11/ago/2020
Associação Ka’apor Ta hury do Rio Gurupi, vem em nome do Presidente e Cacique Geral do povo ka’apor, com muita tristeza que estamos aqui mais uma vez para comunicar às autoridades o falecimento do parente Kwaxipuhu Ka’apor (32 anos) da Terra Indígena Alto Turiaçu, o mesmo foi encontrado morto, vítima de assassinato brutal. Ele foi espancado até a morte.
Aconteceu no dia 03/07/2020, no período da tarde, no povoado Nadir, município de Centro do Guilherme, o mesmo encontrado no início da noite. Todo o povo Ka’apor está triste e diante da situação ocorrida, cobramos das autoridades não somente mais uma investigação, mas providências necessárias para a solução dos problemas que há muitos anos vimos passando.
Muitas informações já foram passadas ao longo dos anos sobre os locais de invasões, os locais onde madeireiros e traficantes usam na Terra Indígena e em seu entorno, já foram feitos compromissos pelos órgãos competentes ao povo Ka’apor, mais nada foi efetivado até o momento; Por isso exigimos que seja colocado em prática de mediatas e ações sobre a situação do nosso território. Esperamos uma resposta das autoridades competentes: Polícia Federal, IBAMA, Funai e Governo do estado, pois estamos cansados e tristes de assistir tanta violência e nenhuma solução.
Nós Ka’apor estamos organizados para ajudar na ação de proteção de nosso território, uma vez que temos nossos Ka’a Usak Há Ta (Guardas Florestais), porém nossa capacidade de ação é limitada, frente à atribuição dos órgãos supracitados. Por isso, cobramos mais uma vez atitudes concretas das autoridades responsáveis por fiscalizar nossa Terra.
Reiteramos nossa profunda tristeza e lamento pela morte de mais um parente, mais um indígena assassinado no maranhão. Nossa expectativa e anseio é que desta vez esta situação seja encarada de forma diferente, levando mais a sério as vidas indígenas. A devida resposta que esperamos é o ou os assassinos sejam presos e levados à justiça. E que nenhuma gosta à mais de sangue indígena seja derramada em Nossa terra (Brasil).
Cacique Geral: Iracadju Ka’apor
Presidente da Associação Ka’apor Ta Hury
11/ago/2020
NOTA DE REPÚDIO DO POVO XIKRIN DA TERRA INDÍGENA TRINCHEIRA BACAJÁ
O povo Xikrin da Terra Indígena Trincheira Bacajá, vem manifestar publicamente sua indignação e seu repúdio de como estamos sendo tratados diante da Pandemia do Corona Vírus 19.
Desde 17 de março de 2020 a Funai estabeleceu a Portaria 419 que proíbe a entrada em Terra indígena para proteger nós indígenas do vírus. Porém não apresentou nenhum direcionamento para a Norte Energia, empresa responsável pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, para não parar as atividades do PBA-CI.
A executora do PBA-CI fala que está fazendo o que está autorizado pela Norte Energia por causa da Pandemia e da Portaria da Funai. Enviamos vários ofícios e mensagens para a Norte Energia que responde que está seguindo as orientações da FUNAI e que está aberta ao diálogo e conversando com a Funai. A Funai responde que está conversando com a Norte Energia. E quem conversa com os índios? A Funai que deveria nos defender e proteger está ajudando a Norte Energia a não cumprir as obrigações por causa dos impactos da construção da usina de Belo Monte.
A Norte Energia se aproveita da situação e ao invés de melhorar o serviço, piora ainda mais e parou tudo em nome da Funai. Nós indígenas somos sempre os prejudicados! A Usina de Belo Monte não parou de funcionar e a Norte Energia contínua ganhado o dinheiro com a geração de energia, mas o PBA-CI pode parar com a autorização do órgão que devia nos proteger e ficar do nosso lado? A Funai está ajudando a Norte Energia e não os índios.
As atividades do PBA-CI contratadas para a Terra Indígena Trincheira Bacajá foi com muita luta do povo, pois se dependesse na Norte Energia estava tudo parado há muito tempo até a revisão do PBA-CI que nunca avança. Todas as atividades foram definidas por nós com base nosso Plano de Vida e não podem ser paradas ou suspensas sem diálogo e participação do povo Xikrin. Está na convenção 169 da OIT, é nosso direito ser consultado e decidir sobre nossa vida.
A Norte Energia nunca cumpre o que promete e há muito tempo vem atrasando e deixando de entregar as ferramentas da roça o que causa prejuízo na produção das famílias e aumenta ainda mais a situação de risco. Essa situação dos insumos e ferramentas do PAP já vem acontecendo mesmo antes da Pandemia e foi feito denúncia por nós a Funai e ao MPF e não foi tomada nenhuma providência. Com a situação da Pandemia se agravou, porque além das ferramentas e insumos para a produção que sempre atrasam e são insuficientes, estamos sem acompanhamento técnico e sem apoio do Programa de Atividades Produtivas porque a Funai proibiu a execução nas aldeias. Além disso, a Norte Energia nem contratou ainda a empresa que vai fazer os estudos de viabilidade que já deviam ter começado, para autorizar produções definidas pelas aldeias. Ou seja, tudo já estava atrasado mesmo antes da Pandemia e agora com a autorização da Funai para parar tudo, vai ficar pior ainda mais para os índios. A Norte Energia sempre mentiu e nada acontece e agora está mentindo com a ajuda da Funai.
Todos falam que devemos ficar na aldeia para se proteger, mas não fazem nada. Já tem mais de 4 meses que está tudo parado e nenhuma proposta, planejamento ou conversar foi feita com os índios para encontrar um jeito de amenizar os impactos da pandemia. Estamos presos na aldeia e em situação de risco maior do que se estivéssemos saindo, porque se não morrermos pelo vírus, vamos morrer de fome e de tristeza diante dessa situação de abandono e de descaso de todos com o apoio da Funai. Não vamos aceitar ser tratado desse jeito, jogado na aldeia, vivendo de esmola de cesta básica que não dá nem para alimentar por uma semana ! Vamos lutar pelos nossos direitos! Vamos descer para a cidade e brigar e se ficar doente, vamos morrer lutando e a culpa vai ser da Funai e da Norte Energia!
Kroire Xikrin
Presidente
Associação Bebô Xikrin do Bacajá
07/ago/2020
NOTA DE REPÚDIO
Governo Brasileiro veta participação da coordenadora da COIAB Nara Baré em reunião da OEA sobre povos indígenas e Covid-19
O Embaixador do Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA), Fernando Simas Magalhães, cancelou a indicação da liderança Nara Baré, coordenadora executiva da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), para falar durante a reunião do seu Conselho Permanente, no contexto da 3ª Semana Interamericana de Povos Indígenas, e da Comemoração do Dia Internacional dos Povos Indígenas, neste domingo (9 de agosto).
A sessão ordinária do Conselho Permanente aconteceu nesta sexta-feira (7) de forma virtual devido à pandemia, com o tema “COVID-19 e Resiliência dos Povos Indígenas”. As reuniões do Conselho têm entre seus objetivos proporcionar que os Estados membros da OEA escutem as declarações de líderes indígenas da região.
Como oradora convidada, seu papel seria o de informar ao Conselho Permanente, e outros convidados da sessão, sobre os impactos da Covid-19 entre os povos indígenas, e como as organizações e comunidades estão combatendo o vírus por sua iniciativa própria. Jaime Vargas, presidente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) também teve sua participação vetada.
O Conselho Permanente da OEA é composto de um representante de cada Estado membro e se reúne regularmente em Washington (EUA). Executa as decisões da Assembleia Geral, exercendo importantes funções políticas em conformidade com a Carta Democrática Interamericana, e servindo como um fórum político de discussão.
Nas suas redes sociais, o Secretário-Geral da OEA, Luís Almagro Lemes, afirmou que a “Covid19 exacerbou a vulnerabilidade dos mais necessitados. Hoje, quando começamos a 3ª Semana dos Povos Indígenas, devemos reconhecer a frágil condição em que estão os povos indígenas e convocar a todos a levarem em consideração suas necessidades no mundo pós-coronavírus”.
“A postura da OEA e de seus membros, principalmente o Brasil, não condiz com o discurso do secretário geral da OEA, onde afirma que quer nos escutar e fazer algo pelos povos indígenas, mas impede uma liderança amazônica de se pronunciar perante os membros da organização”, afirma Kleber Karipuna, liderança da COIAB.
A OEA é o mais antigo organismo regional do mundo, fundada em 1948, e originada na União Internacional das Repúblicas Americana (1889-1990), com o objetivo de promover relações pacíficas nas Américas.
A COIAB repudia veementemente o cancelamento da participação da nossa liderança neste importante espaço de debate e denúncia internacional dos direitos humanos, pois acredita que se trata de mais um ato de discriminação e censura aos povos indígenas. É inadmissível e vergonhoso que o Governo Brasileiro, com respaldo da OEA, silencie as vozes indígenas na tentativa de esconder suas ações e políticas de desmantelamento dos direitos indígenas, e da sua ineficiência no enfretamento da pandemia da Covid-19.
Manaus/AM, 07 de agosto de 2020
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB)
03/ago/2020
O Supremo Tribunal Federal suspendeu para próxima quarta-feira (5), o julgamento da liminar que obriga o governo a implementar um plano emergencial de proteção aos povos indígenas durante a pandemia da Covid-19.
“Essa ação é a voz dos povos indígenas na Corte (do STF) e é uma ação histórica porque pela primeira vez os indígenas vem ao judiciário em nome próprio.”, reforça o advogado da APIB Luiz Eloy Terena (@luizeloyterena) durante a primeira parte do julgamento.
Confira na íntegra a defesa da APIB aos povos indígenas no STF feita na tarde de hoje (3):
Sustentação Oral ADPF 709
Dr. Luiz Eloy Terena – advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
Excelentíssimo Senhor Ministro Presidente Dias Toffoli
Excelentíssimo Senhor Ministro relator Luís Roberto Barroso
Senhores Ministros
Senhoras Ministras
Ilustre representante do Ministério Público
Inicialmente quero consignar a minha enorme satisfação, na qualidade de advogado indígena do povo Terena, de estar representando nesta ação a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), esta importantíssima organização que vem fazendo a defesa incansável dos povos indígenas, e que, mesmo num contexto político tão adverso, possui lideranças indígenas que têm feito uma resistência qualificada em prol da vida.
Quero saudar o eminente ministro e professor Luís Roberto Barroso por receber a petição da APIB, e proporcionar no âmbito da mais alta corte do país o diálogo intercultural.
Esta ADPF é a voz dos povos indígenas nesta Corte.
É o grito de socorro dos povos indígenas.
Esta iniciativa é uma ação histórica. Porque pela primeira vez, no âmbito da jurisdição constitucional, os povos indígenas vêm ao judiciário, em nome próprio, por meio de advogados próprios, defendendo interesse próprio. Pois durante muitos séculos esta qualidade de sujeito ativo de direito nos foi negada. Ainda no período colonial, pairava-se a dúvida se os índios eram seres humanos, se tinham almas. Foi preciso uma bula Papal reconhecendo esta qualidade de que os índios tinham almas e, portanto, eram passíveis de evangelização.
Depois instrumentalizou-se a tutela legal, na qual os índios não podiam falar por si mesmos. Sempre tinham que pedir licença para os puxarará, termo da língua terena utilizado para se referir aos brancos.
Foi somente com a Constituição de 1988 que os índios, suas comunidades e organizações tiveram reconhecido o direito de estarem em juízo defendendo seus interesses. Seguindo este preceito, a Constituição rompeu com a perspectiva integracionista que antes orientava a política indigenista do Estado brasileiro e determinou respeito às formas organizacionais, línguas, crenças, costumes e tradição dos povos originários, estabelecendo o Estado pluriétnico. A nossa Carta Magna irá completar 32 anos, e, passados todos esses anos, aqui estão os povos indígenas batendo à porta do judiciário.
É porque o momento requer!
Não há espaço para protelar o debate sobre o direito fundamental dos povos indígenas. Para se proteger a vida indígena, faz-se necessário proteger os seus territórios.
Para o fortalecimento da democracia, é preciso entender que proteger os povos indígenas é compromisso do Estado brasileiro e não pode ser mitigado em hipótese alguma.
Esse vírus que assola o mundo chegou em nossas aldeias. A história se repete, pois, no período da ditadura, a disseminação de vírus por meio de distribuição de roupas foi utilizada como forma de extermínio dos indígenas, conforme o relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Essa pandemia está escancarando vários problemas sociais que assolam as comunidades indígenas. Desde a precariedade do subsistema de atenção à saúde indígena, passando pela negativa de atendimento aos indígenas que se encontram nas terras ainda não homologadas, até a importância de se respeitar a biodiversidade presente em nossos territórios. Além de olhar para o importante papel que os territórios indígenas desempenham no equilíbrio da vida humana, incluindo-se nisto o equilíbrio sanitário.
O Brasil possui atualmente, 305 povos, falantes de 274 línguas e mais o registro de 114 povos isolados e de recente contato. Neste contexto de pandemia, nossas lideranças estão morrendo. Nossos anciões são nossos troncos vivos. São os guardiões da nossa cultura e dos nossos saberes.
Mesmo neste contexto de pandemia, nossas comunidades não tiveram paz. Pois a todo o momento, além de lutar pela vida, redobraram-se lutando contra os interesses políticos e econômicos que recaem sobre as terras indígenas. O número de desmatamento e invasões aumentou sobremaneira. Estes fatos, públicos e notórios, constituem crimes, mas neste momento são também os vetores diretos para a disseminação do vírus nas terras indígenas.
Cito aqui o escândalo mundial referente à TI Yanomami, que já tem até decisão da Comissão Interamericana para os invasores sejam retirados. Segundo os dados da Associação Hutukara, são aproximadamente 20 mil garimpeiros dentro da TI.
Há pouco mais de um mês, a Covid-19 vitimou nosso líder Paulino Paiakan. Liderança indígena que fez nascer a Constituição, participou ativamente da construção da Carta Magna, que outorgou-lhe a proteção integral.
Hoje, segundo os dados do Comitê da Vida e Memória Indígena da APIB, são 623 indígenas mortos; 21.646 infectados e 146 povos atingidos. Chamando atenção para os estados do Amazonas, Pará, Mato Grosso, Roraima e Maranhão.
Posto isto a APIB pugna pelo reconhecimento de sua legitimidade, na qualidade de entidade de representação de âmbito nacional dos povos indígenas. Não obstante a APIB não estar constituída nos moldes do direito civilista, temos que sua personalidade jurídica irradia da própria Constituição.
Senhores Ministros e Senhoras Ministras, não é exagero alertar esta corte que temos sim um sério risco de genocídio. Temos povos isolados que, se forem contaminados, corre-se o risco de ser o grupo inteiro exterminado. No caso dos indígenas, o genocídio vem seguido do etnocídio, porque além do extermínio da vida, tem-se também o extermínio das culturas que jamais serão recuperadas.
Diante do exposto, espera a APIB que este egrégio Plenário referende a medida cautelar concedida pelo Min. Luís Roberto Barroso.
Em relação à presença de invasores em terras indígenas, reitera-se que seja determinado à União Federal que tome imediatamente todas as medidas necessárias para a imediata retirada dos invasores nas Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-EuWau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá, valendo-se para tanto de todos os meios necessários, inclusive, se for o caso, do auxílio das Forças Armadas, indo além, neste ponto, em relação à medida cautelar sob referendo.
Por fim, encerro esta sustentação parafraseando o nosso líder Davi Kopenawa, em seu livro “A queda do céu”, quando diz: “Eu gostaria de ter dito aos brancos, já na época da estrada: ‘Não voltem à nossa floresta! Suas epidemias xawara já devoraram aqui o suficiente de nossos pais e avós! Não queremos sentir tamanha tristeza de novo! Abram os caminhos para seus caminhões longe da nossa terra!’
Muito obrigado!
02/ago/2020
Por Sonia Guajajara, Angela Kaxuyana e Beto Marubo, publicado em O Globo
No dia 3 de agosto o Supremo Tribunal Federal (STF) vai julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) protocolou contra o governo federal. Estamos à mercê do novo coronavírus e o texto pode ser resumido em uma frase: não nos deixem morrer. É bem provável que boa parte da nobreza europeia do século XVI não soubesse que além do pau-brasil, o sangue indígena também tingia de vermelho suas roupas; acreditamos que hoje muita gente igualmente não saiba o que se passa longe de seus olhos. Mesmo que a voz dos povos tradicionais tenha ganhado volume nos últimos anos e conquistado todos os corações e mentes que vem alcançando – simplesmente porque nossa causa é justa – ainda é necessário reafirmar que se trata, literalmente, de uma questão de vida ou morte. E não somente de indivíduos, mas de povos inteiros, com culturas próprias, únicas, também.
Sentimo-nos atados a uma bomba-relógio. O ministro Luís Roberto Barroso acatou e se tornou relator de nossa APDF em 8 de julho, quando também determinou que o Executivo tomasse imediatamente cinco medidas para nos proteger. Naquele dia, o relatório “Covid-19 e Povos Indígenas”, da Apib, registrava 455 mortos e 12.777 infectados; em 29 de julho, os números já haviam pulado para 592 e 20.444. Entre esses 21 dias tivemos apenas duas reuniões com representantes do Executivo – e o fato de Barroso ter designado um observador externo para acompanhar a segunda diz muito sobre o que aconteceu na primeira –, nenhuma medida concreta foi tomada, 137 de nós morreram, 7.667 caíram doentes e hoje há 143 povos atingidos, mais da metade do total.
Nossa maior preocupação, no momento, são os grupos isolados. As estatísticas vêm mostrando que nós, indígenas, somos mais vulneráveis ao novo coronavírus; mas por não terem memória imunológica para resistir sequer a uma simples gripe, esses povoss podem ser exterminados caso a doença se espalhe por suas aldeias. Temos feito a nossa parte, cumprindo as regras do distanciamento social – que conhecemos tão bem, pois enfrentamos epidemias estrangeiras há mais de 500 anos. Mas invasores continuam tomando nossas terras, levando a pandemia até elas.
Barroso deu um prazo de dez dias para que fosse elaborado um plano para instalação de barreiras sanitárias em terras indígenas; passados dez dias depois de este prazo se esgotar, foi registrado o primeiro caso de Covid-19 em um indígena Kanamari. Ele mora numa aldeia na Terra Indígena Vale do Javari, que fica a apenas 15 quilômetros de onde vive um grupo não contatado. Este território concentra o maior número de povos isolados do mundo. Passados quatro meses desde que os primeiros indígenas foram infectados na Amazônia, o governo não apresentou nenhum plano objetivo dirigido à região e a esses grupos especialmente indefesos. Nós, indígenas, conquistamos os direitos à cidadania plena e às nossas terras ancestrais somente com a promulgação da Constituição 1988. Já o direito à vida é originário em todo ser humano e transcende o tempo.
02/ago/2020
Artigo de Nara Baré e Danicley Aguiar, publicado originalmente no portal UOL
Entre os mais de 90 mil brasileiros mortos, a Covid-19 já levou mais de 612 vidas indígenas, infectou por volta de 21.200 e atingiu cerca de 145 povos. Tal como no Brasil não indígena, o que está acontecendo no Brasil indígena é e deve ser reconhecido como um negacionismo ideológico, contaminado pelo viés ditatorial do colonizador, que de forma irresponsável coloca em risco a vida de milhares de indígenas, e reaviva os muitos momentos de genocídio impostos aos povos originários ao longo da história brasileira.
Precisamos ir além dos números frios da estatística, haja vista que, muito mais do que números, os povos indígenas atingidos pela Covid-19 estão enterrando seu passado, presente e futuro. Para além do luto imposto às famílias, as perdas indígenas geram um conjunto de consequências para a organização social dos povos e para o conjunto das relações deles com seus territórios e os demais segmentos da sociedade brasileira.
Para os Munduruku, um dos povos mais pressionados da bacia amazônica, a perda dos caciques Martinho Borõ e Vicente Saw, por exemplo, colocou em risco não só a história, mas também o presente e o futuro desta população. Como líderes da luta indígena que culminou na demarcação do território munduruku, em 2001, esses dois caciques – junto a outros idosos que também faleceram – guardavam, além de conhecimentos ancestrais, a memória de uma geração. Era deles que os mais jovens recebiam informação e inspiração para o enfrentamento das ameaças que hoje colocam em risco a sobrevivência física e cultural dos Munduruku, como o garimpo ilegal e grandes empreendimentos representados pelo complexo hidrelétrico que se quer construir no rio Tapajós.
É fundamental que o Brasil não indígena perceba que também sofrerá com as perdas desses povos, seja por toda a influência da cultura indígena na formação da cultura nacional, seja pela relevante contribuição que o modo de vida dessas populações oferece à manutenção do equilíbrio ambiental do país. Afinal, em todos os biomas, e em especial na Amazônia, as terras indígenas são palco da mais genuína resistência à destruição do meio ambiente, o que os posiciona como verdadeiros guardiões das florestas. Na concepção indígena não há separação. Eles são a floresta. Não à toa, na Amazônia, o desmatamento nas terras indígenas é 11 vezes menor do que nas áreas privadas, e segue assim, mesmo quando comparado à unidades de conservação criadas para a proteger porções relevantes da biodiversidade amazônica.
Além de sórdida, a tentativa de minimizar as mortes no Brasil indígena reforça o contexto permanente de violações dos direitos indígenas no Brasil, cristalizado pelo racismo institucional que contaminou a política indigenista do atual governo e aprofundou o esvaziamento e sucateamento da FUNAI, colocando-a na contramão de sua missão maior, que é a defesa e a promoção dos direitos indígenas. De janeiro a junho de 2020, consumiu nada menos que 7.000 hectares de floresta, não sendo interrompido nem mesmo pela declaração de pandemia global, o que reforça as denúncias de que há um processo organizado de invasão das terras indígenas na Amazônia e de destruição destes povos.
Em meio a todo o descaso a que estão relegados, o fato é que os povos indígenas são protagonistas de sua história. Eles decidiram viver e não aceitarão passivamente a morte encomendada pela incompetência do governo de plantão. Resilientes como sempre, se articularam para dentro e para fora do Estado brasileiro, constituindo uma grande rede de solidariedade em favor da vida, mostrando ao mundo por qual motivo resistem a 520 anos de massacres.
Até o momento, sob a liderança do movimento indígena, na Amazônia, já foram instaladas mais que uma centena de Unidades de Atendimento Primário Indígena (Uapi), à revelia da falta de apoio financeiro por parte do Estado brasileiro; que foi incapaz de viabilizar recursos para ampliar o que já vem sendo realizado pela sociedade civil organizada.
Superar as agruras impostas pela pandemia e pela omissão daqueles que insistem em negar a realidade deve ser a nossa tarefa diária, tendo no horizonte a esperança de que possamos construir um Brasil mais solidário e justo, onde o direito à vida seja de fato um direito fundamental.
14/jul/2020
APIB soma forças com milhares de organizações de todo o país e entrega pedido de impeachment de Bolsonaro ao Congresso
Acesse o pedido na integra aqui
O coordenador executivo da APIB Kretã Kaingang participou do ato que marcou a entrega do pedido de impeachment contra Jair Bolsonaro na manhã desta terça (14), em Brasília. Movimentos sociais, artistas e intelectuais assinam o documento que denuncia crimes de responsabilidade e solicita a suspensão das funções presidenciais. O pedido deve seguir em breve para apreciação do presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
O documento descreve ações de Bolsonaro que representam violação de direitos individuais e coletivos de ordem econômica, social, cultural e ambiental que, com o esvaziamento das políticas públicas e seu comportamento leviano contra ordem pública, coloca em risco a vida de milhões de brasileiros. Entre os fatos citados no pedido de impeachment constam: o desmantelamento dos direitos trabalhistas; assédio institucional; aparelhamento ideológico; ataques ao meio ambiente; e ataques diários à liberdade de expressão, principalmente direcionado à imprensa.
Para o coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kretã Kaingang, Bolsonaro incentiva a práticas ilegais em territórios tradicionais de modo a agravar as violências sofridas historicamente por indígenas: “O genocídio contra os povos indígenas sempre existiu, mas com o governo Bolsonaro a situação piorou. O presidente invadiu nossas terras permitindo a grilagem. Os povos indígenas pedem o Fora, Bolsonaro”, afirmou.
A pandemia de Covid-19 torna as ações de Bolsonaro ainda mais truculentas. O documento destaca, inclusive, que o presidente se valeu da emergência de saúde para flexibilizar normas de proteção ambiental. No contexto indígena, o Comitê pela Vida e Memória Indígena já registrou (até o dia 13 de julho) 501 óbitos e 14.793 confirmados acumulados que foram infectados pelo novo coronavírus, impactando diretamente 131 povos de todo Brasil.
Além da Apib, representantes de diferentes movimentos sociais assinam o pedido de impeachment protocolado, tais como Central Única dos Trabalhadores (CUT), União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), entre outros.
13/jul/2020
Comunidade da Terra Indígena Taunay-Ipegue (MS) luta pela conquista do seu território tradicional contra fazendeiros da família da Ministra da Agricultura Teresa Cristina
A comunidade indígena do povo Terena da Terra Indígena Taunay-Ipegue, Mato Grosso do Sul, enviou carta de solicitação ao Supremo Tribunal Federal (STF) para ser ouvida no processo que discute a posse de sua terra tradicional. O ministro Dias Toffoli, presidente do STF, marcou uma audiência de conciliação sobre a ação da TI do povo Terena para o dia 16 de julho, no entanto, sem chamar os representantes da comunidade.
Trata-se da suspensão de liminar 1076 em que se discute a posse da área indígena. As fazendeiras Monica Alves Correa e Mirian Alves Correa, que são primas da ministra da agricultura Teresa Cristina, ingressaram com a ação em 2013, com o objetivo de reintegrar a posse da antiga fazenda Esperança, alegando que ali nunca foi terra indígena.
O processo chegou ao Supremo em 2016, e mesmo a Constituição Federal afirmando que os direitos indígenas são indisponíveis, o ministro designou audiência de conciliação intimando a União, a Funai e as fazendeiras. Entretanto, não notificou a comunidade indígena para ser ouvida.
Os caciques e lideranças Terena afirmaram, em carta dirigida ao STF, que tem o direito de participar do processo e serem ouvidos, tendo em vista que será a comunidade que suportará os efeitos da decisão que sobrevier do processo.
Acesse aqui: Carta da comunidade Taunay-Ipegue do povo Terena
09/jul/2020
EXIGIMOS A ATUAÇÃO DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS NAS BARREIRAS SANITÁRIAS EM TERRITÓRIOS INDÍGENAS PARA A PREVENÇÃO DA CHEGADA DA PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS
Nos Conselhos Tradicionais Guarani e Kaiowá Aty Guasu, Kuñangue Aty Guasu, e Retomada Aty Jovem viemos através desta nos manifestar e pedir apoio do estado para amparar as barreiras sanitárias Guarani e Kaiowá. Desde a chegada do Coronavírus em nossas comunidades indígenas, estamos nos organizando em turnos, colocando nossos corpos em risco, bloqueando o acesso de pessoas e a circulação de outras comunidades em nossos territórios Guarani e Kaiowá.
O presidente sancionou com 16 vetos a lei que cria o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas, que estabelece medidas para prevenir a disseminação da doença entre povos tradicionais. O texto da lei no 14.021 foi publicado na madrugada de quarta-feira 08 de Julho de 2020, exigimos o cumprimento da Constituição Federal de 1988, essa prática do estado brasileiro é crime contra a humanidade.
O racismo institucional aumentou contra as comunidades Guarani e Kaiowá na pandemia. Há barreiras equipadas em toda a cidade, e o município de Dourados (MS) conta com agentes públicos, e profissionais de saúde e protocolos sanitários em todo o espaço urbano, atuando em barreiras sanitárias. A Reserva Indígena mais populosa do estado, com mais casos positivos e dois óbitos continua sem apoio do estado e municípios às barreiras sanitárias indígenas, isso é um descaso, abandono do povo Guarani e Kaiowá enfrentando uma pandemia que vem deixando rastros profundos de violência nas comunidades indígenas.
Exigimos apoio do governo do estado de Mato Grosso Do Sul, dos prefeitos de municípios onde há barreiras sanitárias Guarani e Kaiowá, da Fundação Nacional Do Índio (FUNAI), da Frente Parlamentar em Defesa Dos Direitos Dos Povos Indígenas no Congresso Nacional, aos órgãos de segurança pública, aos parlamentares dos municípios citados logo abaixo, ao
Ministério Público Federal de Campo Grande, Dourados, Naviraí e Ponta Porã e a 6a Câmara em Brasília. Nos ajudem a proteger nossos territórios! É um direito nosso!
Necessitamos urgentemente que encaminhem agentes públicos para nos ajudar nas barreiras sanitárias, com equipamentos adequados para o bloqueio com segurança: Cones de trânsito, correntes, fitas zebrada, capas de chuva, coletes de transito, tendas, alimentos, lanterna, luvas descartáveis, máscaras, toucas descartáveis, termômetro infravermelho, jato d’água, macacão hospitalar, protetor facial, álcool em gel e borrifador e outros itens que possam colaborar com a prevenção. Solicitamos também orientações e informações a respeito da COVID-19 para as nossas comunidades e a construção de protocolos sanitários específicos para as barreiras sanitárias indígenas.
Reforçamos a importância do acesso à água nas comunidades Guarani e Kaiowá. A falta d’água é uma realidade presente em nossos Tekohas. Muitas famílias não possuem acesso a água e acabam tendo que ir buscar em córregos contaminados. Como pedir para que lavem as mãos e tenham uma higiene pessoal adequada, sem acesso à água potável? Estamos informando para que lavem as mãos, mas somente isso não adianta.
Solicitamos a implementação de caixas d’água e circulação de caminhões pipa em nossas comunidades. É de extrema urgência que os órgãos públicos convocados neste manifesto tomem providências emergenciais para garantir a estrutura física com segurança e a atenção necessária que as barreiras Guarani e Kaiowá precisam.
Nota completa com os onde estão localizados as barreiras sanitárias Guarani e Kaiowá.
08/jul/2020
Artigo de Julio José Araujo Junior, publicado em jota.info
Cansados da falta de resposta das instituições e inconformados com um cenário avassalador de disseminação do coronavírus nas aldeias e comunidades, os povos indígenas resolveram dirigir o seu destino e transformar a história constitucional. Por meio da ADPF 709, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) associou-se à Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ e a seis partidos para combater a omissão do governo federal no combate à pandemia e cobrar providências quanto ao risco de genocídio de diversas etnias. A utilização direta do controle concentrado de constitucionalidade representa um marco na defesa de direitos indígenas e impõe ao sistema de justiça a necessidade de atenção e providências ante um cenário extremamente grave de omissão do Estado brasileiro na elaboração e concretização de políticas em favor desse grupo minoritário.
A ação pede ao STF que determine ao governo federal a instalação de barreiras sanitárias em mais de 30 territórios onde vivem povos indígenas em isolamento voluntário ou de recente contato, bem como a retirada de invasores das terras indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapó, Araribóia, Munduruku e Trincheira Bacajá.
A ADPF pede, ainda, que a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) atenda a todos os indígenas, inclusive aqueles em contexto urbano ou que vivam em terras indígenas não homologadas, e requer a elaboração de um plano de enfrentamento do COVID-19 para os povos indígenas, a ser elaborado pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) com o apoio da Fundação Osvaldo Cruz e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
A propositura da ação por uma organização indígena nacional tem um peso que transcende o caráter simbólico. Ela reforça a necessidade de superar uma interpretação restritiva do art. 103, IX, da Constituição, e afastar o entendimento de que entidades de classe de âmbito nacional seriam apenas aquelas ligadas a uma categoria econômica ou profissional – em consonância com decisões como a da ADPF 527 e da ADI 5.291.
Além disso, a ADPF torna efetivo o art. 232 da Constituição, que sublinha a legitimidade dos povos indígenas e de suas organizações para atuar em juízo na defesa de seus direitos e interesses. Com isso, a democratização do acesso à Suprema Corte viabiliza a escuta e o exercício da interpretação constitucional pelos próprios grupos minoritários e vulneráveis. Essa abertura se torna ainda mais relevante no atual cenário, em que o governo federal constantemente se vale de uma suposta vontade majoritária das urnas para atacar os direitos indígenas. Nesse contexto de omissão sistemática, a pandemia converte-se em fator detonador de riscos a genocídios e atrocidades em massa que já estavam latentes.
O passado mostra que as políticas de Estado violadoras dos modos de vida dos povos indígenas, associadas à negligência na proteção de suas terras, causaram extrema vulnerabilidade nos grupos. Assim, as epidemias não foram obra do acaso, pois as políticas coloniais ofereceram o cenário ideal para que as enfermidades se espalhassem. Afinal, os micro-organismos não incidiram em um vácuo social e político, mas em um mundo socialmente ordenado[1], onde a disseminação de doenças era viabilizada pela opressão e submissão dos povos indígenas aos interesses econômicos dominantes.
Compreender tais episódios nos ensina como um país não se define apenas por suas memórias, mas também por seus esquecimentos[2]. Quanto mais o Estado se omite no dever de proteger os territórios e garantir aos povos indígenas sua sobrevivência física e cultural, mais provável será a ocorrência de genocídios provocados por epidemias.
Desta vez, a Constituição é uma verdadeira aliada. A perspectiva intercultural do texto constitucional impõe uma leitura do texto que descolonize os saberes e as compreensões estigmatizantes do passado e impõe ações concretas pelo Estado na garantia do exercício dos modos de vida próprios dos grupos que formam a sociedade brasileira. Mais do que uma carta de enunciação de direitos, a Constituição de 1988 é um verdadeiro instrumento de luta dos povos indígenas para garantir a sua sobrevivência física e cultural.
Como afirma Ailton Krenak, apesar de tantas violências, os povos indígenas buscaram forças para resistir e desenharam estratégias que lhes permitiram cruzar o pesadelo de uma colonização que queria acabar com o seu mundo e chegar ao século XXI esperneando, reivindicando e desafinando o coro dos contentes[3].
Proteção territorial e direito à saúde
A proteção dos territórios é o eixo central em torno do qual gravitam os direitos indígenas (art. 231, §1º). O território é um espaço onde exercem vínculo especial, de natureza sociocultural e espiritual. Mesmo quando já não habitam esses espaços e se deslocam às cidades, muitos indígenas estabelecem vínculos com os territórios, com os quais perpetuam relações de família, trânsito e afeto. Quando os territórios não estão devidamente protegidos, tornam-se alvo de invasões, ações criminosas, destruição da natureza, contaminação dos rios e desestruturação étnica.
Ao lado da proteção territorial, o direito à saúde exige uma abordagem especial. Ele deve ser implementado em atenção às especificidades socioculturais desses povos, por meio do respeito às suas práticas tradicionais e aos modos de organização de cada etnia, dispondo ainda de uma estrutura logística que atenda aos grupos que vivem nas áreas mais remotas. A adoção da política nacional de saúde indígena em plena conformidade à Constituição pressupõe abandonar concepções ultrapassadas a respeito da identidade indígena e implementar um enfoque diferenciado de atenção às comunidades, sempre em respeito às suas práticas tradicionais e à obediência ao controle social.
Embora a constituição de um subsistema de saúde indígena pela Lei nº 9.638/1999 tenha sido um avanço, ele não tem sido capaz de enfrentar todos os desafios para a implementação da saúde indígena no país.
O primeiro problema reside no caráter incompleto do atendimento. A premissa colonialista de que os indígenas merecedores de atendimento diferenciado seriam apenas aqueles que vivem nas aldeias (“aldeados”) desconsidera a afirmação identitária daqueles que vivem nas cidades e ignora a extrema vulnerabilidade a que estão submetidos. Na prática, os indígenas não atendidos pela Sesai sofrem a discriminação institucional nas demais áreas do SUS e não recebem qualquer tipo de atenção diferenciada que leve em conta suas peculiaridades socioculturais. Na pandemia, os casos de indígenas em contexto urbano não são devidamente computados nas estatísticas oficiais.
Além disso, a precariedade de atendimento e a carência de profissionais, principalmente na Amazônia Legal, as dificuldades na concretização do diálogo intercultural e do respeito à medicina tradicional mostram que há ainda um longo caminho a percorrer para o efetivo respeito à Constituição.
A precariedade do subsistema leva a que os índices da saúde indígena sejam piores que os da população não-índigena – como no caso de mortalidade infantil, desnutrição e diversas morbidades.
Em vez de incrementar a atuação estatal, as tentativas de privatização do subsistema e a diminuição do investimento nos últimos anos têm fragilizado o atendimento, causando impactos ainda piores nas terras indígenas mais remotas.
Ameaça às terras indígenas
Enquanto a política pública de saúde indígena não alcança a efetividade necessária, as ameaças às terras indígenas não param de crescer. Tentativas de invasão das terras para viabilizar atividades ilegais como desmatamento, mineração, garimpo, extração de madeira fragilizam a proteção das comunidades e geram riscos à sobrevivência física e cultural dos grupos. Tais ameaças já eram graves no passado, porém cresceram muito nos últimos tempos, em razão do projeto inconstitucional do atual governo federal para os povos indígenas e do aumento da vulnerabilidade em decorrência da pandemia do novo coronavírus.
A Presidência da República dedica-se, desde a posse, a cumprir a promessa inconstitucional e discriminatória de não demarcar um centímetro de terra indígena. O governo federal tem se voltado à desestruturação das políticas indigenistas e à condução de um projeto integracionista para esses povos. A começar por discursos, tuítes e falas, o Presidente da República tem defendido um projeto integracionista para os povos indígenas, que busque tirá-los da “pré-história” e torná-los seres humanos “iguais a nós”. As menções são públicas e expressas, sempre com uma visão parcial a respeito do papel do Estado e uma indicação de favorecimento a certos grupos em detrimento dos povos indígenas e do meio ambiente[4], vistos como empecilhos ao progresso.
Além da paralisação de processos demarcatórios e da reprodução das concepções do Presidente, a FUNAI, que deveria agir em defesa dos povos indígenas, tem favorecido a invasão de terras indígenas ainda não homologadas, como mostra a Instrução Normativa nº 9/2020[5], editada em plena pandemia. A autarquia tem se limitado a atuar de forma pontual na matéria indígena, de forma meramente assistencial, omitindo-se no dever de coordenar e interagir com os demais entes e atores acerca do dever de proteção estatal dos povos indígenas. Além disso, a Funai vem abrindo as portas para políticas evangelizadoras, mesmo em áreas de indígenas em isolamento voluntário, desrespeitando as diretrizes de não estabelecimento de contato com esses grupos.
Para enfrentar a pandemia e a omissão estatal, os indígenas têm agido muitas vezes por conta própria. A adoção de suas práticas tradicionais e o estabelecimento de regras nos territórios tentam impedir o aumento do número de casos.
No Alto Rio Negro, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN -, que congrega 23 etnias, aponta que a minimização dos riscos tem sido feita quase exclusivamente pelos conhecimentos tradicionais e a medicina indígena, caso contrário já haveria mais mortes na região[6]. No Vale do Javari, a entidade UNIVAJA, que abrange sete povos da região, vem questionando a entrada de funcionários de saúde contaminados nas terras, o que gerou a disseminação do vírus na região[7]. Os indígenas demandam a criação de um gabinete de crise local, a elaboração de testes rápidos, a criação de barreiras sanitárias e o fortalecimento de bases de proteção, entre outras medidas[8].
O aumento de mortes por COVID-19 mostra que é necessária uma atuação estatal urgente. Até 5/7/2020, houve 11.385 casos confirmados, com 122 povos afetados e 426 óbitos[9]. A pandemia aprofundou um cenário de vulnerabilidades dos povos indígenas cujas consequências podem ser trágicas. Os depoimentos das entidades indígenas e das instituições indicam que os órgãos responsáveis não estão, até agora, à altura da tarefa histórica que lhes cabe.
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[1] Cf. Manuela Carneiro da Cunha. Introdução a uma história indígena. In: __(org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP, 1992, p. 13.
[2] Cf. João Pacheco de Oliveira. As mortes do indígena no império do Brasil: o ndianismo, a formação da nacionalidade e seus esquecimentos. In: _. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016, p. 75.
[3] Cf. Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 28.
[4] Em 12 de abril de 2019, durante a cerimônia de inauguração do Novo Terminal de Passageiros do Aeroporto Internacional de Macapá – Alberto Alcolumbre, Jair Bolsonaro afirmou:Conversando com alguns parlamentares, vamos conversar sobre a Renca, a Renca é nossa! Vamos usar as riquezas que Deus nos deu para o bem-estar da nossa população. Vocês não terão problemas com o ministro do Meio Ambiente nem com o de Minas e Energia, nem com outro qualquer, que o nosso ministério, pela primeira vez na República, todos se entendem e todos falam a mesma língua: um Brasil melhor para todos nós”. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos/2019/discurso-do-presidente-da-republica-jair-bolsonaro-durante-a-cerimonia-de-inauguracao-do-novo-terminal-de-passageiros-do-aeroporto-internacional-de-macapa-2013-alberto-alcolumbre Acesso em 23 set. 2019
[5] A Instrução Normativa nº 9, de 16 de abril de 2020, editada em plena pandemia, assegura a certificação de imóveis para posseiros, grileiros e loteadores em terras indígenas ainda não formalmente homologadas. A APIB escreveu uma nota técnica a esse respeito. Disponível em: <apib.info/2020/04/28/nota-tecnica-a-instrucao-normativa-da-funai-no-092020-e-a-gestao-de-interesses-em-torno-da-posse-de-terras-publicas/> Acesso em 13 jun. 2020.
[6] Sem orientação da Sesai, indígenas combatem por conta própria novo coronavírus nos territórios. Disponível em: <https://amazonia.org.br/2020/03/sem-orientacao-da-sesai-indigenas-combatem-por-conta-propria-novo-coronavirus-nos-territorios/> Acesso em 11 jun. 2020.
[7] Nota à sociedade brasileira e à comunidade internacional sobre o avanço do COVID-19 na Terra Indígena Vale do Javari. 07 de junho de 2020. Disponível em: <https://trabalhoindigenista.org.br/wp-content/uploads/2020/06/Nota-da-UNIVAJA_07.06.20_covid-19-dentro-do-Vale-do-Javari.pdf > Acesso em 10 jun. 2020.
[8] Veja-se: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,agentes-de-saude-levaram-covid-19-a-povos-isolados-dizem-indigenas-governo-nega,70003331693 . Acesso em 14 jun. 2020.
[9] Cf. dados do Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena. Disponível em: <https://covid19.socioambiental.org/ > Acesso em 5 jul. 2020.
JULIO JOSÉ ARAUJO JUNIOR – Procurador da República no Rio de Janeiro. É mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e graduado em Direito pela Universidade de São Paulo, em 2005.