Nota da COIAB em apoio à APIB

Nota da COIAB em apoio à APIB

A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) vem por meio desta nota manifestar seu apoio irrestrito à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) que é a nossa instância maior de articulação nacional.

Nos últimos tempos, com mais intensidade nas últimas semanas, a APIB e seus coordenadores-executivos vêm sofrendo diversos ataques, tentativas de criminalização, perseguição e ameaças por defender os direitos dos povos indígenas, sobretudo direcionados a coordenadora-executiva da APIB pela COIAB, Sonia Guajajara, do povo Guajajara. Manifestamos nosso mais veemente repúdio a essas agressões.

Junto aos aliados e as parcerias no Brasil e no exterior, a APIB e suas lideranças têm tido um papel fundamental no sentido de mobilizar e unificar a luta e as demandas dos parentes de todo o território nacional. Nossa Articulação vem sendo construída a muitas mãos, que envolve lideranças diversas, entre mais velhos, jovens, mulheres, professores, espalhadas por todo o Brasil, num trabalho duradouro que vem ocorrendo por décadas.

A COIAB, como uma das organizações de base da APIB, condena qualquer tipo de ataque, ameaças, perseguições ao movimento e lideranças indígenas, que vem trabalhando incessantemente de forma correta, justa, transparente e democrática em defesa dos direitos do coletivo e respeitando a institucionalidade brasileira.

As agressões recentes desferidas contra o movimento indígena e a APIB – como, por exemplo, a carta caluniosa, desrespeitosa e criminosa publicada por um “grupo de agricultores e produtores indígenas”, que fez ataques à coordenadora-executiva, Sonia Guajajara; bem como manifestação feita pelo Sindicato dos Profissionais e Trabalhadores da Saúde Indígena (Sindcopsi) – ignoram deliberadamente que todas as atitudes tomadas pelo movimento indígena em anos recentes têm a ver com a luta incansável pelo pleno exercício dos nossos direitos: sejam eles a autonomia dos territórios, sejam as prerrogativas previstas dentro da atenção à saúde especial indígena – lembrando que a própria saúde especial indígena é uma conquista, fruto dessa mesma luta.

A APIB vem trabalhando incansavelmente junto a sua rede de organizações nas bases para o reforço e contínuo fortalecimento de ações. Consideramos que a mobilização democrática e interinstitucional é um instrumento fundamental para a construção da sociedade plural e diversa que queremos.
Os ataques recentes não irão pôr em xeque a credibilidade da atuação da APIB junto ao movimento indígena, não irão descredibilizar nossas instituições representativas e as nossas lideranças e não serão bem-sucedidas em nos dividir, nos enfraquecer e fragmentar, pois temos uma base sólida e construída ao longo dos anos de luta.

Nesse sentido, pedimos maior atenção da sociedade brasileira, dos nossos apoiadores, dos nossos aliados e de todos que somam à causa indígena neste país para que fiquem atentos e não se deixem levar por qualquer manifestação realizada por indivíduos oportunistas que atacam o movimento indígena legítimo.

Desta maneira, nós da COIAB, com toda sua rede composta por povos, lideranças e organizações indígenas dos nove estados da Amazônia brasileira, manifestamos e nos juntamos com as demais organizações de base da APIB nesse momento de reafirmar nosso apoio a nossa instância maior, que é a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Somos o movimento indígena, e estamos no exercício da liberdade e da autonomia.

Seguimos juntos na luta em defesa dos nossos direitos!

Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)
Manaus, 30 de março de 2021

Violências, expulsões e subjugação jurídica: no STF o destino dos Kaiowá de Guyraroká

Violências, expulsões e subjugação jurídica: no STF o destino dos Kaiowá de Guyraroká

Artigo de Luiz Eloy Terena, Advogado indígena. Pós-Doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris. Coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Nesta semana, estará na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) o caso da comunidade indígena Guyraroká, do povo Guarani Kaiowá, localizado no estado de Mato Grosso do Sul. O processo é paradigmático, pois retrata, de forma inusitada, a história de um povo que foi expulso de sua terra ancestral, impactado pelo colonialismo interno e pela frente de expansão agropastoril. Tudo isso aliado à (co)omissão estatal e de seus agentes que, em vez de proteger o interesse indígena, atuaram em estreita articulação com os fazendeiros da região a fim de promover a retirada dos indígenas de suas terras e de garantir o sucesso do empreendimento agrogenocida.

O caso retrata de igual modo o fenômeno da judicialização das demarcações de terras indígenas no país. Após o início do procedimento de reconhecimento formal da ocupação tradicional pela Fundação Nacional do Índio (Funai), constituiu-se o grupo de trabalho, publicando-se os respectivos estudos antropológicos e, consequentemente, a portaria declaratória, por meio de expediente do Ministério da Justiça. Em suma, seguiu-se à risca o rito legal previsto no decreto 1.775/96. O fazendeiro Avelino Antonio Donatti, ex-posseiro da fazenda Cana Verde, ingressou com mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça (STJ) com o intuito de anular a portaria declaratória. No entanto, seguindo jurisprudência consolidada, onde se reafirma que o mandado de segurança não é via processual adequada para o questionamento de processo demarcatório, o STJ rejeitou a ação. Irresignado, novamente o fazendeiro manejou recurso ordinário e levou o caso ao STF.

A terra indígena Guyraroká está localizada no sul de Mato Grosso do Sul, nas bacias dos “córregos Ypytã e Caracu, abrangendo parte do curso de riachos secundários, ou cabeceiras, formadores desses córregos, como o Ypo’i (água estreita), o Chagua Yry (richo da pitanga, por causa da grande concentração dessa planta em suas margens) e o Lucero” (Pereira, 2002, p. 6). Conforme disposto no estudo antropológico da Funai, realizado pelo antropólogo Levi Marques Pereira, “Guyraroká é o nome religioso como os Kaiowá denominam o local e Ypytã é o nome do córrego que corta o interior da Terra Indígena” (p. 5).

É uma comunidade indígena que detém a posse consolidada, com residências tradicionais, casa de reza e escola, desde a retomada feita pela comunidade no ano de 2000. Muitos lugares antigos que eram utilizados para atividades produtivas, como caça, pesca e coleta, não existem mais. Foram destruídos pelo avanço do agronegócio no estado. Hoje, a comunidade se encontra confinada, cercada pelas fazendas de gado e soja. No que tange ao processo demarcatório, regulado pelo decreto n. 1.775/96, o mesmo está em estágio avançado, pois teve o estudo de identificação e delimitação aprovado pela Funai (Portaria n. 76/2004) e, posteriormente, expediu-se a Portaria Declaratória n. 3.219/2009, pelo Ministério da Justiça, que reconheceu a área como de ocupação tradicional, nos termo do artigo 231 da Constituição Federal de 1988.

Em 2014, a comunidade indígena foi surpreendida pela decisão da 2º Turma do STF, que acatou um recurso judicial do fazendeiro, e declarou nulo o processo demarcatório. Este é um caso clássico de processo que tramitou na justiça sem a participação da comunidade indígena. A Suprema Corte brasileira decidiu sem nunca ter oportunizado aos indígenas o direito de falar nos autos, num claro gesto de negativa de acesso à justiça, ou seja, de subjugação jurídica. Resquício da tutela que perdurou durante séculos no país, tratando os indígenas como juridicamente incapazes, esse imaginário está presente na máquina administrativa, na qual se pode decidir o futuro dos indígenas, sem ouvi-los.

Antecedentes históricos: desterritorialização, confinamento e expulsão dos indígenas

Percepção colonial – no mundo colonial, os Kaiowá eram identificados como “infiéis” e culturalmente “bárbaros”, pois se refugiavam nas matas de difícil acesso, com o intuito de fugir do processo de cristianização levado a cabo pelos jesuítas e do contato direto com os colonizadores (Meliá, Grünberg & Grünberg, 1976, p. 155 apud Pereira, 2002, p. 21).

Período imperial – até o acontecimento da guerra do Paraguai (1864 – 1870), os Kaiowá mantinham domínio pleno de todo o território que atualmente corresponde à região sul de Mato Grosso do Sul. Transitavam livremente e tinham o controle do seu território tradicional, sendo que a presença de não índios na região era esporádica. Após a guerra do Paraguai, este cenário territorial se transformou sobremaneira, tanto em relação aos Guarani Kaiowá, quanto aos Terena e Kinikinau, todos povos habitantes de Mato Grosso do Sul(2). Com o fim da guerra, soldados e comerciantes desmobilizados, incentivados pela política de colonização do interior do Brasil, se fixaram no local. Neste período, a Companhia Matte Larangeira também se instalou na região, provocando uma profunda transformação social nas comunidades indígenas, tendo em vista que o seu interesse estava voltado para as atividades extrativas da erva mate, o que culminou na exploração da mão de obra de indígenas kaiowá(3).

Ocupação agropastoril em Guyraroká – a partir da década de 1940, a terra que era ocupada pela comunidade deu lugar a fazendas. Em virtude do fim do monopólio da Companhia Matte Larangeira, as terras voltaram ao domínio da União, que passou a concedê-las a particulares (fazendeiros e colonos), incentivados pela política de integração do governo Vargas. Ao mesmo tempo, os Kaiowá passaram a ser expulsos de suas terras e confinados nas pequenas reservadas indígenas criadas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI)(4).

O esparramo indígena (década de 1940) – informações levantadas pelo antropólogo Levi Marques Pereira dão conta de que, até a década de 1940, havia uma presença expressiva de Kaiowá habitando o local. Entretanto, logo começaram a sofrer pressão dos fazendeiros que chegavam à região para instalar fazendas. O relatório da Funai trás informações do líder indígena Papito Vilharva, que nasceu no Guyraroká, às margens do riacho Koguery. O ancião relembrou que, naquele período, o primeiro homem branco que apareceu na região com intuito de ocupá-la foi um senhor apelidado de Alemão. Depois, vieram os senhores conhecidos como Antônio Afram e Albuquerque. Se no início pareciam amistosos, logo passaram a dar tiros sobre as casas da comunidade, cujas balas chegaram a atingir um indígena. Assim começou o “esparramo” dos indígenas (Pereira, 2002, p. 38-39).

Violação estatal (atuação do SPI e Funai) – o traço marcante da atuação das agências estatais não é apenas a omissão em relação aos direitos indígenas, mas, sobretudo, os atos comissivos que violaram efetivamente os direitos dos Kaiowá. Além de serem omissas na proteção do interesse indígena, também atuaram como verdadeiros braços estatais para beneficiar a implantação do projeto agropastoril na região, em detrimento das terras indígenas. O SPI até hoje é conhecido entre os velhos Kaiowá como “serviço de perseguição ao índio”. O antropólogo Levi Marques Pereira (2002, p. 28) recuperou um documento tornado público pelo historiador Antonio Brand (1997, p. 104), o Comunicado de Serviço n. 211/9/DR/81, no qual o delegado da Funai determina o “deslocamento de um motorista e de um caminhão por um período de três dias para o P.I de Caarapó, objetivando efetuar o transporte de índios que desejam regressar ao P.I, provenientes de fazendas circunvizinhas”. Em outro documento, Ofício 046/79, “o então chefe do posto do P.I. Dourados solicita a cedência de uma Kombi para atender aos vários problemas que surgem com indígenas desaldeados, principalmente no transporte destes índios no retorno à aldeia” (Brand, 1997, p. 105).

Política de discriminação (distinção entre índios aldeados e não aldeados) – Outra marca da atuação das agências estatais foi a adoção de uma política de distinção entre indígenas aldeados e não aldeados. Para o SPI, os indígenas desaldeados estavam resistindo ao confinamento nas reservas criadas, e insistiam em permanecer em suas terras originárias. Eles eram tidos como um problema para o governo, mas também para os fazendeiros da região, que estavam instalando seus empreendimentos.

Expulsão dos Kaiowá de Guyraroká – Merece atenção a análise desenvolvida pelo antropólogo Levi Marques Pereira (2002, p. 30), quando aponta três fatores que culminaram na expulsão dos Kaiowá do seu território originário Guyraroká, sendo: a) a introdução de doenças (surtos epidêmicos de sarampo, catapora, varíola, gripes e tuberculose, no início do século passado); b) a violência física; c) violência simbólica. Chamamos atenção para a violência física que se materializou pelas pressões e ameaças dos fazendeiros para que os indígenas deixassem a terra.

Judicialização da demarcação

Como apontado, o caso retrata de modo exemplar o fenômeno da judicialização das demarcações das terras indígenas no país. O art. 5, inciso XXXV da Constituição Federal, que prevê o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, é invocado pelos fazendeiros para se questionar no judiciário um processo que deveria ser conduzido na via administrativa, conforme os preceitos do decreto 1.775/96. Mas, como visto, parece-nos que este princípio só vale para os ruralistas, uma vez que foi negado à comunidade indígena o direito elementar de participar de um processo que definirá o destino de uma coletividade.

O processo se origina quando o fazendeiro Avelino Antonio Donatti ingressou com mandado de segurança no STJ, buscando anular a portaria declaratória n. 3.219/2009, do Ministério da Justiça, que declarou a TI Guyraroká como de ocupação tradicional dos Kaiowá. Ao analisar o caso, o STJ extinguiu o processo, pois aplicou jurisprudência consolidada que preceitua que o mandado de segurança não é via processual adequada para o questionamento da demarcação de terra indígena.

Irresignado, o fazendeiro recorreu ao STF (RMS 29.087), ocasião em que o ministro relator Ricardo Lewandowski seguiu o entendimento do STJ e rejeitou o recurso. Importante consignar que a jurisprudência do STF se baseia em um vetusto e majoritário entendimento, segundo o qual mandado de segurança não é via adequada para discutir a demarcação de terras indígenas, haja visto que a complexidade da questão demanda dilação probatória. Nesse sentido, vide, a título de exemplos, 30 precedentes: Supremo Tribunal Federal. MS 28.555 (2017), MS 28.567 (2017), MS 33.821 (2016), RMS 29.193 (2015), MS 31.245 AgR (2015), RMS 27.255 (2015), MS 31.100 (2014), MS 25.483 (2007), MS 21.660 (2006), RMS 24.531 (2005), MS 24.015 (2005), RMS 22.913 (2004), MS 24.566 (2004), MS 21.891 (2004), RMS 24.532 (2004), MS 21.891 (2003), MS 21.892 (2003), MS 1.892 (2001), MS 21.649 (2000), MS 21.575 (1994), MS 20.751 (1988), MS 20.722 (1988), MS 20.723 (1988), MS 20.575 (1986), MS 20.556 (1986), MS 20.515 (1986), MS 20.453 (1984), MS 20.235 (1980), MS 20.234 (1980), MS 20.215 (1980).(5)

Contudo, o ministro Gilmar Mendes abriu divergência, sendo seguido pelos ministros Celso de Mello e Carmen Lúcia. Com esse placar, a demarcação da terra foi anulada, aplicando-se a tese do marco temporal, sem sequer ouvir a comunidade indígena. Os indígenas solicitaram ingresso no feito, mas foram barrados por decisão do ministro Gilmar Mendes, que aplicou o regime tutelar, que vigorava antes de 1988, afastando a possibilidade da participação indígena. À época, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, entrou com embargos de declaração com pedido de concessão de efeitos modificativos contra decisão da 2ª Turma do STF. O Ministério Público Federal (MPF) igualmente apontou omissão e contradição no julgamento pela não participação da comunidade indígena.

O processo transitou em julgado e agora está posto o julgamento da ação rescisória(6), protocolada pela comunidade indígena no dia 19 de abril de 2018. Em discussão, a comunidade pede a anulação da decisão da segunda turma do STF, tendo em vista que o processo transcorreu sem participação, ou seja, sem a citação dos principais interessados, que são os indígenas.

Nota-se que a decisão que anulou a demarcação da terra indígena violou frontalmente norma jurídica de proteção aos povos indígenas. Primeiro, no que diz respeito ao princípio do acesso à justiça. Até a Constituição de 1988, vigorou no Brasil o regime tutelar dos indígenas, que eram representados pela Funai. Entretanto, esse paradigma tutelar e integracionista foi superado pela atual ordem jurídica, pois o artigo 232 da Constituição reconheceu a legitimidade dos indígenas, de suas comunidades e organizações para estarem em juízo em defesa de seus direitos e interesses. Outro aspecto processual diz respeito à obrigatoriedade de citação das comunidades indígenas para integrarem os processos como litisconsórcio passivo necessário nas demandas sobre terras indígenas (ver precedente ACO 1.100, relatoria do ministro Edson Fachin).(7)

Direito ao acesso à justiça

O art. 5º da Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, inciso XXXV, assegura a inafastabilidade da jurisdição ou do acesso à Justiça, ao preceituar que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Tem-se aí o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional ou, ainda, o princípio do acesso à justiça.

Importa salientar ainda que a palavra “acesso” evoca a ideia de ingresso, de entrada. Mas, também, traduz o sentido da possibilidade de se alcançar algo. “Acesso à Justiça”, no plano do direito, representa esse segundo sentido, ou seja, a possibilidade de alcançar algo, que é justamente o valor “Justiça”(8). Com assento na Constituição, é uma norma-princípio posta à disposição daqueles que veem seus direitos violados ou ameaçados. O acesso à justiça deve ser interpretado à luz do contexto pluriétnico presente no Brasil, que possui mais de 305 povos, falantes de mais de 274 línguas indígenas. Cada qual com a sua respectiva organização social e modo próprio de ver e entender o mundo. Ruiz (2018) aponta que o acesso à justiça pode ser visto sob três dimensões, a saber: (a) pela via dos meios alternativos de solução dos conflitos de interesses, (b) pela via jurisdicional (jurisdição estatal), no exercício da jurisdição de direito, e (c) pela via das Políticas Públicas.

No caso dos Kaiowá, nenhuma dessas dimensões fora observada, pois, ao mesmo tempo que se opera no Brasil um sistema jurídico positivado, que coloca à margem o sistema de justiça próprio das comunidades indígenas, este mesmo Leviatã é omisso em implementar a política pública outorgada no texto constitucional, qual seja, a conclusão da demarcação das terras indígenas e sua efetiva proteção.

E mesmo quando as comunidades tentam acessar o poder judiciário, veem-se barradas. O processo de Guyraroká reflete a realidade de muitas comunidades indígenas no Brasil, que querem ter o direito de serem ouvidas, de participar das decisões que lhes afetam e oportunizar ao judiciário o conhecimento da ótica indígena acerca da demanda posta em mesa para julgamento.

Direito originário ao território tradicional

No mérito, o processo de Guyraroká versa sobre a aplicação do marco temporal. Essa tese jurídica pretende restringir os direitos dos povos indígenas às terras que estavam ocupando na data da promulgação da Constituição, qual seja, 5 de outubro de 1988. Mais uma fez, o mesmo Estado que foi omisso e conivente com as violações perpetradas contra os Kaiowá, agora se vale de uma retórica jurídica que desconsidera o valor de justiça para negar o direito ancestral indígena. É preciso vaticinar que o constituinte originário foi categórico ao preceituar que o direito dos povos indígenas às suas terras tradicionalmente ocupadas é originário, e logo anterior a qualquer outro direito (art. 231, CF/88). “Essa a razão de a carta Magna havê-lo chamado de ‘originário’, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios” (Pet 3388 / RR – Rel.  Min. Carlos Ayres Britto, 2009).

Vale lembrar que a tese jurídica do marco temporal não nasceu exatamente no âmbito do Poder Judiciário. Antes do julgamento do caso Raposa Serra do Sol (2009), esta interpretação jurídica era rotineiramente suscitada nos discursos parlamentares e de juristas que advogam para os interesses do capital. Cito, por exemplo, o discurso do deputado federal Gervásio Silva (PFL-SC), proferido no dia 20 de outubro de 2005, intitulado “Acirramento de conflitos fundiários pela política de demarcação de terras indígenas da FUNAI no Estado”, discorreu: “[…] e é bom que se repita: a Constituição Federal de 1988 não fala em posse imemorial, mas em terras tradicionalmente ocupadas no presente e de habitação permanente […] à identificação de uma terra indígena, está completamente divorciado do entendimento atual do STF, externado pela Súmula 650-STF, que consolidou a jurisprudência sobre o reconhecimento de terras indígenas […] como todos sabem, esta súmula não reconhece a doutrina de posse imemorial e consagra o princípio jurídico da ocupação atual e permanente das terras tradicionais de ocupação indígena. Explicando que os supostos direitos da suposta comunidade indígena de Araçá só mereciam o abrigo constitucional se os índios lá estivessem em 05 de outubro de 1988”.

Ao que se percebe, essa interpretação restritiva aos direitos dos povos indígenas, tal como se afigura na defesa do “marco temporal”, nasceu justamente de uma leitura equivocada feita a partir da súmula 650 do STF, que preceitua: “[…] os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”. Entretanto, é preciso fazer uma leitura da súmula em conexão com a matéria posta a julgamento e que resultou na edição do citado verbete. O precedente da súmula 650 do STF é o RE 219.983, tendo em vista o interesse da União na solução de ações de usucapião em terras situadas nos Municípios de Guarulhos e de Santo André, no estado de São Paulo, conforme disposto no artigo 1º, alínea h, do Decreto-Lei 9.760/1946. Como bem salienta o jurista Roberto Lemos dos Santos Filho, “é necessário que os operadores do direito atentem ao fato de que aplicação da Súmula 650-STF deve ser realizada aos casos específicos a que ela tem relação, vale dizer, usucapião de terras indígenas a que se refere o Decreto-Lei 9.760/1946”.

Ainda no âmbito do legislativo, cabe citar o Projeto de Lei (PL) 490/2007, de autoria do Dep. Homero Pereira, que tem por objetivo alterar a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, também conhecida como Estatuto do Índio, propondo que as terras indígenas sejam demarcadas por lei. Isto é, que a demarcação passe pelo crivo do legislativo. O autor justifica a importância da proposição evidenciando que a “demarcação das terras indígenas extrapola os limites de competência da FUNAI, pois interfere em direitos individuais, em questões relacionadas com a política de segurança nacional na faixa de fronteiras, política ambiental e assuntos de interesse dos Estados da Federação e outros relacionados com a exploração de recursos hídricos e minerais”. Em 15 de maio de 2018, o Dep. Jerônimo Goergen apresentou parecer nesta proposição legislativa no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, propondo a instituição do marco temporal por meio de lei.

Nota-se que é uma clara iniciativa da bancada ruralista implementar o marco temporal pela via legislativa, como uma espécie de retorno ao nicho de onde nasceu, mas agora com precedentes judiciais. No âmbito de discussão da tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000, verifica-se de forma reincidente que os parlamentares se valem do argumento do marco temporal para capitanear apoio à aprovação dessa proposta.

Entretanto, foi no âmbito do judiciário que o marco temporal encontrou terreno fértil, criando raízes e se alastrando por toda a sua estrutura. Seus frutos são decisões liminares, sentenças e acórdãos que anulam demarcações de terras indígenas e determinam o despejo de comunidades inteiras. No ano de 2009, por ocasião do julgamento da Petição 3.388 no STF, apareceu pela primeira vez, no âmbito no Poder Judiciário, a tese jurídica do “marco temporal”. Em suma, segundo esta interpretação jurídica, os povos indígenas só teriam direito às terras que estivessem ocupando no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Diante da decisão proferida, tanto as comunidades indígenas quanto o Ministério Público Federal interpuseram recurso de embargos de declaração, buscando com isso uma nova manifestação da Corte, a fim de que a mesma se manifeste a respeito da possibilidade ou improcedência de extensão automática das condicionantes às outras terras. No ano de 2013, o Supremo analisou os recursos de embargos opostos, decidindo que as condicionantes do caso “não vincula(m) juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas (…). A decisão vale apenas para a terra em questão”.

Referências:

BENITES, Tonico. Rojeroky hina ha roike jevy tekohape (Rezando e lutando): o movimento histórico dos Aty Guasu dos Ava Kaiowa e dos Ava Guarani pela recuperação de seus tekoha. Tese de doutorado (Antropologia Social). Rio de Janeiro, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2014.

BRAND, Antonio. O confinamento e seu impacto sobre os Paì-Kaiowá. Porto Alegre. Dissertação (mestrado) Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre, 1993.

BRAND, Antonio. O impacto da perda da terra sobre a tradição kaiowá/guarani: os difíceis caminhos da palavra. Porto Alegre. Tese (doutorado em História) – PUC/RS, 1997.

ELOY AMADO, Luiz Henrique. Vukapanavo – O despertar do povo Terena para os seus direitos: movimento político e confronto político. Editora e-paper. Rio de Janeiro, 2020.

EREMITES DE OLIVEIRA & PEREIRA, J.; L. M. Duas no pé e uma na bunda: a participação Terena na guerra entre o Paraguai e a tríplice aliança à luta pela ampliação dos limites da Terra Indígena Buriti. Revista Eletrônica História em Reflexão: Vol. 1 n. 2 – UFGD – Dourados Jul./Dez., 2007.

FERREIRA, Eva M. L. A participação dos índios Kaiowá e Guarani como trabalhadores nos ervais da Companhia Matte Larangeira (1902-1952), Mestrado em História. Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Dourados, 2007.

MELIÁ, B., GRÜNBERG, G., GRÜNBERG, F. 1976. Etnografia Guaraní del Paraguay Contemporâneo: Los Pai-Tavyterã. Suplemento antropológico. Assunción: Centro de Estudios Antropológicos de La Universidad Católica.

PEREIRA, Levi Marques. Relatório de identificação da Terra Indígena Guyraroká. Município de Caarapó, Mato Grosso do Sul. Documentação Funai, Brasília, 2002. [mimeo]

RUIZ, I. A. Princípio do Acesso à Justiça. Enciclopédia Jurídica da PUC-SP. 2018. Disponível em https://enciclopediajuridica.pucsp.br , acesso em 28. Mar. 2021.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Petição n. 3388. Rel.  Min. Carlos Ayres Britto. Brasília. 2009.

Notas de rodapé:

(1) Para entender o processo de retomada pelos Guarani Kaiowá, ver a tese de doutorado do antropólogo indígena Tonico Benites, Rojeroky hina ha roike jevy tekohape (Rezando e lutando): o movimento histórico dos Aty Guasu dos Ava Kaiowa e dos Ava Guarani pela recuperação de seus tekoha, defendida no Museu Nacional (UFRJ), em 2014.

(2) Sobre o impacto da Guerra do Paraguai nos territórios Terena, no Mato Grosso do Sul, é fundamental consultar as obras: Vukapanavo – O despertar do povo Terena para os seus direitos: movimento indígena e confronto político, de Luiz Henrique Eloy Amado, e o artigo Duas no pé e uma na bunda: a participação Terena na guerra entre o Paraguai e a tríplice aliança à luta pela ampliação dos limites da Terra Indígena Buriti, de Jorge Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira.

(3) Sobre o uso da mão de obra Guarani Kaiowá na Companhia Matte Larangeira, ver a dissertação de mestrado da historiadora Eva Maria Luiz Ferreira: A participação dos índios Kaiowá e Guarani como trabalhadores nos ervais da Companhia Matte Larangeira (1902-1952), publicada em 2007.

(4) Para entender o processo de expulsão dos Kaiowá e o seu confinamento nas reservas do SPI, consultar a dissertação de mestrado do historiador Antonio Brand, O confinamento e seu impacto sobre os Paì-Kaiowá (1993).

(5) Levantamento realizado pela advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental – ISA.

(6) A ação rescisória está prevista nos artigos 966 a 975 do Código de Processo Civil, sendo uma ação própria e que tem como finalidade desconstituir uma decisão à qual não cabe mais recurso.

(7) Registro outros casos de comunidades indígenas que estão no STF: o Povo Kaingang de Boa Vista, do estado do Paraná, ingressou com ações rescisórias – ARs, sendo as de nº 2.750, de relatoria da Ministra Rosa Weber; nº 2.759, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes; nº 2.761, de relatoria do Ministro Roberto Barroso; e nº 2.766, de relatoria do Ministro Edson Fachin; a fim de anular todo os processos judiciais já finalizados, onde a demarcação foi anulada sem que os Kaingang fossem citados, por força de um vício processual insanável, ou seja, por falta de citação válida dos indígenas. Ainda, o Povo Kaingang, da Terra Indígena Palmas, sendo esta outra unidade sociológica da mesma etnia, ingressou com a AR nº 2.756, que conta com a relatoria da Eminente Ministra Carmen Lúcia e também conta com decisão liminar favorável.

(8) RUIZ, I. A. Princípio do Acesso à Justiça. Enciclopédia Jurídica da PUC-SP. 2018. Disponível em https://enciclopediajuridica.pucsp.br , acesso em 28. Mar. 2021.

Sobre o autor:
Luiz Eloy Terena, é advogado indígena. Pós-Doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris. Coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). E-mail: [email protected]

Manifesto “Nossa luta ainda é pela vida”

Manifesto “Nossa luta ainda é pela vida”

Nós, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib, lamentamos informar que ultrapassamos 1 mil óbitos indígenas por Covid-19. Desde o começo da pandemia, fomos incansáveis na luta para conter os avanços do novo coronavírus, pois não esquecemos o histórico de genocídios dos povos originários provocado por doenças trazidas pelos colonizadores. Sabíamos que enfrentar a pandemia de um vírus desconhecido seria devastador para nossos povos e, por isso, fomos à luta para a proteção dos nossos. 

Em abril de 2020, já incentivando o distanciamento social como forma de prevenção, realizamos pela primeira vez o Acampamento Terra Livre (ATL) totalmente online. Demarcando as telas, nos unimos a pesquisadores e profissionais da saúde para discutir vulnerabilidade, impactos e enfrentamentos à Covid-19 no contexto indígena. Em maio, organizamos a Assembleia Nacional da Resistência Indígena, com intuito de construir um plano de ação emergencial para conter a disseminação e os impactos da pandemia. Outro resultado muito importante da assembleia foi a criação do Comitê pela Vida e Memória Indígena que, desde então, coleta e publica dados sobre o avanço do vírus. 

Nos meses seguintes, enquanto liderávamos a construção do plano Emergência Indígena e a mobilização global Maracá, lutamos junto à organizações parcerias pela implementação da Lei 1142/2020 que dispõe sobre medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19, fomos ao Supremo Tribunal Federal com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 709 exigindo a elaboração de um plano do Governo Federal que atenda as necessidades de proteção integral dos povos originários (a elaboração deste plano se arrasta por quase um ano, considerações de especialistas sobre problemas estruturais nos territórios seguem sendo ignoradas pelo governo).  Finalizamos 2020 lançando o relatório “Nossa luta é pela vida”, um documento robusto que reúne informações sobre os primeiros oito meses de pandemia no contexto indígena em todo Brasil. Nele apontamos todos os vetores de disseminação, vulnerabilidades, negligências e violações dos nossos direitos. 

Em 2021, com o início da imunização, o Governo usou de um critério racista para definir quem teria direito à vacina, nós também lutamos e continuamos lutando pela vacinação universal. Criamos a campanha “Vacina, parente!” para pressionar o poder público a garantir imunização de todo e qualquer indígena em território brasileiro – independente de onde esteja, para combater a desinformação sobre vacinas, para denunciar casos de violações e negligência na implementação do plano de imunização com os povos indígenas como grupo prioritário. 

Completamos um ano de pandemia com nossos esforços voltados, principalmente, para o enfrentamento da Covid-19. Seja nas barreiras sanitárias nas aldeias, seja nas instâncias de poder do país, nós não paramos, nós não esperamos, nós não nos conformamos com nenhuma vida indígena perdida para o vírus. Hoje, é com imenso pesar e buscando forças na nossa ancestralidade, que comunicamos que apesar de todas as nossas lutas, chegamos à marca de mil vidas interrompidas. Interrompidas pela doença, sim, mas também pelo descaso, pela violência, pelo genocídio orquestrado por quem deveria prezar pela garantir do nosso direito de viver.

Por cada uma das 1.001 vidas indígenas que ancestralizaram, por cada parente que continua na luta contra esse vírus: seguimos. 

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib

12 de março de 2021

Mulheres Indígenas lançam articulação nacional no Dia Internacional das Mulheres

Mulheres Indígenas lançam articulação nacional no Dia Internacional das Mulheres

A Anmiga visa fortalecer a participação, o protagonismo da mulher indígena e a luta por direitos.

A Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade – Anmiga é uma iniciativa que mobiliza as mulheres indígenas de todas as regiões do país na luta pela garantia dos direitos dos povos. Com o tema “As originárias da terra, a mãe do Brasil é indígena”, a Anmiga promove uma agenda de debates ao longo do mês que marca a luta por igualdade de gênero, iniciando no dia 8 de março com a participação mais de 200 mulheres em uma live que começa às 14h (horário de Brasília).

A cada semana de março, mulheres indígenas de todos os biomas brasileiros se reúnem para discutir temas como questões identitárias, sustentabilidade, violência e violações de direitos. A programação completa do mês pode ser conferida no site anmiga.org. Os encontros online serão transmitidos nas redes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Mídia Ninja e Mídia Índia.

No dia 8 de março, a Anmiga também lança o manifesto da articulação que é fruto da Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, iniciada em 2019. “A iniciativa de criar uma organização de mulheres indígenas é o caminho natural. Nós, mulheres indígenas, sempre estivemos presentes nos movimentos sociais, tanto nacional quanto localmente”, comenta Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Apib e uma das idealizadoras da Anmiga.

Programação

O evento em alusão ao Dia Internacional das Mulheres, no dia 8 de março, lança a agenda “As Originárias da Terra: A Mãe do Brasil é Índigena” e marca o início da atuação da Anmiga. A programação está dividida em blocos que contemplam cantos e rituais, debates sobre raízes e ancestralidade, mudanças climáticas, conexão entre terras e telas, entre outros temas. Ao longo do mês serão realizadas lives às segundas. Em cada live, mulheres indígenas, agrupadas por biomas (Amazônia, Cerrado, Pampas, Caatinga, Pantanal e Mata Atlântica), discutem assuntos de interesse dos povos originários a partir da perspectiva feminina e do território.

Apesar de criada por mulheres indígenas como espaço de organização da luta dos povos originários, a Anmiga recebe também em sua programação ao longo do mês de março mulheres não indígenas, aliadas do movimento.

As indígenas são as primeiras brasileiras, cuja participação em organizações sociais, espaços deliberativos e em cargos públicos remonta uma trajetória de luta secular. O fortalecimento da luta das indígenas foi construída ao longo dos anos em várias frentes de atuação e organizações, até que, em agosto de 2019, foi realizada a 1ª Marcha das Mulheres Indígenas para denunciar o agravamento das violências aos povos indígenas.

Para Célia Xakriabá, antropóloga e liderança indígena, a articulação das mulheres agrega passado, presente e futuro dos povos: “Nós carregamos nos nossos corpos os saberes, as lutas, a cura. De parteiras a deputadas, de cacicas a pesquisadoras, ocupamos os espaços com toda nossa ancestralidade.”

Serviço:
O que: Lançamento da ANMIGA e Março das Originárias da Terra: A Mãe do Brasil Índigena.
Quando: 8 de março, 14h (horário de Brasília)
Onde: redes da Apib, Mídia Índia e Mídia Ninja
Inscrições: https://anmiga.org/

Pela defesa da diversidade e autonomia dos povos indígenas

Pela defesa da diversidade e autonomia dos povos indígenas

Nota pública pela revogação da Instrução Normativa que libera a exploração dentro dos Territórios Indígenas

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib alerta suas bases, povos e organizações indígenas do Brasil para não se iludirem com as proposições falaciosas da Instrução Normativa N° 01, de 22 de fevereiro de 2021, do Ibama e da Funai, em que o governo dispõe sobre “os procedimentos a serem adotados durante o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas cujo empreendedor seja organizações indígenas”, uma vez que a artimanha implica na real intenção de, por um lado, burlar as garantias constitucionais da autonomia e do usufruto exclusivo dos povos indígenas, e por outro, na flexibilização das regras do licenciamento ambiental, ao grau de o IBAMA não exigir o licenciamento em alguns casos.

No desespero de abrir os territórios para quaisquer tipos de empreendimentos, não apenas agropecuários, o Governo atropela vilmente o direito de consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas assegurado pela Constituição Federal e por tratados internacionais assinados pelo Brasil.

Ademais, a presente Instrução Normativa retoma a política do arrendamento e do esbulho dos territórios indígenas, prática nociva e violenta adotada pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) das décadas de 1940 a 1960, sobretudo nas regiões Centro-oeste, Sul e Nordeste do Brasil, que tinha como intuito favorecer o latifúndio, mercantilização do trabalho indígena e a consequente fomentação ao sistema capitalista, baseado no modelo econômico hegemônico vigente. Diante desta política do arrendamento e exploração dos territórios, muitos povos indígenas, em que pese suas culturas, foram extintos, e os que restaram necessitam da luta pela sobrevivência até hoje para recuperar territórios que foram esbulhados de forma violenta.
Podem haver empreendimentos tocados ou desejados por indígenas, é verdade, mas a perspectiva colocada é a possível autorização de empreendimentos onde lideranças são, geralmente, apenas coadjuvantes, inclusive manipulados e cooptados em detrimento dos interesses coletivos das comunidades.

A Funai, que foi criada para promover e proteger os direitos indígenas de todos os povos indígenas do Brasil, não pode restringir a sua missão institucional a querer direcionar atividade econômica – tipo agrícola – pensando apenas em alguns povos ou regiões do país, dada a diversidade de povos e modos de vida diferenciados dos indígenas no Brasil.

Além da supremacia projetada na Instrução Normativa n° 01, do Ibama sobre as atividades econômicas indígenas, é óbvio, que contra o integracionismo e a tutela almejada pelo órgão, não cabe à Funai dizer aos povos indígenas qual o modo de desenvolvimento que querem adotar.

Na demora da aprovação do PL 191, que visa o aproveitamento dos recursos minerais e hídricos nas terras indígenas e diante do barramento da Instrução Normativa n° 09 que pretende regularizar propriedades particulares em terras indígenas, o governo Bolsonaro, por intermédio da Funai – o órgão que deveria zelar pelos direitos indígenas -, quer suprimir, mais uma vez, os direitos conquistados.

Brasília – DF, 25 de fevereiro de 2021
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB

Transferência de cursos do Ensino Superior no Amapá prejudica comunidades indígenas

Transferência de cursos do Ensino Superior no Amapá prejudica comunidades indígenas

A Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) lançou dois ofícios comunicando a ação de transferência dos cursos de Direito e de Enfermagem do Campus Binacional do Oiapoque para o Campus de Santana. Reconhecemos que a cidade de Santana deve receber seus cursos, mas não abdicaremos do direito de manter os nossos cursos no Oiapoque. A Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Estado do Amapá e norte do Pará (APOIANP) publicou uma nota de repúdio contra a retirada dos cursos de Enfermagem e Direito do Campus Binacional do Oiapoque.

Parece haver um duplo movimento da UNIFAP, em utilizar a situação do Campus Binacional para arrecadar fundos do Governo Federal e emenda de parlamentares, enquanto internamente, promove o esvaziamento dos cursos com a transferência de docentes e técnicos sem que a Universidade reponha as vagas dos mesmos. Agora temos algo ainda mais grave, a transferência de cursos inteiros. 

Leia as notas das organizações indígenas do estado sobre a situação:

Lideranças exigem saída de coordenador de DSEI no Mato Grosso do Sul

Lideranças exigem saída de coordenador de DSEI no Mato Grosso do Sul

Na última segunda (22), lideranças se reuniram na sede do Distrito Sanitário Indígena (DSEI) do Mato Grosso do Sul para reunir com a coordenação do distrito e a direção da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Mesmo diante das dificuldades enfrentadas pelas lideranças para se deslocar até a sede, a reunião não ocorreu.

Lideranças indígenas exigem a exoneração do coordenador do Distrito Sanitário Indígena (DSEI) do Mato Grosso do Sul, Joe Saccenti Junior por descaso com as comunidades. A segunda maior população indígena do país tem sido tratada com desrespeito, causando indignação diante da violações de direitos constitucionais.

A situação não é novidade. No começo de janeiro, profissionais indígenas da saúde denunciaram demissões arbitrárias nas equipes multiprofissionais.  Sem providências significativas na prestação de serviços de saúde às comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul, no dia 28 de janeiro, cerca de 80 lideranças, entre parlamentares e representantes locais, dos povos Terena e Guarani Kaiowá ocuparam DSEI em protesto ao descaso com a precariedade da saúde indígena no estado. Na ocasião, as lideranças exigiam melhorias estruturais no DSEI, vacina para todos os indígenas e diálogo com a coordenação do DSEI.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil em conjunto com as organizações e lideranças locais repudiam o descaso com a saúde indígena no Mato Grosso do Sul. Leia a nota de repúdio na íntegra:

NOTA DE REPÚDIO

CONSELHO ATY GUASU GUARANI E KAIOWÁ, ATY GUASU JOVENS, KUNHANGUE ATY GUASU ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL – APIB, CCNAGUA, composto por lideranças das comunidades indígenas da região sul do Estado de Mato Grosso do Sul, representando aproximadamente 70 mil indígenas Guarani e Kaiowá, reunidos nesta data no DSEI-MS (Distrito Sanitário Especial Indígena de MS) para aguardar reunião com o atual coordenador do distrito sanitário e com o atual secretário de saúde indígena, vem a público se manifestar:
Em 29 de janeiro deste ano os movimentos indígenas de Mato Grosso do Sul, Conselho Aty Guasu e Conselho Terena, as duas maiores populações indígenas do Estado, se reuniram no DSEI em Campo Grande com o secretário de saúde indígena, Sr. Robson Santos da Silva, para exigir a saída do atual coordenador, Sr. Joe Saccenti Junior, devido à falta de consulta às comunidades indígena que é requisito trazido pela Convenção 169 da OIT e demais legislações correlatas ao direito indígena.
A gestão do atual coordenador do DSEI é totalmente abaixo do esperado, o caos na saúde se alastra nas comunidades do Estado, e por conta desse motivo o movimento indígena exigiu a exoneração do atual coordenador e que foi aceito pelo secretário de saúde naquela data.
Ocorre que, no dia 22 de fevereiro de 2021, apesar de todos as dificuldades encontradas para que as lideranças pudessem vir novamente até o Dsei-MS visando se reunir com o atual coordenador e com o atual secretário de saúde, não houve o atendimento, causando indignação na população indígena a falta de respeito e discriminação com a população indígena do Estado, que é a segunda maior do país.
Cabe ainda frisar, dentre tantos prejuízos causados à saúde indígena pelo trabalho de baixa qualidade prestado pelo atual coordenador, está a despedida sem justificativa de diversos agentes de saúde em meio há Pandemia de COVID -19 que assola as aldeias deste Estado e, o alarmante número de suicídio de jovens indígenas.
Assim, o povo indígena Guarani e Kaiowá repudia a atitude do atual secretário de saúde indígena e do atual coordenador distrital, exigindo a troca imediata no comando do Dsei-MS.
Campo Grande-MS, 22 de fevereiro de 2021.

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ATY GUASSU

A devastadora e irreparável morte de Aruká Juma

A devastadora e irreparável morte de Aruká Juma

É desoladora a morte por complicações de Covid-19 do último homem do povo Juma, o guerreiro Amoim Aruká. O povo Juma sofreu inúmeros massacres ao longo de sua história. De 15 mil pessoas no início do século XX, foi reduzido a cinco pessoas em 2002. Um genocídio comprovado, mas nunca punido, que levou seu povo quase ao completo extermínio. O último massacre ocorreu em 1964 no rio Assuã, na bacia do rio Purus, perpetrado por comerciantes de Tapauá interessados pela sorva e castanha existente no território Juma. No massacre foram assassinadas mais de 60 pessoas, apenas sete sobreviveram. Integrantes do grupo de extermínio contratados pelos comerciantes relataram atirar nos Juma como se atirassem em macacos. Os corpos indígenas foram vistos por ribeirinhos da região, após o massacre, servindo de comida para porcos do mato, inúmeras cabeças decapitadas espalhadas pelo chão da floresta. O mandante do crime, ciente do ocorrido, se vangloriou por ter sido o responsável de livrar “Tapauá dessas bestas ferozes”. Essa história jamais deve ser esquecida.

Aruká, um dos sobreviventes, continuou sua luta de resistência, vendo seu povo beirar o desaparecimento. Lutou pela demarcação do território Juma, que foi homologado apenas em 2004, a Terra Indígena (TI) Juma. Os sobreviventes Juma, apesar do risco de desaparecimento, viram seu povo crescer novamente na década de 2000, por meio de casamentos com indígenas Uru Eu Wau Wau, povo indígena também de língua Tupi-Kagwahiva.

Por estarem sujeitos a uma imensa vulnerabilidade e risco de desaparecimento, o povo Juma é considerado de recente contato e consta entre os povos a serem protegidos por Barreiras Sanitárias, cuja instalação foi determinada pelo Supremo Tribunal Federal a pedido dos povos indígenas, de representantes da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), por meio da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 709 (ADPF 709). O pedido foi feito em julho de 2020 e o Ministro Luís Roberto Barroso deferiu. Porém, diante das dificuldades alegadas pelo Governo Bolsonaro, o ministro deu o prazo de até setembro de 2020 para que as Barreiras na TI Juma fossem instaladas. Em agosto de 2020 o Governo Bolsonaro disse que iria fazer a Barreira no rio Assuã, na REBIO Tufari, fora da TI Juma, seria uma Barreira Sanitária composta pela Polícia Militar e DSEI-Humaitá. No entanto, em dezembro do mesmo ano, afirmou que faria apenas um posto de controle de acesso na BR 230 – Rodovia Transamazônica, mas não comprovou o seu efetivo funcionamento.

Se o posto de acesso funcionou ou não, como vinha representantes da COIAB e APIB cobrando há meses nas Salas de Situação com o Governo Bolsonaro, já não importa mais para Aruká. O que se sabe, comprovadamente, é que ele agora está morto. É tristemente com seus mortos que os povos indígenas comprovam seus apelos. A COIAB e APIB avisaram que os povos indígenas de recente contato estavam em extremo risco. O último homem sobrevivente do povo Juma está morto. Novamente, o governo brasileiro se mostrou criminosamente omisso e incompetente. O governo assassinou Aruká. Assim como assassinou seus antepassados, é uma perda indígena devastadora e irreparável.

Manaus, Amazonas, 17 de fevereiro de 2021.

Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
Opi – Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato

Manifesto dos Laklano-Xokleng ao povo de Nova Veneza

Manifesto dos Laklano-Xokleng ao povo de Nova Veneza

Somos o povo indígena Laklano-Xokleng e formamos, juntos as demais 305 etnias que vivem no Estado Brasileiro um grupo de perto de um milhão de humanos. Sempre vale lembrar que antes da invasão de 1492 éramos mais de mil etnias e mais de cinco milhões de seres humanos. Somos nós, agora, os Laklano Xokleng, quem escreve ao povo de Nova Veneza. Sim! Queremos falar com vocês, novos venezianos.

Vocês que vivem nessa bonita cidade tinham conhecimento de que, em vosso nome, as autoridades municipais, eleitas por vocês, se ocuparam de homenagear em praça pública um assassino? Acreditamos que não! Pois temos certeza de que se soubessem não permitiriam tal homenagem.

Qualquer homem, mulher e até mesmo criança de Nova Veneza iria se indignar se soubesse de tal homenagem. Mas, ainda que não saibam, ela se deu. E é algo assim como se o Estado de Israel, que abriga hoje os judeus, homenageasse o assassino Adolf Hitler, nomeando uma cidade, estrada ou praça com o nome dele.

Nosso coração se encheu de tristeza ao saber dessa praça que leva o nome de um matador da nossa gente: Natale Coral. Um homem que comandou grupos que violaram mulheres, mataram crianças, despedaçaram homens e lhes cortaram as orelhas para fazer colar. Não. O povo de Nova Veneza não pode compactuar com esse crime, que volta a se repetir nessa homenagem.

Na cidade existe uma lei, bem clara, sobre quem pode ser homenageado. É a lei N.º 1.972, de 25 de setembro de 2009 aprovada pelos vereadores de Nova Veneza que determina:

§ 1º – Somente será permitida a adoção de denominação de pessoas falecidas nos seguintes casos:

a) – de pessoas residentes em Nova Veneza, desde que tenham, quando em vida, participado de entidades e movimentos comunitários ou que tenham sido pessoas beneméritas, ou que tenham colaborado, efetivamente, para o engrandecimento deste município.

Nós, os Laklãnõ-Xokleng perguntamos: um assassino de homens, mulheres, velhos e crianças é alguém que engrandeceu Nova Veneza? Se isso foi considerado legítimo nos tempos passados, há muito que deixou de ser. O genocídio indígena não é algo para se celebrar.

A gente cristã de Nova Veneza acharia justo homenagear Pôncio Pilatos? Acharia legítima uma praça com o nome de Mussolini, ou com o nome dos assassinos de Jesus, homem santo que chamam de deus?

Pois sabendo que não fariam isso nós viemos pedir que não permitam que o município venha a homenagear qualquer um que tenha na sua biografia o assassinato de homens, mulheres, crianças e velhos, inocentes e indefesos. Exijam a mudança do nome. Unam-se à nossa voz que clama.

Nós, os Laklano Xokleng, que ainda resistimos, apesar de todos os crimes, assassinatos e violações, há muito tempo aceitamos a paz. Já perdoamos os migrantes que vieram para essa terra, muitos deles enganados, e tomaram o nosso mundo. Perdoamos, mas não esquecemos. Todos os brasileiros têm direito à memória, à verdade e à justiça! Basta de homenagear aqueles que são responsáveis pela dor do próximo.

Exigimos a retirada de qualquer homenagem aos assassinos de indígenas na cidade de Nova Veneza.

Exigimos homenagem aos que foram assassinados e ao nosso povo Laklãnõ-Xokleng!

Anexamos o documento histórico elaborado pelo cidadão de Nova Veneza, consciente dos crimes de Natale Coral, professor Dr. Waldir Rampinelli, para que todos saibam ao que estamos nos referindo.

Paz entre nós! Guerra aos injustos!

Manifesto impugnação da lei do macrozoneamento turístico do município de Palhoça (SC)

Manifesto impugnação da lei do macrozoneamento turístico do município de Palhoça (SC)

Nós da Comissão Guarani Yvyrupa; o Centro de Formação Tataendy Rupa; a Rede de ONGs da Mata Atlântica – RMA, o Movimento SOS Rio da Madre, o Instituto Tabuleiro e a Fundação Mata Atlântica e Ecossistemas, juntamente com as demais instituições signatárias, contamos com seu apoio para divulgação deste MANIFESTO PELA IMPUGNAÇÃO DA LEI DO MACROZONEAMENTO TURÍSTICO DO MUNICÍPIO DE PALHOÇA/SC (Lei 4847/2020) – aprovada em plena Pandemia COVID-19, que ameaça uma região de extrema importância biológica, ferindo dispositivos previstos no Estatuto da Cidade; Código Florestal; Lei da Mata Atlântica; Política Nacional de Mudanças Climáticas e a Constituição Federal, sobretudo aqueles que garantem uma série de direitos socioambientais.

Defendemos o debate de um planejamento urbano compatível com o ordenamento jurídico, com os compromissos de preservação ambiental e de manutenção de uma ordem social democrática, como instrumento que garanta segurança, equidade e justiça socioambiental.
POR UM PLANEJAMENTO TERRITORIAL DEMOCRÁTICO, PARTICIPATIVO E CIENTIFICAMENTE FUNDAMENTADO!

Acesse o manifesto aqui