos indígenas assegurados no direito nacional e internacional. O anseio do governo Bolsonaro em abrir fronteiras em terras indígenas para a mineração tem pulsão de morte. Ignora os dados que a ciência e a história apresentam sobre a tragédia humanitária anunciada. É a sobreposição do lucro insaciável em detrimento dos territórios indígenas”, diz Eloy, que afirma que o movimento indígena está analisando os meios mais adequados para discutir os aspectos de inconstitucionalidade, inconvencionalidade e ilegalidade que permeiam o projeto.
Para Eloy, são vários os riscos que a exploração minerária traz para os territórios, como a destruição do ecossistema, da fauna, da flora, e, por consequência, dos modos tradicionais de viver dos povos indígenas.
E o pior: a argumentação do presidente não só flerta com a inconstitucionalidade e ilegalidade, mas ainda por cima não faz sentido. Segundo Bruno Manzolli, pesquisador pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), as principais fontes de potássio no Brasil NÃO estão em terras indígenas. O mineral é mais comum fora delas. “Na Bacia do Amazonas, há uma região de 13 milhões de hectares com potencial para exploração de potássio, onde apenas 11% estão sobre terras indígenas demarcadas”, contextualiza Manzolli a partir de dados da ANM (Agência Nacional de Mineração), do Serviço Geológico do Brasil — CPRM (Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais) e da extinta Petromisa (Petrobrás Mineração S.A.) para embasar sua pesquisa.
Texto originalmente publicado no Portal Terra em 12/03/2022. Acesso em: https://www.terra.com.br/nos/por-que-a-guerra-na-ucrania-nao-pode-ser-um-pretexto-para-a-mineracao-em-terras-indigenas,7a063191738e972a6229f118cf4736ddp9b25d5n.html
07/mar/2022
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) alerta sobre a manobra política de Bolsonaro para legalizar crimes nos Territórios Indígenas, usando como desculpa a recente guerra iniciada entre Rússia e Ucrânia. O argumento é de que o conflito entre os dois países europeus irá prejudicar o comércio de fertilizantes à base de potássio e que é preciso aprovar um Projeto de Lei (PL) no Congresso Nacional para explorar o mineral em territórios indígenas.
É verdade que o Brasil é dependente da importação de fertilizantes – cerca de 85% do que utiliza, sendo a Rússia responsável por 23% dessa importação. Canadá, Belarus, Rússia e China respondem por 80% da produção de cloreto de potássio global e qualquer interferência nas vendas de um desses fornecedores causa desequilíbrio de preços. Porém, a própria ministra da agricultura do Brasil, a ruralista Tereza Cristina, declara que temos insumos suficientes até outubro, o que não é um ponto de preocupação para setores do agronegócio.
Bolsonaro utiliza a comoção mundial sobre este conflito para rifar os direitos territoriais dos Povos Indígenas apresentando uma FALSA solução para uma crise de preços dos fertilizantes. A mentira que está sendo usada para tentar passar a boiada foi feita no dia 2 de março, mesmo dia em que Bolsonaro comemorou a venda de mais uma fábrica de fertilizantes da Petrobrás. A venda de três plantas de produção de fertilizantes da estatal, desde o Governo Temer, aumentou a necessidade de importação destes produtos, expondo o Brasil a situações de vulnerabilidade externa.
A existência de potássio na Amazônia já foi registrada há décadas, porém o mineral se encontra em condições de difícil extração. Mesmo que aprovada, a viabilidade desse empreendimento teria altos custos logísticos e operacionais, podendo implicar em seu custo ser ainda maior do que sua importação. Mesmo que o PL 191 fosse aprovado agora, levaria anos até a exploração das jazidas, mais uma vez não justificando a abertura de mineração nos territórios indígenas para esse fim no momento. Além de tudo, teria um impacto gigantesco nas taxas de desmatamento e nos direitos dos povos indígenas e comunidades locais, aumentando ainda mais os conflitos territoriais.
A Apib junto com a Amazon Watch publicaram no último mês um relatório (https://cumplicidadedestruicao.org/) que demonstra as ameaças causadas pela mineração nos Territórios Indígenas. O PL 191 pode liberar a mineração em Terras Indígenas, retirando o poder dos povos originários de vetar esta atividade. Este projeto contradiz a Constituição e o direito internacionalmente reconhecido à autodeterminação dos povos indígenas garantido pela Convenção 169 da OIT.
Segundo pesquisadores, a aprovação do PL 191 pode causar a perda de 160 mil km² de floresta na Amazônia, área maior que a superfície da Inglaterra. O desmatamento ligado à mineração na Amazônia já aumentou 62% em 2021, em relação a 2018. A contaminação das águas, solos e deterioração da saúde de diversos povos indígenas e comunidades tradicionais segue avançando com casos de vazamentos no Maranhão e no Amazonas em 2021. A mineração também é uma das atividades que mais mata defensores do meio ambiente, com 722 casos de conflito e 17 mortos em 2020.
Exigimos o fim da agenda anti-indígena no Congresso Nacional. A atual crise na Europa não pode ser usada como desculpa para massacrar os direitos dos povos indígenas e ameaçar o futuro do planeta.
Chega da política de morte de Bolsonaro que utilizou a pandemia da Covid-19 para atacar e continuar o genocídio contra os povos indígenas.
02/mar/2022
Durante os dias 7, 8 e 9 de fevereiro de 2022, a Kuñangue Aty Guasu (Grande Assembleia das Mulheres Kaiowá e Guarani), o Observatório da Kuñangue Aty Guasu (O.K.A), a Defensoria Pública da União (DPU) via Defensoria Regional de Direitos Humanos (DRDH) a Defensoria Pública do estado de Mato Grosso do Sul (DPE-MS) via Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial e Étnica (NUPIIR) percorreram três diferentes territórios Kaiowá e Guarani, em Mato Grosso do Sul, nomeadamente: 1) Reserva Indígena de Amambai; 2) Terra Indígena Rancho Jacaré; 3) Retomada Itay Ka’agwyrusu.
O objetivo deste percurso foi realizar o acompanhamento dos recentes casos de incêndios com indícios de crime provocados contra as casas de rezas (oga pysy), assim como agressões, ameaças, torturas e tentativas de homicídio contra nhanderu (rezadores) e feminicídio contra as nhandesy (rezadoras), vindo de membros de igrejas pentecostais – em específico, a Igreja Deus é Amor. Nas referenciadas localidades, possibilitamos evidências via registro audiovisual, levantamento de dados, produção de relatórios, acompanhamento jurídico, antropológico e psicossocial, assim como os encaminhamentos das incumbências da DPU e DPE para dar sequência à resolução dos fatos ocorridos, no sentido de impedir a continuidade das violações de direitos dos povos originários materializada na queima de um dos mais sagrados símbolos da ancestralidade Kaiowá e Guarani. As consequências das violências incluem danos físicos, espirituais, psicológicos e materiais contra os guardiões de nossa ancestralidade, representados nas figuras dos anciãos e anciãs violentadas junto com parcela considerável de suas famílias.
acesse o relatório completo aqui
22/fev/2022
Brasília, 22 de fevereiro de 2022 – Apesar dos anúncios recentes de grandes mineradoras de que abandonariam seus interesses em territórios indígenas, milhares de requerimentos minerários com interferências nessas áreas seguem ativos na base de dados da Agência Nacional de Mineração (ANM). A abertura de terras indígenas para a mineração e o garimpo está no centro da agenda do governo Bolsonaro.
Com o avanço no Congresso dos projetos de lei como o PL 191/2020 e o PL 490/2007, esses requerimentos podem garantir às mineradoras prioridade na exploração desses territórios. É o que revela o novo relatório Cumplicidade na Destruição IV – Como mineradoras e investidores internacionais contribuem para a violação dos direitos indígenas e ameaçam o futuro da Amazônia, lançado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a organização Amazon Watch.
As duas organizações mapeiam os interesses das grandes mineradoras em terras indígenas desde 2020 e garantem que, mesmo após os declarações públicas de gigantes como a Vale e a Anglo American de que abriram mão dos seus pedidos para pesquisa e exploração mineral nesses territórios, muitos dos seus requerimentos seguem ativos no sistema da ANM – em alguns casos, até aumentaram. Além disso, alguns requerimentos foram redesenhados para que as áreas de exploração fiquem contíguas às terras indígenas, ainda causando enormes impactos. Enquanto isso, as principais instituições financeiras globais estão capacitando o destrutivo setor de mineração da Amazônia com bilhões de dólares em investimentos, empréstimos e subscrição.
O documento foca nos interesses minerários em terras indígenas de nove mineradoras: Vale, Anglo American, Belo Sun, Potássio do Brasil, Mineração Taboca e Mamoré Mineração e Metalurgia (ambas do Grupo Minsur), Glencore, AngloGold Ashanti e Rio Tinto. Juntas, elas possuíam em novembro de 2021 um total 225 requerimentos minerários ativos com sobreposição em 34 Terras Indígenas – uma área que corresponde a 5,7 mil quilômetros quadrados – ou mais de três vezes a cidade de Brasília ou de Londres.
“Enquanto os Povos Indígenas lutam para garantir o direito à vida, tanto em nossos territórios quanto em todo o planeta, o governo brasileiro e as empresas da mineração tentam avançar um projeto de morte. Não é possível seguirmos convivendo com atividades que obrigam os povos indígenas a chorar o assassinato cotidiano de seus parentes, ou a testemunhar a destruição de biomas dos quais são os guardiões para avançar um projeto que não gera desenvolvimento real, e sim destruição e lucros nas mãos de poucos”, afirma Sonia Guajajara, da coordenação executiva da Apib.
As terras indígenas mais afetadas por esses pedidos são a TI Xikrin do Cateté (PA) e a TI Waimiri Atroari (AM), ambas com 34 requerimentos cada, seguidas pela TI Sawré Muybu (PA), com 21. A etnia mais impactada por estes pedidos de mineração é a Kayapó (PA), com 73 requerimentos. O Pará é o estado com a maior concentração de pedidos, que duplicaram entre julho e novembro de 2021. Os dados foram obtidos a partir de uma parceria com o projeto Amazônia Minada, do portal InfoAmazonia, que resultou em um painel interativo – lançado junto com o relatório – que permite pesquisa em tempo real na base de dados da ANM.
“É preciso um entendimento geral de que essas áreas não estão disponíveis para exploração mineral, e nem devem estar, tanto pelo respeito ao direito constitucional de autodeterminação dos povos indígenas sobre os seus territórios quanto pela sua importância para combater as mudanças climáticas e garantir a vida no planeta. O mesmo vale para territórios tradicionais e outras áreas de preservação. Esse entendimento deve vir do Estado, mas também das empresas (que têm totais condições de saber quais áreas estão pleiteando para sequer protocolar esses requerimentos), e das corporações financeiras que as financiam”, complementa Dinaman Tuxá, da coordenação executiva da Apib.
Cumplicidade na Destruição IV detalha ainda, em estudos de caso, os impactos e as violações de direitos protagonizados por cinco dessas mineradoras – Vale, Anglo American, Belo Sun, Potássio do Brasil e Mineração Taboca. Com apoio do Observatório da Mineração, foram resgatadas as trajetórias desses conflitos e seus desdobramentos atuais, que vão desde a invasão de territórios tradicionais à contaminação por metais pesados e o desrespeito ao direito de consulta e consentimento livres, prévios e informados. O relatório mostra, com testemunhos das comunidades afetadas que desafiam as declarações oficiais das empresas sobre sua atuação, como a presença e a atuação dessas corporações desfigura para sempre a vida desses povos e comunidades e podem contribuir efetivamente para a destruição dos ecossistemas e para o aprofundamento das mudanças climáticas.
“Os danos da mineração ao meio ambiente e à vida dos povos da floresta são brutais e pioraram muito no governo Bolsonaro. No ano passado, o desmatamento ligado à mineração na Amazônia aumentou 62% em relação a 2018, ano em que ele foi eleito. A aprovação do Projeto de Lei 191/2020 pode causar a perda de 16 milhões de hectares de floresta amazônica, além de colocar em risco a vida de milhares de povos indígenas e tradicionais. Mais do que nunca, precisamos comprometer além do governo brasileiro, as empresas do setor, seus investidores e a comunidade internacional para impedir o aprofundamento da destruição da Amazônia e dos ataques aos direitos dos povos indígenas”, afirma Ana Paula Vargas, diretora de Programas para o Brasil da Amazon Watch.
INSTITUIÇÕES NORTE-AMERICANAS E BRASILEIRAS LIDERAM O FINANCIAMENTO DAS MINERADORAS
Por trás dessas empresas e projetos que colaboram para a destruição da Amazônia e violação de direitos indígenas, há o financiamento de dezenas de instituições financeiras. Nesta edição do Cumplicidade na Destruição, elas identificaram que, nos últimos cinco anos, as empresas destacadas no relatório receberam um total de USD 54,1 bilhões em financiamento do Brasil e do exterior.
Corporações sediadas nos Estados Unidos continuam entre as principais financiadoras cúmplices na destruição, como mostrado nos relatórios anteriores da série. Juntas, as gestoras Capital Group, a BlackRock e a Vanguard investiram USD 14,8 bilhões nas mineradoras com interesses em terras indígenas e histórico de violações de direitos. Destaca-se também a participação de instituições brasileiras no financiamento da grande mineração: o fundo de pensão brasileiro Previ (Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil) é o responsável pelos mais altos investimentos nestas mineradoras, com mais de USD 7,4 bilhões, seguido pelo banco Bradesco, com quase USD 4,4 bilhões e a Caixa Econômica Federal, com USD 786 milhões.
A empresa que mais recebeu investimentos e empréstimos nesse período foi a Vale, com USD 35,8 bilhões, mostrando que nem mesmo os sucessivos desastres em Mariana e Brumadinho diminuíram o apetite dos investidores com relação à mineradora. Os dados, obtidos com com apoio da instituição holandesa Profundo Research and Advice, mostram também o grande interesse do Canadá em financiar a mineração no Brasil. O Royal Bank of Canada, maior banco privado do país, injetou USD 512 milhões nas mineradoras, e é o principal investidor institucional do Projeto Volta Grande, de mineração de ouro, da empresa Belo Sun, considerado socialmente e ecologicamente inviável.
“A pandemia de Covid-19, ao invés de frear o ímpeto extrativista, impulsionou o setor mineral a bater recordes de lucros nos últimos dois anos. Esses bancos e fundos de investimentos ainda consideram que investir em mineração é um bom negócio, ignorando o extenso histórico de violações e impactos provocados por esse setor. Embora muitos desses atores já tenham sido listados em edições anteriores desta série, este novo relatório demonstra a urgência com que eles precisam se comprometer com mudanças reais a fim de deter o rastro de destruição da mineração”, afirma Rosana Miranda, assessora de campanhas da Amazon Watch.
Para acessar ao relatório na íntegra, aos vídeos e ao painel do Amazônia Minada, acesse: www.cumplicidadedestruicao.org
19/jan/2022
Foto: Alass Derivas
Assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lembra que novo ministro do STF nunca demonstrou apreço pelos povos originários; o próprio Bolsonaro adiantou que ele deve seguir a mesma linha de Nunes Marques no julgamento do Marco Temporal
Por Mariana Franco Ramos
Como era de se esperar, líderes indígenas não receberam bem a aprovação de André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal (STF). Alinhado ao agronegócio e ao presidente Jair Bolsonaro, o ex-ministro da Justiça e da Advocacia-Geral da União (AGU) assumiu o posto nesta quinta-feira (16) sem refutar tudo o que já fez contra os povos originários. E o histórico é longo.
“Ou seja, podemos esperar dele exatamente o que ele é e o que demonstrou ser”, resume o advogado Luiz Henrique Eloy, o Eloy Terena, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “É mais provável que ele siga atuando como ministro em favor da tese do Marco Temporal e contra os direitos indígenas em geral”, completou.
O que se discute na ação é se, para o reconhecimento de uma área como território indígena, é necessária a comprovação de que os indígenas ocupavam o local no momento da promulgação da Constituição de 1988. “Ele nunca demonstrou preocupação ou apreço por esse tema, pelos povos indígenas, e em suas atuações sequer rebateu com consistência os argumentos apresentados”, comentou Terena.
MINISTRO TEVE APOIO MACIÇO DA BANCADA RURALISTA
Após a sabatina no dia 1º, Mendonça recebeu 47 votos favoráveis e 32 contrários dos senadores. Apesar de a votação ser fechada, é possível afirmar, pelos posicionamentos públicos, que a maioria dos parlamentares favoráveis a ele integra a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), braço institucional da bancada ruralista, ou é alinhado a ela, como mostrou reportagem do observatório: “Inimigo dos indígenas e alinhado ao agronegócio: quem é o novo ministro do STF“.
Em outubro, Bolsonaro adiantou, durante café da manhã com membros da FPA, que o novo ministro deve atuar de forma coordenada com Nunes Marques, outro indicado por ele e que foi favorável à tese, em oposição ao relator do caso, Edson Fachin. “Essas pautas ele (Nunes Marques) está conosco, tanto é que ele empatou o jogo com o Fachin, 1 a 1, no Marco Temporal”, disse. “O André Mendonça, uma vez aprovado pelo Senado, vai na mesma linha”.
Bolsonaro quer ainda no STF pelo menos mais dois ministros alinhados aos interesses da bancada ruralista.
NA AGU, ATUAÇÃO ENFRAQUECEU MINORIA JÁ VILIPENDIADA HÁ ANOS
No ano passado, a série Esplanada da Morte, sobre a necropolítica de Bolsonaro e sua implicação no genocídio em curso, lembrou que o novo membro do Supremo foi responsável por tocar uma política de omissão em relação aos direitos indígenas e de inoperância quando o assunto é a pandemia de Covid-19. O descaso passa pela falta de compromisso com a proteção dos territórios.
O caso levou a Apib e seis partidos políticos (PSB, PSOL, PCdoB, Rede, PT, PDT) a entrarem com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 709) no STF. O documento denunciava a omissão e as falhas da União e demandava a elaboração de um plano emergencial para o controle da pandemia nas terras indígenas. “Lamentavelmente, o Estado brasileiro vem falhando gravemente no seu dever de proteger a saúde dos povos indígenas diante da Covid-19, gerando o risco de extermínio de muitos grupos étnicos”, dizia a ação.
O pedido liminar foi parcialmente aceito pelo relator, Luís Roberto Barroso, que obrigou o governo federal a apresentar uma série de medidas para enfrentar a situação. “Lembremos que a AGU vem tendo papel fundamental na ADPF 709”, destaca o advogado. “E, como de praxe, para enfraquecer a mesma minoria que vem sendo vilipendiada há anos. “André Mendonça na questão indígena tem um passado de atuação forte contra os indígenas, contra a Constituição de 1988”.
Na opinião de Eloy Terena, surpresa vai ser se Mendonça se der por suspeito ou mudar suas antigas posições “de servidão” ao governo:
— Na sabatina, ele disse que terá o gabinete aberto aos senadores. Terá também o gabinete aberto aos indígenas? Mas não só para recepções em que ele pose para fotos. Audiências em que leve a sério os argumentos que vêm sendo apresentados pelos indígenas no STF. Porque como AGU ele não foi apenas surdo aos argumentos, ele atuou contra. Será diferente na posição de ministro?
| Mariana Franco Ramos é repórter do De Olho nos Ruralistas. |
18/jan/2022
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), entrou nesta sexta (14), com uma petição na ADPF 709 em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai). Desde o dia 29 de dezembro de 2021, o órgão responsável pela política indigenista do Governo Federal excluiu as Terras Indígenas (TIs) não homologadas das atividades de proteção. Cerca de 239 territórios tradicionais estão afetados diretamente com a medida e 114 povos em isolamento voluntário e de recente contato. Além da petição na ADPF 709, a Apib entrou com uma representação no Ministério Público Federal (MPF). Outras 15 organizações indígenas também entraram com pedido no MPF por improbidade administrativa contra a Funai.
A medida da Funai foi publicada pelo Coordenador Geral de Monitoramento Territorial, Alcir Teixeira, para orientar as Coordenações Regionais, os Serviços de Gestão Ambiental e Territorial (SEGATs) e as Coordenações Técnicas Locais (CTLs). A decisão foi embasada em um entendimento jurídico da Procuradoria Federal Especializada (PFE), da Funai, que condiciona a execução de atividades de proteção territorial somente após o término do procedimento administrativo demarcatório, ou seja, após a homologação da demarcação por Decreto presidencial e o registro imobiliário em nome da União.
“Com este ato inconstitucional, o Governo Bolsonaro e sua corte chancela e expõe de vez os povos indígenas a todo tipo de violência cometida pelas diversas organizações criminosas que continuam a invadir os territórios indígenas: grileiros, madeireiros, pecuaristas, garimpeiros, mineradoras, arrendatários, enfim, empresas e corporações que visam explorar economicamente os territórios indígenas”, alerta a Apib em nota de repúdio sobre a medida.
De acordo com a Apib, o governo Bolsonaro afronta de forma contínua a Constituição Federal para atacar os direitos dos povos indígenas. Para reverter a nova medida publicada pela Fundação, a entidade pede que o STF suspenda os efeitos da determinação publicada pela Funai. A entidade também pede ao MPF que seja aberto um inquérito civil contra Alcir Teixeira, coordenador da Funai responsável pela publicação da ordem, para que possíveis crimes administrativos cometidos contra os direitos dos povos indígenas sejam investigados e punidos.
Na petição, a assessoria jurídica da APIB aponta “ que o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro, responsável pela implementação da política indigenista (política pública para povos indígenas), e que tem por missão precípua, a defesa dos direitos e interesses dos povos indígenas e suas terras, está adotando uma postura da defesa mínima, exatamente no momento político em que as terras indígenas estão sob o alvo de interesses políticos e econômicos que recaem sobre tais territórios. É público e notório os altos índices de desmatamento, invasões e grilagem nas terras indígenas, já exaustivamente denunciados nos presentes autos, assim como no cenário internacional, tanto na ONU quanto no Sistema Interamericano de Direitos Humanos e, mais recentemente, junto ao Tribunal Penal Internacional (TPI)” .
A determinação da Funai significa o abandono de um terço das TIs existentes no Brasil e impactam justamente as mais vulneráveis juridicamente, que sofrem contínuas invasões e que abrigam 114 povos indígenas em isolamento voluntário e de recente contato.
Acesse a petição completa da Apib ao STF aqui
Acesse a representação completa da Apib ao MPF aqui
18/jan/2022
A Articulação dos povos indígenas do Brasil (APIB) manifesta seu veemente repúdio e denuncia junto à opinião pública nacional e internacional os sucessivos atos jurídicos e administrativos com os quais o presidente Jair Bolsonaro tenta consumar o seu plano genocida contra os nossos povos. Dessa forma, ele cumpre fielmente o que já declarava na época da campanha eleitoral: “Pode ter certeza que, se eu chegar lá (…) não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”.
Desses, o último ato foi a publicação do Ofício Circular Nº 18 datado de 29 de dezembro de 2021 em que que a Fundação Nacional do Índio (Funai), por meio do Coordenador Geral de Monitoramento Territorial, Alcir Teixeira, informa às Coordenações Regionais, aos Serviços de Gestão Ambiental e Territorial (SEGATs) e às Coordenações Técnicas Locais (CTLs) sobre o entendimento jurídico da Procuradoria Federal Especializada (PARECER n. 00013/2021/COAF-CONS/PFE-FUNAI/PGF/AGU) “acerca da execução de atividades de Proteção Territorial em Terras Indígenas (TIs) não homologadas.”
O entendimento estabelece que a execução de atividades de proteção territorial deve ocorrer somente após o término do procedimento administrativo demarcatório, ou seja, após a homologação da demarcação por Decreto presidencial e o registro imobiliário em nome da União.
Com este ato inconstitucional o Governo Bolsonaro chancela e expõe de vez os povos indígenas a todo tipo de violência cometida pelas diversas organizações criminosas que continuam a invadir os territórios indígenas: grileiros, madeireiros, pecuaristas, garimpeiros, mineradoras, arrendatários, enfim, empresas e corporações que visam explorar economicamente os territórios indígenas. A medida atingirá pelo menos 139 terras indígenas e 114 povos indígenas em isolamento voluntário e de recente contato cujos territórios ainda estão pendentes de homologação.
O governo Bolsonaro, com seus disparates e reducionismo jurídico, comete grave afronta à Constituição Federal e leis correlatas como a Lei 6.001 de 1973 (Estatuto do Índio) e a Lei nº 5.371/1967 que define as atribuições da Funai, dentre as quais estão: garantir aos povos indígenas a posse permanente das terras que habitam e o usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nela existentes; e, “exercitar o poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à proteção do índio.”
A Carta Magna afirma de forma cristalina: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Já o Estatuto do Índio estabelece: “O reconhecimento do direito dos índios e grupos tribais à posse permanente das terras por eles habitadas, nos termos do artigo 198, da Constituição Federal, independerá de sua demarcação, e será assegurado pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, atendendo à situação atual e ao consenso histórico sobre a antigüidade da ocupação, sem prejuízo das medidas cabíveis que, na omissão ou erro do referido órgão, tomar qualquer dos Poderes da República”(Art. 25).
Por isso, na perspectiva progressiva do direito, o ministro relator Ayres Brito, por ocasião do julgamento pelo STF da Petição 3388/RR (caso Raposa Serra do Sol) afirmara taxativamente que os direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram reconhecidos, e não simplesmente outorgados, visto que o ato de demarcação se torna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva.
No mesmo sentido, mais recentemente, em agosto de 2021, o Ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADPF 709, de iniciativa da APIB, afirmou de forma contundente: “É inaceitável a postura da União com relação aos povos indígenas aldeados localizados em Terras Indígenas não homologadas. A identidade de um grupo como povo indígena é, em primeiro lugar, uma questão sujeita ao autorreconhecimento pelos membros do próprio grupo. Ela não depende da homologação do direito à terra. Ao contrário, antecede o reconhecimento de tal direito.”
Dado este reiterado reconhecimento do direito originário dos povos indígenas (isto é anterior a quaisquer outros, inclusive à criação do Estado Nacional), o entendimento defendido pela Funai além de rotundamente inconstitucional, deixa claro a opção do órgão de se eximir de seus deveres institucionais de proteção aos direitos territoriais indígenas e a serviço de quem está, propósito este externado na Nota à imprensa divulgado pelo órgão em 5 de janeiro do corrente: “No que se refere a áreas ocupadas por indígenas, mas não homologadas, não é razoável a atuação da Funai em ações de fiscalização territorial, pois tais áreas, em sua grande maioria tituladas em nome de particulares, não integram o patrimônio público (não são bens da União), uma vez que não foi ultimado o procedimento demarcatório, com definição de seu perímetro, e quase sempre são objeto de litígios judiciais possessórios ou dominiais entre indígenas e não indígenas.”.
A Funai, burlando o seu próprio Estatuto, coloca-se assim a serviço de interesses particulares que visam se apropriar e explorar não apenas as terras não homologadas mas também as já regularizadas, situação fartamente verificada pelas crescentes invasões em todos os biomas, principalmente na Amazônia, com graves riscos à sobrevivência física e cultural dos nossos povos e comunidades.
Diante desse cenário, a Apib convoca a todos os povos e organizações indígenas das distintas regiões do país a se mobilizarem visando a suspensão dos efeitos deste novo ato anti-indígena da Funai, portanto do governo Bolsonaro. Ato que atenta contra os direitos indígenas, ignorando que a demarcação das terras é apenas uma formalidade, um ato administrativo de reconhecimento do direito originário, nato, dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, e jamais uma concessão do Estado, que detenta, por sinal, a propriedade das terras indígenas, cabendo aos povos o direito de posse e de usufruto exclusivo, razão pela qual é responsabilidade da União a demarcação e devida proteção e vigilância desses territórios.
Às entidades e setores da sociedade solidárias com a causa dos nossos povos solicitamos que somem conosco, com a nossa luta, pois a garantia do nosso direito territorial é também garantia do bem viver, não apenas nosso, mas de toda a humanidade.
Brasília – DF, 12 de janeiro de 2022.
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Acesse a nota em PDF aqui: Nota Pública sobre exclusão de terras indígenas não homologadas das atividades de proteção
Leia a petição enviada ao STF: Pet. sobre parecer da Funai – TI não homologadas.docx
Acesse a representação completa da Apib ao MPF: REPRESENTAÇÃO APIB contra parecer da Funai
14/jan/2022
No dia 17 de dezembro de 2021, foi divulgada a data da sessão de julgamento do STF que deverá decidir sobre a aplicação da tese do marco temporal, como ficou conhecida, aos processos de demarcação de terras indígenas no Brasil: 23 de junho de 2022.
A tese do marco temporal é uma interpretação defendida por ruralistas e interessados na exploração de terras indígenas que, caso aplicada, restringe severamente o direito das comunidades às terras que tradicionalmente ocupam, previsto no artigo 231 da Constituição.
Eleito com um discurso racista e contrário à demarcação das terras indígenas – Bolsonaro chegou a afirmar em 2017 que não demarcaria “um centímetro a mais de terra indígena” –, o atual Presidente da República já anunciou que vai “tomar uma decisão” caso o STF decida a favor das comunidades indígenas.
Bolsonaro também indicou dois ministros para o Supremo Tribunal Federal: Nunes Marques, que tomou posse em agosto do ano passado, e André Mendonça, que tomou posse no dia 16/12/2021, e já declarou inclusive contar com o suporte do último em julgamentos estratégicos como o do marco temporal.
Mas o que é o marco temporal e por que essa tese viola o direito das comunidades indígenas às suas terras tradicionais? E de onde vem a competência do STF pra proferir esse tipo de decisão?
O julgamento sobre a TI Raposa Serra do Sol e o caso Xokleng vs. Estado de Santa Catarina.
Desde a colonização, foram diversas as formas como o Estado tratou as comunidades indígenas, passando do extermínio direto e escancarado e a escravização até uma política de “assimilação” que sugeria converter o indígena em força de trabalho, esperando que, com isso, abrisse mão de sua identidade, cultura, práticas e costumes ancestrais.
A ditadura militar acirrou essa política integracionista que transformou o indígena em inimigo público e percebia a sua presença como obstáculo ao progresso: para dar um exemplo, só na construção da transamazônica, chamada de “legado” dos militares por Bolsonaro, cerca de 8 mil indígenas foram mortos, cortando terras de 29 etnias, sendo 11 de povos isolados. É desse período a criação da FUNAI – Fundação Nacional do Índio e do Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973).
Com a Constituição de 1988, as comunidades indígenas conquistaram o reconhecimento de seus “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, conforme o texto do art. 231. A constituição não fixou nenhum marco temporal pra que a terra fosse considerada indígena.
Por isso, terra tradicionalmente ocupada é aquela utilizada pela comunidade para realizar suas atividades tradicionais e de subsistência, independente do tempo de ocupação, como está na Convenção nº 169 da OIT, já que esses povos são constantemente expulsos e ameaçados em seus territórios.
Contudo, em 2009, no julgamento do caso da terra indígena Raposa Serra do Sol, o STF entendeu que a terra pertencia à comunidade porque já estava sendo ocupada quando a Constituição foi promulgada, em 05/10/1988, além de fixar inúmeras condicionantes à demarcação de terra indígena.
Dessa forma, ao fixar um marco temporal que não estava na Constituição, o STF atribuiu um ônus às comunidades indígenas que não foi estabelecido pelo legislador constituinte, nem consta de qualquer lei, o que, ao violar a regra geral de interpretação dos direitos fundamentais prevista no art. 5º, inciso II, da Constituição de 1988, acaba transferindo para as populações indígenas a conta histórica do genocídio e das remoções forçadas.
Mesmo que a decisão proferida pelo STF no caso Raposa Serra do Sol não tenha efeito vinculante e o próprio STF tenha reconhecido em 2013 que esse marco só se aplicava àquela decisão, a Advocacia-geral da União – AGU vem defendendo a aplicação irrestrita das condicionantes utilizadas naquele caso, de modo que só fosse considerada terra indígena aquela que estava sendo ocupada em 05/10/1988, entendimento que vem sendo utilizado em ações de reintegração de posse e expulsões, como é o caso do processo do Estado de Santa Catarina contra o povo indígena Xokleng.
Essa é a tese que está em discussão no STF.
A discussão sobre a constitucionalidade do chamado “microssistema de precedentes judiciais obrigatórios”
O STF atribuiu repercussão geral ao RE 1.017.365 – processo Xokleng vs. Estado de Santa Catarina. Isso quer dizer que a decisão tomada pode constituir precedente obrigatório em todos os processos que envolvam direito dos povos indígenas a seus territórios ancestrais.
É importante chamar a atenção para a diferença entre a decisão vinculante do STF e o precedente judicial obrigatório: a Constituição de 1988 atribuiu ao STF a competência para tomar decisões dotadas de eficácia vinculante, ou seja, que devem ser observadas por todo o judiciário e administração pública: são apenas as chamadas súmulas vinculantes e as decisões tomadas em controle concentrado de constitucionalidade (artigos 102, § 2º, e 103-A da Constituição).
Contudo, o Código de Processo Civil de 2015 trouxe a possibilidade de que o STF e demais Tribunais tomassem decisões que tivessem o caráter de “precedente judicial obrigatório”, adotando uma tese que, mesmo não se enquadrando nas hipóteses trazidas inicialmente na Constituição, deveria ser aplicada a todos os processos semelhantes.
Essa possibilidade tem sido objeto de críticas e questionamentos quanto à sua constitucionalidade, de um lado, porque atribui ao judiciário a possibilidade de editar preceitos gerais e abstratos fora das hipóteses autorizadas pela Constituição; de outro, porque, atribuindo a essas decisões uma autoridade que não resulta do texto constitucional, também limita o direito à ampla defesa e ao contraditório das partes que não integraram o processo em que o precedente foi formado.
Isso quer dizer que mesmo as teses fixadas pelo STF em julgamento de recurso extraordinário com repercussão geral podem e devem ter sua aplicação questionada em cada caso, inclusive por meio de controle concreto de constitucionalidade, quando sua utilização resultar em violação a direitos constitucionais das comunidades indígenas.
O marco temporal contribui para a insegurança territorial das comunidades indígenas e representa um retrocesso jurídico e social
Mesmo sem ter sido finalizado o julgamento, o Ministério Público Federal estima que 27 processos de demarcação de terras indígenas já estão parados por conta do parecer da Advocacia-geral da União.
Essa situação de insegurança jurídica leva ao acirramento dos conflitos nas terras indígenas, das ameaças e violações de direitos humanos e de práticas de exploração ilegal em seus territórios, sem controle ou fiscalização do Estado, resultando em tragédias como a das duas crianças Yanomami que foram mortas sugadas por dragas de garimpo ilegal na comunidade Makuxi Yano, em outubro do ano passado.
Outro caso emblemático é o da TI Dzorobabé, da etnia Tuxá, na região de Rodelas-BA. Nos anos 80, a comunidade viu suas casas e parte de suas terras inundadas com a construção da Usina Hidrelétrica de Itaparica (atual UHE Luiz Gonzaga), sob a condução da Cia. Hidrelétrica do São Francisco – CHESF e com financiamento do Banco Mundial, que resultou no alagamento de 07 municípios e no reassentamento de cerca de 10,5 mil famílias.
Até hoje, as famílias Tuxá não foram indenizadas pelos danos decorrentes do reassentamento forçado, e são vítimas de processo de reintegração de posse sobre sua terra ancestral Dzorobabé, que está suspenso aguardando a decisão do STF sobre o marco temporal, muito embora a Justiça Federal já tenha condenado a União e a FUNAI a iniciarem o processo de demarcação.
Na contramão, Bolsonaro enviou ao Congresso, no início de 2020, o PL 191/2020, que espera facilitar a exploração de terras indígenas. O governo federal também desengavetou a proposta de construir a Usina nuclear de Itacuruba, um megaprojeto de instalação de 06 reatores nucleares às margens do Rio São Francisco, com impactos diretos sobre inúmeros povos indígenas e quilombolas.
A insegurança territorial também foi um dos fatores que dificultou o estabelecimento de barreiras sanitárias nas comunidades indígenas em meio à pandemia de coronavírus: atualizado até 24/12/2021, o Boletim epidemiológico da SESAI registrou 56.612 casos confirmados de COVID-19, com 847 óbitos.
O marco temporal transfere para as populações indígenas a conta histórica do Estado brasileiro pelo genocídio e pelas remoções forçadas
Embora o Governo Bolsonaro tenha representado o acirramento do desmonte institucional dos mecanismos de efetividade dos direitos indígenas, resultando no aumento das ameaças e violações de direitos humanos, a verdade é que, desde a Constituição de 1988, o Estado não cumpriu o dever de fazer a demarcação das terras indígenas.
Para ilustrar, no Governo Dilma Rousseff (PT – 2011-2016), com um programa marcadamente desenvolvimentista, apenas 21 TI foram homologadas, contra 79 no Governo Lula (PT – 2003-2010) e 145 no Governo FHC (PSDB – 1995-2002), ao passo que, após o golpe de 2016, apenas 1 TI foi demarcada, enquanto 536 territórios permanecem sem qualquer providência estatal para sua regularização.
A ratificação da tese do marco temporal pelo STF representaria um profundo golpe contra a autodeterminação e afirmação dos povos originários, confirmando a conivência e protagonismo do Estado com o massacre e criminalização dos povos indígenas do Brasil, concretizados na negligência com o dever constitucional de demarcar, proteger e respeitar os direitos dessas populações a permanecerem nas terras que tradicionalmente ocupam.
Essa conivência apenas denuncia as condições estruturais de formação do Estado brasileiro: sem a participação democrática dos povos originários e contra a sua presença. Revela também a cumplicidade dos partidários de um programa de desenvolvimento amparado na expansão da fronteira agrícola e na exploração de terras ancestrais, contra o poder de decisão e autodeterminação das comunidades tradicionais.
Ayrumã Flechiá Tuxá, indígena do povo Tuxá, estudante de direito na UFBa, membro do Serviço de Apoio Jurídico da UFBA (SAJU/UFBA) e do Instituto Mahin Gama;
Douglas Mota, advogado, membro do Instituto Mahin Gama.
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https://brasil.elpais.com/brasil/2021-08-20/nem-um-centimetro-a-mais-para-os-indigenas-e-para-a-biodiversidade-no-brasil-de-bolsonaro.html.
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/12/4971093-bolsonaro-sobre-novo-marco-temporal-nem-era-para-ser-discutido.html
Cf. Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Violação de direitos humanos dos povos indígenas. In. CNV, Relatório da Comissão Nacional da Verdade, v. III. Brasília: CNV, 2014. (Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_3_digital.pdf).
“Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.” Art. 14, 1, da Convenção nº 169 da OIT, consolidada no Dec. nº 10.088/2019 (disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10088.htm#art5).
Cf. Acórdão (decisão) proferido no julgamento do PET nº 3.388/RR (caso Raposa Serra do Sol), sob relatoria do Min. Carlos Ayres Britto, disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=630133.
O art. 5º, inciso II, da Constituição, dispõe que: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, de modo que o texto constitucional veda ao judiciário interpretações que imponham a particulares obrigações que não foram fixadas em Lei.
Cf. decisão do STF em julgamento de embargos de declaração na PET nº 3.388/RR (caso Raposa Serra do Sol), disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5214423.
A defesa, pela AGU, da extensão das chamadas “salvaguardas institucionais” adotadas no caso Raposa Serra do Sol (PET nº 3.388 RR) aos demais processos de demarcação de terras indígenas teve início ainda no Governo Dilma Roussef, com a Portaria nº 303/2012, e, após o golpe de 2016, foi ratificada no Parecer nº 0001/2017/GAB/CGU/AGU, disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/19185923/do1-2017-07-20-parecer-n-gmf-05–19185807.
Cf. NERY Jr, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 16ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 1983.
Cf. inteiro teor do PL nº 191/2020, disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1855498&filename=PL+191/2020.
Cf. Boletim epidemiológico da SESAI, disponível em: http://www.saudeindigena.net.br/coronavirus/mapaEp.php.
Cf. Relatório CIMI/2020 “Violência contra povos indígenas”, disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-violencia-povos-indigenas-2020-cimi.pdf.
11/jan/2022
Foto: Cícero Bezerra
A luta da APIB junto ao Supremo Tribunal Federal, com a ADPF 709, garantiu a inclusão dos povos indígenas como grupo prioritário na vacinação contra Covid-19.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), juntamente com suas organizações regionais de base, manifesta apoio à decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de iniciar a imunização contra Covid-19 de crianças de 5 a 11 anos. Nesse sentido, exigimos a inclusão de todas as nossas crianças indígenas, as que vivem dentro e fora de territórios homologados, na campanha de vacinação e a continuidade da vacinação dos adolescentes de 12 a 18 anos.
A luta da Apib junto ao Supremo Tribunal Federal, com a ADPF 709, garantiu a inclusão dos povos indígenas como grupo prioritário na vacinação contra Covid-19, incluindo os povos que vivem no Brasil como povo Warao, que é refugiado da Venezuela. Nesse sentido, queremos a garantia de que a totalidade de nossas crianças sejam incluídas de forma prioritária no programa de vacinação.
Manifestamos também nosso repúdio aos constantes ataques feitos pelo Governo Bolsonaro contra a decisão da Anvisa, o órgão da administração federal responsável pela verificação das condições da qualidade, segurança e eficácia de uma vacina. A decisão da Anvisa foi realizada no dia 17 de dezembro de 2021 e está baseada em dados epidemiológicos nacionais e internacionais sobre o impacto da COVID-19 nas diferentes faixas etárias, considerando o risco de infecção, transmissão, e agravamento (hospitalização e morte) e dados dos estudos sobre a eficiência e segurança da vacinação de crianças.
A pandemia ainda não acabou e é preciso seguir com os cuidados para evitar o aumento de casos e de mortes pela Covid-19. Além da vacina, reforçamos o uso de máscara, álcool 70% e prezar pelo distanciamento social.
27/dez/2021
Reunidos em assembleia entre os dias dias 18 e 20 de dezembro, na aldeia Sawre Jaybu, o povo Munduruku do Baixo Tapajós reafirma luta incansável contra as violências e explorações e segue com pautas importantes contra o governo brasileiro e cobra pelo cumprimento de ações pertinentes afirmadas em carta final da assembleia.
Carta da 17° Assembleia Geral Munduruku do Médio Tapajós:
Nós, Munduruku do Médio e Alto Tapajós, junto com representantes da Federação dos Povos Indígenas do Pará, parentes Kayapó e Kumaruara, estivemos reunidos na 17ª Assembleia Geral Munduruku do Médio Tapajós entre os dias 18 e 20 de dezembro de 2021. Discutimos a demarcação de nossas terras e a proteção do nosso território, incluindo lugares sagrados que estão fora das terras demarcadas.
Já explicamos em diversas cartas que toda a Bacia do rio Tapajós tem marcas de nossos antepassados e está cheia de lugares importantes para nossa existência como povo Munduruku. Mesmo assim, não paramos de ser surpreendidos pelo Governo e pelas empresas que querem destruir nosso território e a vida do povo Munduruku. No início do mês de novembro de 2021, recebemos a notícia de que o Governo está estudando como “destravar” a construção de novas hidrelétricas, incluindo São Luiz do Tapajós, falando do potencial energético do rio Tapajós. Foi por causa dessa hidrelétrica que a Funai demorou três anos para assinar o RCID da TI Sawre Muybu.
As demarcações das terras indígenas Munduruku do médio Tapajós continuam ameaçadas por hidrelétricas, hidrovia, ferrovia, portos e projetos de exploração mineral, tanto Sawre Muybu como Sawre Ba’pim. O Governo atual não tem interesse em demarcar nossas terras, muito pelo contrário. Bolsonaro foi eleito com a promessa de que não demarcaria nem um centímetro de Terras Indígenas e colocou na Funai um representante dos ruralistas que está cumprindo bem essa promessa. Apesar de termos sido informados na Funai em Brasília que as contestações à TI Sawre Muybu foram respondidas e o processo estava pronto para seguir para o Ministério da Justiça, recebemos notícia de que a Presidência da Funai fez o processo andar para trás e pediu nova análise. Agora, dá a desculpa de que precisa aguardar o julgamento do marco temporal, mais esse enorme ataque aos nossos direitos territoriais.
Mesmo a TI Kayabi, onde também vivemos, que é homologada, está ameaçada pelo marco temporal. O Governo, com apoio da Funai, está querendo negociar a redução de parte da Terra Indígena localizada no estado do Mato Grosso. Já teve a decisão liminar do Ministro Luíz Fux de suspender o registro em cartório da nossa Terra, usando o argumento do marco temporal. Nem precisamos dizer que os Munduruku ocupam tradicionalmente a região do Teles Pires há séculos, inclusive, há lugares sagrados no rio Teles Pires – como Karobixexe e Dekoka’a – que já foram destruídos por duas barragens hidrelétricas. Não permitiremos mais ataques à nossa vida e ao povo Munduruku.
A demarcação da TI Sawre Ba’pim segue a passos muito lentos. Depois de quase dez anos, recebemos a notícia de que os estudos foram concluídos e de que o Relatório foi enviado para Brasília, mas que o processo parou de novo no departamento de demarcação. O nosso cacique Suberalino Saw, grande liderança que lutou pela demarcação dessa terra, faleceu e não viu a demarcação ser concluída. Quantas lideranças que lutaram por essa Terra vão falecer antes de a Funai concluir essa demarcação? Não vamos esperar mais. Já fizemos a autodemarcação da TI Sawre Muybu e sabemos como agir quando o Estado não cumpre o seu papel.
As Terras Munduruku e Sai Cinza continuam invadidas por garimpos, trazendo destruição de rios e floresta, doenças e muita violência para nosso povo. Não temos nem como contar quantas cartas e denúncias já fizemos sobre isso e não vemos nenhuma solução definitiva.
Exigimos que:
– o processo de demarcação da TI Sawre Muybu seja encaminhado para declaração do Ministro da Justiça
– a Funai publique o resumo do Relatório Circunstanciado da Terra Indígena Sawre Ba’pim.
– o cumprimento das decisões do STF de retirada dos garimpos e a permanência da Força Nacional em Jacareacanga.
– a decisão do Ministro Luíz Fux seja revertida, que a TI Kayabi seja registrada em cartório com urgência e a Funai e a AGU cumpram seu dever constitucional de proteger as Terras Indígenas, não negociáveis e de usufruto exclusivo dos povos indígenas.